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2. O estereótipo

2.1 O estereótipo na visão de dois sociólogos

A partir de estudos empreendidos pela Escola Paulista de Sociologia, o problema racial começou a ser pensado no âmbito da sociedade de classes, “acoplado” à problemática da mudança. Roger Bastide e Florestan Fernandes não só introduziram na Universidade de São Paulo os estudos sobre o negro como também alteraram o paradigma da reflexão sobre

as relações raciais no Brasil, que até então guiava-se pelo paradigma culturalista.32

No livro Brancos e Negros em São Paulo33, os autores chamam a atenção para a

estreita relação que o estereótipo mantém com a estrutura de dominação-subordinação. Para Bastide, o “preconceito de côr”, cuja função no período escravocrata era justificar o trabalho escravo do africano, serve então, nos novos tempos, para justificar a divisão da sociedade brasileira em classes. Conquanto as especificidades das conjunturas históricas, o

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As formulações da psicologia cognitiva assim como das teorias da informação são alvo de críticas, pois: i) não reconhecem as especificidades nos fenômenos sociais, ii) percebem o estereótipo como um fenômeno neutro da vida social e, iii) tratam o estereótipo como uma mera redução.

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Cf. Maria Arminda do Nascimento Arruda (1996), “A imagem do negro na obra de Florestan Fernandes”, in Schwarcz & Queiroz (Orgs.), Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp.

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Roger Bastide & Florestan Fernandes (1959 [1953]), Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2ª edição.

autor afirma que “nem por isso vão variar os estereótipos antigos, mudarão apenas de finalidade” (1959, p. xiii).

A partir da análise dos questionários aplicados em escolas de São Paulo, os autores

procuraram determinar os padrões das relações raciais na classe média branca paulistana.34

O questionário composto de quatro partes35 apresenta resultados significativos.

“Os estereótipos contra negros e mulatos estão bastante espalhados. 75% da amostra admitem 23 estereótipos ou mais contra negros. Nenhum rejeita a totalidade dos estereótipos contra negros. Para mulatos, o quadro global é um pouco menos desfavorável, ainda que bastante semelhante. Os mulatos são julgados inferiores ou superiores aos brancos com base nas mesmas características dos negros, mas com porcentagens algo inferiores. Os estereótipos mais largamente aceitos são: falta de higiene (aceito por 91% para negros), falta de atrativos físicos (87%), superstição (80%), falta de previdência financeira (77%), falta de moralidade (76%), agressividade (73%), indolência (72%), falta de constância no trabalho (62%), “perversidade sexual (51%), e exibicionismo (50%)” (1959, p. 363).

Para Bastide, o estereótipo não é, em si mesmo, um componente imediato da estrutura social, mas ele interfere no ajustamento dos sujeitos em situações sociais que se repetem, isto é, interfere em situações que fazem parte da estrutura social. Apesar de não

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A amostra consistia de 580 estudantes “brancos” de cinco escolas normais de São Paulo com idades que variavam de 15 a 44 anos tendo por média 19,9 anos. 483 indivíduos eram mulheres e 97 eram homens. Os dados sócio-econômicos acerca dos pais dos indivíduos que responderam o questionário indicam “ascendência predominantemente das classes ‘baixa-média’ e ‘alta-média’. 75% dos pais têm ocupações não manuais (...) Com relação às origens étnicas dos pais, 384 indivíduos são filhos de brasileiros, 102 têm um dos pais estrangeiros e 85 têm ambos os pais estrangeiros. Dos 384 de brasileiros, 232 têm pelo menos um dos avós estrangeiro”. E tendo no horizonte o livro de Samuel H. Lowrie, Origem da

população de São Paulo e Diferenciação das classes sociais, Bastide afirma que essa situação étnica dos entrevistados

parece ser representativa da classe média de São Paulo. Assim, afirma que os resultados de seu estudo são válidos apenas para a classe média “branca” de São Paulo (1959, p. 361-362).

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Primeira parte: uma lista de 41 estereótipos do conteúdo de uma análise da literatura brasileira e do folclore oral e para cada pormenor (previdência, sugestibilidade, auto-controle, inteligência, etc) foi perguntado se o indivíduo considerava primeiramente os negros, depois os “mulatos”, como inferiores, iguais ou superiores aos brancos. Segunda parte: uma série de 27 questões sobre normas de comportamento social (Ex: “devem as crianças brancas e de côr brincarem juntas?”, “devem casar-se entre si”, etc). Terceira parte: uma série de 16 questões sobre o comportamento efetivo dos indivíduos, semelhante no conteúdo a algumas questões da segunda parte. Quarta parte: uma série de 16 questões relativas ao comportamento pessoal hipotético, colocadas na forma condicional: “você se casaria”, “apaixonar-se-ia por”, “sairia com um negro, com um mulato claro”, etc.

existir legalmente a segregação racial no Brasil, “o estereótipo é no fundo um preconceito de classe” (1959, p.179).

Os resultados da pesquisa levam Bastide a afirmar que os estereótipos persistem na vida social porque servem de justificativa à diferenciação social.

Se A integração do negro na sociedade de classes discute a formação, consolidação e expansão do regime das classes sociais no Brasil, em O Negro no Mundo dos Brancos Florestan Fernandes retoma os impasses da questão racial brasileira ao analisar a demora sócio-cultural do negro. O autor procura mostrar como determinados fatores36 atuaram na mesma direção e como produziram efeitos sócio-dinâmicos da mesma natureza na medida em que mantiveram a desigualdade racial em níveis e segundo um padrão sócio-cultural estranho à ordem competitiva e a uma sociedade multi-racial democrática (Fernandes, 1972).

A posição inferiorizada do negro pode ser reconhecida nas representações coletivas do folclore brasileiro. O folclore brasileiro é, para o autor, a fonte de estereótipos que fornecem juízos de valor aos indivíduos, regando a sua conduta social. Da paremiologia o autor retira essa amostra37:

“Preto não é gente”.

“Negro quando não suja na entrada, suja na saída”.

“O negro na festa do branco é o primeiro que apanha e o último que come”.

“Negro tem o pé de bicho, unha de caça e calcanhar rachado; o dedo minhinho é como semente de pepino de S. Paulo; o cabelo é carapinha”.

“Deitado é uma laje, comendo é um porco, sentado é toco”.

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São quatro os fatores: i) as tendências assumidas pela transformação global da comunidade; ii) caráter sociopático das motivações que orientaram o ajustamento do “negro” à vida na cidade e à natureza anômica das formas de associação que puderem desenvolver; iii) a inocuidade de reação direta do negro e do mulato contra a “marginalização da gente negra” e iv) aparecimento tardio e débil de correções propriamente estruturais do padrão herdado de desigualdade racial.

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Do material recolhido pelo próprio autor em bairros da cidade de São Paulo, tem- se:38

“Negro não nasce, aparece” (Geral).

“Negro não morre, desaparece” (Geral).

“Negro não almoça, come” (Cidade, Belém, Santa Cecília).

“Negro não come, engole” (Belém, Santa Cecília).

“Negro não casa, ajunta” (Belém).

Diante de todo o material, o autor afirma que os estereótipos passam a funcionar antes das pessoas entrarem em contato umas com as outras, determinando a priori o aspecto que as interações possam assumir. Ao instituir a inferiorização social do negro, os estereótipos representam a estabilização definitiva dos padrões "aristocráticos" na sociedade (1972).

Como não se trata de fazer aqui uma discussão exaustiva da questão racial na perspectiva desses autores, procurei apenas indicar, através de uma exemplificação sumária, o tratamento dado por eles à questão do estereótipo, o núcleo central de seus argumentos. Para Bastide, os estereótipos em relação aos negros persistem posto que são

necessários para justificar a estrutura de dominação-subordinação na sociedade.Persistem

porque justificam. Paralelamente, Fernandes afirma que os estereótipos persistem porque, ao fornecerem juízos de valor, determinam padrões de comportamento nas relações interpessoais. Persistem porque determinam por antecipação. A análise sociológica revela, além do conteúdo pejorativo da estereotipia, uma sedimentação que “concentra” e que não permite mudança.

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