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1 O FENÔMENO DO ENVELHECIMENTO POPULACIONAL NO

1.6 A velhice e a legislação infraconstitucional vigente

1.6.2 O Estatuto do Idoso – Lei 10.741/2003

A aprovação do Estatuto do Idoso pode ser considerada um grande avanço na legislação brasileira. O Estatuto consolidou e ampliou direitos já contemplados na Constituição de 1988, além de instituir instrumentos legais capazes de coibir a violação desses direitos. Ademais, contemplou a Política de Atendimento ao Idoso.

O Estatuto do Idoso, mais abrangente que a Política Nacional do Idoso, tem como objetivo promover a inclusão social e a garantia dos direitos desses cidadãos e traz um amplo rol de direitos e medidas de proteção destinados às pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos, tais como: 1) atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário; 2) distribuição gratuita, pelo Poder Público, de medicamentos, especialmente os de uso continuado, de próteses e órteses; 3) proteção do idoso contra negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão; 4) descontos em atividades de cultura, esporte e lazer; 5) reserva de 3% de unidades residências nos programas habitacionais públicos; 6) reserva de duas vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a dois salários-mínimos, no sistema de transporte coletivo interestadual; 7) a vedação à discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade; dentre outros.

Essa lei proclama, em seu art. 8º, que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção, um direito social. É preciso diferenciar as duas dimensões de direitos vislumbradas nesse dispositivo estatutário. O envelhecimento é tratado como direito personalíssimo e assim, como expressão lógica do direito à vida, de cunho privado. O envelhecimento é direito pertencente ao patrimônio jurídico das pessoas, como tais, ao passo que a sua proteção é ditada como um direito social. A proteção do direito ao envelhecimento é um direito social, ou seja, destinado a prover as necessidades da coletividade, com fundamento nos princípios da dignidade e da igualdade.

As duas dimensões são complementares, ressaltando-se que a melhor interpretação da Carta de 1988 é a compreensão da velhice em si e de sua proteção como um direito fundamental.

O direito ao envelhecimento traduz-se no direito de cada pessoa, como tal, de atingir a velhice, sendo personalíssimo como dita a lei. A proteção ao envelhecimento, apesar de não

figurar na lista dos direitos sociais, enumerada no art. 6º da Constituição Federal de 1988, encontra previsão no Título da Ordem Social, art. 230 da lei maior, e o próprio Estatuto do Idoso assegura, art. 115, que o orçamento da Seguridade Social destinará ao Fundo Nacional do Idoso os recursos necessários, em cada exercício financeiro, para aplicação em programas e ações relativos ao idoso.57

Existe um amplo rol de direitos e medidas a serem implementados para a garantia de uma velhice vivida com dignidade, tratando a norma de fixar a idade cronológica que assinala o início da fase da vida a partir da qual as pessoas a ela pertencentes (em razão de fatores biopsicossociais) passem a gozar dessa proteção especial.

A norma utilizou a idade cronológica como critério jurídico para a fixação de direitos. Tratar do reconhecimento dos direitos dos idosos significa, antes de tudo, considerar que o ordenamento jurídico se serve do critério etário para a outorga ou limitação de direitos, ou seja, a idade serve, nesse e em outros tantos casos no ordenamento brasileiro, como parâmetro para a aquisição, modificação ou extinção de direitos.58

É questionada, no entanto, a razoabilidade desse critério discriminador que elege a idade de 60 anos como início da velhice.

Angelika Nussberger afirma que um sistema jurídico, no qual discriminações fundamentadas na idade fossem explicitamente proibidas, não poderia oferecer nenhuma garantia para uma compensação efetivamente justa entre as gerações em perspectiva horizontal – entre a geração dos idosos e a geração dos moços – bem como em perspectiva vertical – entre as oportunidades e possibilidades que as pessoas recebem nas suas diversas faixas etárias. De qualquer modo, ser rotulado por força do Direito como excessivamente velho ou excessivamente jovem representa uma intervenção nítida no livre desenvolvimento

      

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A lei 12.213/2010 que institui o Fundo Nacional do Idoso foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 20/01/2010. Com a nova legislação, publicada em 21/01/2010, no Diário Oficial da União, pessoas físicas e jurídicas poderão deduzir do Imposto de Renda doações feitas ao fundo, nos âmbitos nacional, estadual e municipal. O Fundo será gerenciado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDI) e tem por objetivo financiar programas e ações que assegurem os direitos sociais do idoso e criem condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. Sua receita virá principalmente dos recursos destinados ao Fundo Nacional de Assistência Social; das contribuições feitas a fundos controlados por Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos do Idoso; de recursos destinados no orçamento da União; de contribuições e resultado de aplicações de governos e organismos estrangeiros e internacionais; e de resultado de aplicações no mercado financeiro. A nova lei entrou em vigor em janeiro de 2011.

58

GODINHO, Robson Renault. A proteção processual dos direitos dos idosos. Ministério público, tutela de direitos individuais e coletivos e acesso à justiça. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.7.

da personalidade, que não pode subsistir sem uma cuidadosa ponderação dos diversos interesses afetados, por um lado, da sociedade; por outro, do indivíduo.59

Discute-se também o grau de violação ao princípio da igualdade em decorrência do emprego da discriminação etária para a garantia de direitos, com o argumento de que, na ausência de um nexo lógico entre a discriminação etária e os fins com ela pretendidos, a diferenciação jurídica venha ser considerada inconstitucional.60

No entanto, o direito à velhice surge de uma especial exigência de justiça em atenção à identidade do idoso, como pessoa em particular condição e em respeito ao seu lugar no mundo. Ademais, a própria Organização Mundial de Saúde estabeleceu como limite divisório entre a fase adulta e a velhice a idade de 60 anos, dada a dificuldade de se definir a idade biológica e da ausência de outro critério que melhor identifique o ingresso a essa fase da vida.61

Como se vê, em tantos exemplos no ordenamento jurídico brasileiro, a idade é um possível critério jurídico diferenciador e a Constituição Federal de 1988 utiliza-o em vários de seus dispositivos. Assim como as crianças e os adolescentes, aos quais é destinado um conjunto de normas que tutela os direitos inerentes às necessidades que possuem pelas características próprias da idade, os idosos também são sujeitos de especial proteção em razão de suas condições particulares e também do contexto social atual, exigindo, portanto, as atenções políticas necessárias à garantia de sua dignidade.

O Estatuto do Idoso trouxe extensa proteção ao idoso, assegurando-lhe todos os direitos fundamentais inerentes à condição de pessoa, já que, segundo acentua Paulo Roberto Barbosa Ramos, a velhice não lhe retira a qualidade de sujeito de direito:

[...] os velhos são sujeitos de direito, o que comprova que o fato das pessoas irem envelhecendo não lhes retira, em hipótese alguma, a sua dignidade, porquanto continuam sendo seres humanos, portadores dos mesmos direitos dos quais são sujeitos todas as criaturas de semblante humano. Dessa forma, nenhuma sociedade pode ignorá-los, deixando de desenvolver políticas públicas voltadas a atender as

      

59

NUSSBERGER, Angelika. Limites de idade como problema do direito constitucional. In: SARLET, Ingo

Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.492.

60

GODINHO, Robson Renault. A proteção processual dos direitos dos idosos. Ministério público, tutela de direitos individuais e coletivos e acesso à justiça. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.8.

61

PAPALÉO NETTO, Matheus. Gerontologia: a velhice e o envelhecimento em visão globalizada. São Paulo: Editora Atheneu, 2005, p. 502.

suas necessidades, necessidades essas facilmente averiguáveis a partir do simples conhecimento da realidade desse segmento em cada sociedade.62

O amplo rol de direitos contemplados no Estatuto do idoso, associado às linhas de ação da política específica de atendimento, enumeradas no seu art. 47, revelam quão veemente é o desígnio de amparo total a esse contingente humano, dado o fenômeno do envelhecimento populacional brasileiro.

A questão social do envelhecimento, no entanto, ainda não tem a visibilidade que precisa ter, pois, no Brasil, as contradições regionais e a desigualdade social, que refletem a injusta distribuição de renda da população, estão presentes em todas as etapas do curso da vida, dificultando aos brasileiros de todas as idades a vivência real da cidadania como um direito. Essa luta começa na infância, continua na adolescência, juventude, idade adulta, culminando na velhice, por direitos básicos, como saúde, educação, emprego, enfim, pela dignidade do ser humano.63

O art. 46 do Estatuto do Idoso determina que a política de atendimento deverá ser implementada por meio de conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, enumerando, em seguida, as linhas de ação dessa política. A política pública de atendimento à pessoa idosa está vinculada, portanto, à ação estatal, uma vez que cabe ao governo o dever de coordenar as ações governamentais e não governamentais voltadas ao atendimento das necessidades desse contingente populacional. Para tanto, o gestor público observará os ditames dos tratados e convenções internacionais atinentes à matéria, as recomendações dos Planos de Viena e de Madri, os mandamentos constitucionais pátrios e as Leis 8.842/94 e 10.741/03.

O estudo da Lei 10.741/03 leva à conclusão de que, em vários de seus dispositivos, há uma clara limitação do poder-dever de discricionariedade do gestor público, de modo a restringir a sua liberdade de escolha entre cumprir ou não cumprir tais preceitos.

O art. 3o dessa lei, por exemplo, proclama a obrigação do Poder Público (e também de

outros agentes sociais, como a família) em assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer,

      

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RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Fundamentos constitucionais do direito à velhice. Florianópolis: Obra Jurídica, 2002, p.79.

63

BORGES, Maria Claudia Moura. O idoso e as políticas públicas e sociais no Brasil. In: SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von; NERI, Anita Liberalesso; CACHIONI, Meire (Org.). As múltiplas faces da

ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Deixa claro, portanto, o caráter obrigatório de atuação do Poder Público.

Mais adiante, o art. 9o dispõe que é obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade. Novamente, a lei ressalta a obrigação do Estado para com as demandas da pessoa idosa.

Assim, a discricionariedade administrativa restringe-se, em tais casos, à eleição dos meios, programas e planos dos quais se servirá o gestor público para a realização dos direitos previstos. Conclui-se, pois, pela prevalência do critério de oportunidade quanto à forma de execução das ações, descabendo a escolha quanto ao cumprimento do estabelecido.64