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O frágil narrar da educadora, hoje pesquisadora

Capítulo 3 – Caminhos trilhados

3.4. O frágil narrar da educadora, hoje pesquisadora

Na modernidade, é muito comum guardar lembranças com as ferramentas tecnológicas com que contamos, como vídeos e arquivos de fotografias. Antigamente era costume compor álbuns de fotos de acontecimentos relevantes. Nesses álbuns, de papel, como livros, os retratos eram colados como num suporte de memória. Porém, hoje, a prática dos álbuns está em desuso, ao menos nesse tipo de formato; o que vemos com mais frequência são arquivos digitais em que as fotografias ficam em pastas virtuais nos computadores.

Desde a realização do trabalho, em 2011, coleciono uma série desses arquivos com fotos e filmes que registram o que lá vivi, mas não tenho nenhuma narrativa escrita. Uma ambição que alimentei nesses anos foi contar as histórias que ouvi e tanto me impressionou. Apesar desse desejo, nunca fui capaz de realizá-lo. Até começava a escrever, entretanto o que vinha era o silêncio. Muitas foram as investidas ao longo do tempo, porém só anotei poucas frases, logo esquecidas, ainda que as lembranças permaneçam vivas na memória.

Desde 2011, consegui redigir apenas um texto e ainda recordo do que senti no momento da escrita. Era 9 de setembro de 2011, depois de um dia árduo de trabalho no assentamento, após vários seguidos em observação das dificuldades daquela população. Resolvi contar a história de moradores do assentamento onde trabalhava. Queria constituir uma narrativa, todavia hoje, quando retomo o texto, apreendo apenas uma breve reflexão, longe do que pretendia produzir.

O que ali se vive produzia em mim vestígios, sentimentos e ponderações, porém uma inabilidade imensa em relatar isso, provavelmente relacionada à inaptidão de narrar do homem moderno, como afirma Walter Benjamin em O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (2012) e em Experiência e Pobreza (2012):

A arte de narrar está em via de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e infalível: a faculdade de intercambiar experiências. [...] A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorremos todos os narradores. (BENJAMIN, 2012, p. 197, 198)

Naquela tentativa estava o imenso desejo de poder contar o que vivemos em Huánuco; tínhamos necessidade de registrar o significado daquela experiência e garantir que outros indivíduos pudessem conhecer a realidade daquela população por intermédio de nosso discurso. Estes fragmentos são parte daqueles ensaios:

Fragmento 1

Nos assentamentos humanos, a poeira encrosta nas pessoas a tal ponto que tudo parece uma coisa só! Poeiras que são pessoas e pessoas que são poeiras! Tal constatação, confesso, tem doído na carne e na alma de uma brasileira qualquer, que foi escolhida por esse lugar onde a pobreza é cercada de uma paisagem sem igual de exuberância.

Justo eu, que sempre degustei paisagem, sobretudo de natureza, devo dizer que não tenho conseguido sentir o mais puro que esse cenário montanhoso me pode propiciar, inclusive, porque, logo vizinha dessas paisagens exuberantes que só parte dos Andes pode nos presentear, sobrevive gente! Gente que é poeira, poeira que é gente!

Fragmento 2

Gente de diversas histórias vive em uma realidade tão inóspita... [...] Penso que ser de uma zona marginal, em termos práticos, é algo como ser um

coeficiente zero dentro de uma mentalidade social, sobretudo se for de uma zona marginal, dentro do terceiro departamento paupérrimo de uma nação, considerada pobre dentro da nossa vasta Latino-América!

O vento grita, a poeira agride, a falta de água toca cada porta nas manhãs, em que gentes descem da montanha para ir a uma torneira pública que mingua gotas de água de uma fonte duvidosa. É o único abastecimento de água nessa realidade. O espaço físico berra, mas as pessoas parecem silenciadas pela poeira atrevida que cega os olhos e cala o espírito mais contestador.

Fragmento 3

É nesse lugar que as pessoas, de crianças, se transformam em velhos, sem que tenha havido um processo intermediário que muitos dizem ser a juventude, um dos melhores tempos da vida. Como devem ser os melhores tempos de uma população que, no ciclo natural da existência, de crianças passam a ser velhos?

Judiados pela sobrevida, pelo novo dia de cada alvorada dentro do coeficiente zero!

Dói nos olhos, dói na alma… Silêncio!

O texto não tinha título, somente data (9 de setembro de 2011) e o chamei de

Texto 1, assim, sem precisão. Em vez de narrar o que vi, acabei por utilizar alguns

elementos do modo como determinadas cenas chegavam até mim, como alguém que não pertencia àquele cenário e, talvez por não conhecer a fundo aquelas histórias, era capaz, apenas de tecer poucas ideias do que observava. O fragmento 1 cita o assentamento humano e traz os dois principais elementos constituintes daquele ambiente: a poeira e as pessoas e a forma com que uma realidade de escassez acaba, ainda que simbolicamente, mesclando um pouco de tudo que constitui aquele lugar: poeira e pessoas. No fragmento 2, surge a beleza das montanhas em contraste com a pobreza desvelada nessa realidade de assentados. Já o fragmento 3 traz a constatação de que a inospitalidade do espaço geográfico marca os moradores de tal modo que eles envelhecem ainda mais rapidamente, em descompasso com a idade cronológica. Por fim, o silêncio marca o observador a ponto de fazê-lo calar-se.

“Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua realidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais” (BENJAMIN, 1996, p. 197). Esse distanciamento, a tentativa de escrever e a visível impossibilidade disso se relacionam ao fato, segundo Benjamin, de que o narrar estaria ligado à Erfahrung (experiência) que já não há; há somente Erlebnis (vivência). Assim, a narrativa como outrora se concebia não existe mais, logo seria quase impossível produzir um narrador dentro dessa concepção.