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O estrangeiro na condição de sujeito pesquisador

Capítulo 3 – Caminhos trilhados

3.3. O estrangeiro na condição de sujeito pesquisador

Realizei o trabalho com agricultores de origem quechua na serra do Peru, o que fez de mim estrangeira quando em campo de investigação. Nesse caso, ser estrangeiro significa pertencer a uma cultura bastante distinta da do contexto pesquisado. Foi um momento delicado porque, além de pesquisadora, papel que a priori já esboça algum tipo de assimetria na relação, era estrangeira e branca entre uma população predominantemente indígena. Esses elementos podem remeter ainda mais ao passado de dominação de europeus colonizadores sobre indígenas colonizados, traço esse muito forte nos povos da América Latina.

O seguinte lugar-comum Eu, estrangeira, em pesquisa aos costumes nativos, desde a elaboração da proposta, era uma grande preocupação e motivo de incômodo. Como não compactuar com essa lógica? Como estabelecer uma relação intercultural capaz de beneficiar este estudo e respeitar os interlocutores andinos? Essas não foram perguntas fáceis de responder, mas serviram como reflexão desde o momento de

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Quéchua ou quíchua é uma importante família de línguas indígenas, presente em diferentes países

andinos como Peru, Equador, Bolívia, e Norte do Chile e da Argentina. É atualmente o idioma mais falado entre os campesinos da serra Central do Peru.

preparar a ida a campo até o processo de análise dos dados durante a escrita desta dissertação, principalmente quanto ao que se compreende como cultura e sobre a relação entre diferentes culturas sem haver essa tensão dominante-dominado, apesar da necessidade real de haver um entrevistado e um entrevistador.

Além disso, para compor esta discussão, necessitamos trazer à luz a noção proposta por Geertz (2008) de teia de significados que, grosso modo, corresponde à constituição de sujeitos sociais forjados em certo contexto social, visto que diferentes culturas constroem suas interpretações a partir de dada realidade. Para entender melhor essa relação, é importante conceituar o que chamamos de cultura neste estudo. Por entendermos a complexidade que essa palavra carrega e sabermos que ela não é de fácil definição, vamos considerar o conceito cunhado por Geertz:

Acreditando, como Marx Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais, enigmáticas na sua superfície. (GEERTZ, 2008, p. 4)

Essa ideia de considerar a cultura como teias e análises e uma ciência

interpretativa à procura de significado permite-nos estipular um nexo muito além da

tensão dominador-dominado, ao adicionar à condição do sujeito social pesquisador a possibilidade de se vincular ao entrevistado de forma a permutar ideias no eixo

observação-interpretação.

Nesse caso, ter vivido um ano no Peru permitiu-nos conhecer previamente parte da cultura que hoje estudamos. Muitos episódios de estranhamento ocorreram nesse tempo, porque há, dentro desse contexto, uma lógica de significações, muito diferente da minha compreensão como sujeito constituído em outra lógica cultural.

Em 2011, ocupamos alguns lugares sociais diferentes. Representamos os papeis de psicopedagoga, educadora, contadora de histórias, brasileira, militante da causa, amiga, vizinha e foi tudo isso que me possibilitou a inserção naquela cultura. Segundo Braga:

[...] as posições que ocupamos relacionam-se com os nossos diversos e dinâmicos lugares sociais/institucionais.” Não lembramos (nem somos) como um indivíduo puro, mas como professores, alunos, funcionários públicos, balconistas [...] nem nos lembramos dos fatos como realmente ocorreram. Como quem esta amando, como quem está dando aula, como quem está de luto, como quem esta na sala de espera de algum consultório, como quem está dançando, como quem está sofrendo... Enfim, múltiplos modos de dividir, rotular, classificar os possíveis grupos de que fazemos parte (e cada um dos imagináveis, comportando outras tantas divisões que estão em constante movimento). A forma como lembramos e falamos de nossas lembranças depende desses entrecruzamentos constantes, das situações que vivemos, que são marcadas pelos lugares sociais que ocupamos. (BRAGA, 2002, p. 60)

Logo, o desafio, durante o trabalho de campo, foi colocar-nos como pesquisadora e garantir um distanciamento mínimo necessário na tentativa de observar e interpretar desse novo lugar, conforme as diferentes atribuições sociais que já ocupamos, para conceber uma nova visão, agora de pesquisadora, admitindo que há o entrecruzamento do diferentes lugares sociais já ocupados.

A experiência de 2011 trouxe-me alguns elementos culturais da identidade andina que se revelam na introspecção, no pouco falar, no ritmo diferenciado de agir que, do ponto de vista estrangeiro – o nosso –, parecia lento, quase parado. A expressão deles era sempre de desconfiança diante do desconhecido, do diferente, do que não pertencia àquele contexto. Além dessas características, havia o medo e a apreensão de um povo que viveu no cotidiano as marcas da violência imposta pelo conflito armado. E todas essas peculiaridades se manifestavam diante de uma pesquisadora estrangeira, que informava no rosto e no sotaque que não pertencia àquele lugar. Porém, ao analisar a vivência no processo das entrevistas no início de 2014, observamos que ter convivido com aquela gente em 2011 e ter ocupado outros papéis sociais garantiram-nos uma visão diversa, mais aberta em relação aos entrevistados. Uma das estratégias que empregamos foi começar a conversa (pré-entrevista) contando sobre o tempo que moramos em Huánuco, sobre o projeto Acordando Palavras e explicar o porquê do meu interesse em escutar as histórias de vida deles. Isso angariou a simpatia quase imediata dos entrevistados cuja maioria conhecia a região onde trabalhamos e entendia das necessidades locais.

Apesar disso, é necessário pensar também que não pertencer àquela cultura pôde viabilizar uma visão mais distanciada, capaz de beneficiar a análise dos dados ao buscar descrever e interpretar os elementos que os entrevistados nos apresentaram nas

narrativas, principalmente porque essa condição permite aspectos tanto positivos quanto negativos, segundo a análise de Simmel (1983).

A unificação de proximidade e distância envolvida em toda relação humana organiza-se, no fenômeno do estrangeiro, de um modo que pode ser formulado da maneira mais sucinta dizendo-se que, nesta relação, a distância significa que ele está próximo, mais distante, na verdade está próximo, pois ser um estrangeiro é naturalmente uma relação muito positiva: é uma forma específica de interação. (SIMMEL, 1983, p. 183)

Segundo Braga (2011), Simmel aponta o olhar privilegiado do estrangeiro por meio da “[...] posição no grupo, caracterizada pela mobilidade e ausência de laços que em geral os constituem, como parentesco, localidade, ocupação.” Essa característica tem relação com o fato do estrangeiro ser maior objetivo e livre na participação em situações sociais (BRAGA, 2011, p. 114).