• Nenhum resultado encontrado

O Ethos da cidadania brasileira na Pós-Modernidade estaria na diferença?

5. ETHOS DACIDADANIA BRASILEIRA E A QUESTÃO DA JUVENTUDE

5.1 O Ethos da Cidadania

5.1.3 O Ethos da cidadania brasileira na Pós-Modernidade estaria na diferença?

edades contemporâneas. No Brasil, esse embate ajuda a montar um quadro interessante que permite observar a maneira que diversas políticas sociais transversais (capítulo 2) vêm sendo elaboradas desde a Constituição Cidadã em 1988. Pode-se dizer que existem dois grupos de opiniões divergentes, uma favorável à fragmentação da identidade cultural nacional e outra defensora de sua permanência.

Do lado dos favoráveis da fragmentação, parece existir um consenso que desde o final do século XX (entre as décadas de 70 e 80), a sociedade contemporânea passa por uma grande crise do Estado-nação e a identidade cultural nacional face a globalização (FERNANDES, 2001; CARVALHO, 2005; HALL, 2006). E, apesar de não se saber ao certo sua amplitude, profundidade ou mesmo sua velocidade, é possível detectar que a internacionalização do sis- tema capitalista, a criação de blocos econômicos, a emergência dos novos Estados europeus,

do antigo império soviético e a fusão dos Estados europeus ocidentais têm causado a redução do poder estatal assim como o deslocamento das identidades nacionais pelos fluxos culturais em troca (CARVALHO, 2005; HALL, 2006).

Nesse aspecto, Hall (2006) afirmar que as identidades modernas estão sendo "descentra- das", isto é, deslocadas ou fragmentadas. Surge um novo indivíduo pós-moderno com várias identidades além da nacional. Para ele, os adeptos de uma crise das identidades modernas acreditam que “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algu- mas vezes contraditórias ou não resolvidas” (HALL, 2006). Direitos políticos, sociais e civis tornam-se alvos de exigências dessas minorias culturais assim como da maioria da população que observa, nesses contentamentos, um rompimento com a ordem universal garantidora de seus privilégios.

Por outro lado, existem pesquisadores que defendem o fortalecimento do Estado-nação e da identidade nacional na contemporaneidade. Nascimento (2011), questiona o fato dos auto- res contemporâneos, favoráveis da falência do Estado-nação, esquecerem-se de levar em con- ta dados observáveis da realidade em que vivem. Para ele, esses autores, assim como outros do passado (como Marx em seu Manifesto Comunista), não levaram em conta os aconteci- mentos que indicavam exatamente o oposto do que afirmavam. Nascimento (2011) afirma que

é curioso que tanto no século XIX como no início deste século XXI, observa- dores atentos às realidades de seu tempo, como o próprio Marx, negligencia- ram acontecimentos que indicavam exatamente o oposto do que estavam su- pondo. No mesmo ano que o Manifesto Comunista foi publicado, uma explo- são de movimentos nacionalistas varreu a Europa, fazendo que aquela época ficasse conhecida como a “primavera das nações”. Da mesma forma, o histo- riador britânico Eric Hobsbawm escreveu logo após a queda do Muro de Ber- lim que o nacionalismo tinha se tornado um fenômeno atávico, deixando de ser um vetor importante do desenvolvimento histórico como tinha sido no sé- culo anterior. No entanto, a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real foram seguidos de uma onda nacionalista tão forte e disseminada, que poderia facilmente ser chamada de uma nova “primavera das nações”: dos es- combros da União Soviética surgiram quinze novos países (NASCIMENTO, 2011).

Para Nascimento (2011) a resposta para a histórica ênfase na falência do Estado-nação e da identidade nacional pode estar na ênfase “dada ao econômico tanto no pensamento marxis- ta como também no liberalismo”. Pois, tais pensamentos tendem a eliminar particularismos étnicos e identitários de cunho nacional. De acordo com Nascimento (2011), é necessário evi-

tar o reducionismo econômico comum sobre a questão do nacionalismo e observá-lo sobre as dimensões culturais e psicológicas das comunidades nacionais para “compreender a enorme força atrativa que o nacionalismo possui, fazendo com que milhões de pessoas sacrifiquem suas vidas em prol de suas nações” (NASCIMENTO, 2011)

Nascimento (2011) corrobora que a identidade nacional ainda é o único elo capaz de en- trelaçar a sociedade perpassada por diferenças de classe, gênero, etnia etc. Ele informa que é o “pertencimento a uma comunidade, e o sentimento de dignidade que advém de fazer parte de uma nação, a grande força psicológica que faz o nacionalismo resistir às enormes mudanças históricas que o mundo tem sofrido” (NASCIMENTO, 2011).

Dessa maneira, se a cidadania moderna brasileira está vinculada às questões do surgimen- to do Estado-nação e orientada pelo poder unificador identidade nacional, como é possível observar a cidadania pós-moderna face aos constantes movimentos sociais que surgiram des- de a década de 1970?

O presente trabalho não tem recursos para responder tal questionamento, mas sugere uma equação na qual tanto os aspectos unificadores modernos universalizantes (como a identidade nacional) estão constantemente sob pressão da pós-modernização da cultura62 com suas novas

identidades culturais. Contudo, tais identidades parecem não prezar um deslocamento absolu- to da identidade nacional como defende Hall (2006), pois ainda estão ligadas ao Estado-nação por meio de suas exigências participativas e inclusivistas. Tais movimentos indicam uma de- fesa de inserção na comunidade cultural imaginada e não decreto de sua falência. Os Estados ainda se mostram como referência para garantir os direitos básicos dos movimentos contem- porâneos. Os objetivos parecem estar focados em colocar a diferença como ponto de partida com o aspecto universal da cidadania moderna.

Nesse sentido, a questão da diferença representa o reflexo de exigências culturais das identidades que tentam ganhar espaço no cenário político e questionam a cidadania moderna a fim de ampliar a participação na comunidade imaginada do Estado-nação. Para Young (1989, 1990), o debate sobre a diferença amplia a cidadania ao questionar a cidadania moderna em

62Por pós-modernização da cultura Turner (1994) afirma que é um processo de “aumento e diferenciação da cultura como consequência da pluralização dos estilos de vida e a diferenciação da estrutura social; o emprego da ironia, alegoria, ‘pasti- che’ e montagem como estilos argumentativos e como componentes de retórica; a erosão das ‘grandes narrativas’ de legiti- mação na política e na sociedade; a celebração da ideia de diferença e heterogeneidade (contra uniformidade e padronização) como guias mínimos na política e na moralidade; a globalização da pós-modernização da cultura com a emergência das redes globais de comunicação por satélites, que estão associados com vigilância miliar, a emergência da ênfase central na flexibili- zação e na auto consciência na personalidade e no estilo de vida; e o declínio da ‘sociedade industrial’ e sua substituição pelo ‘pós-fordismo’ e ‘pós-industrialismo’ ”.

sua plenitude, pois o ideal universal construído sob o manto da imparcialidade continua a manter características excludentes de grupos sociais.

Young (1990) coloca que a imparcialidade seria caracterizada pelo princípio racional mo- ral fruto do pensamento iluminista que tinha como objetivo construir um ideal de “esfera polí- tica centrada na universalidade da vontade geral. Este princípio tinha como objetivo abando- nar todas as diferenças e particularidades na esfera privada da família e da sociedade civil” (YOUNG, 1990). O importante seria justificar a igualdade a ser estabelecida entre os que se diziam semelhantes na esfera pública.

Segundo a autora, o conceito de imparcialidade foge da concepção fornecida pela “ética dos direitos”63 e se expressa pela lógica racional que transcende o particular, nega e diminui a

diferença reduzindo-a, consequentemente, à unidade. Para a autora, existem três formas nas quais a razão imparcial recusa a diferença. A primeira é a negação das particularidades das situações, que as reduz a um número limitado de opções, sob a perspectiva de limitá-las em um único padrão ou princípio estabelecido. A segunda é a tentativa de dominação ou elimina- ção da heterogeneidade das paixões justamente por que busca a não interferência das mesmas. Seria abstrair o indivíduo no intuito de negar as experiências pessoais colocando-o longe de categorias que possam diferenciá-lo de outros. Na terceira forma, o melhor modo de reduzir as particularidades à unidade é reduzir a pluralidade de subjetividades a uma.

Isso significa que o ideal de imparcialidade, sob o preceito da universalidade, representa o ponto de vista no qual todos os indivíduos racionais podem adotar, abstraindo as situações particularizantes que os individualizam. Assim, é possível observar que as normas racionais estabelecidas reduzem as diferenças a uma unidade e excluem aspectos considerados diferen- tes da norma vigente. “A diferença então se torna uma oposição hierárquica entre o que se encaixa dentro ou fora das categorias estabelecidas” (YOUNG, 1990).

Para Young (1990), estabelecer valores de referência universais e imparciais para a orga- nização social e política pode ser problemático. Segundo ela, esse arranjo determinado oculta o modo pelo qual as perspectivas dos grupos dominantes se apresentam como universais além de imporem hierarquias estruturais nos processos de decisão. Ademais, a redução das diferen- ças à unidade constrói hierarquias que asseguram a discriminação de grupos sociais específi- cos e sua despolitização em questões de poder (YOUNG, 1990).

63A “ética dos direitos” é representada pelo raciocínio moral definido pela justiça e direitos. O raciocínio seria o aparato normativo que justificaria a imparcialidade liberal. Partindo de uma lógica que desconsidera a percepção de interesses parti- culares, a imparcialidade nesse caso “mensuraria equitativamente os interesses e chegaria a conclusões de acordo com os princípios gerais de justiça e direto imparcialmente aplicados” (YOUNG, 1990).

Nesse aspecto, quando é reconhecido que as normas universais convivem com padrões de exclusão, um dos pontos interessantes é que tais padrões de exclusão se reproduzem, pois existe uma regularidade e uma forma padronizada nessa exclusão (YOUNG, 1989, 1990). Nessa perspectiva, existe um perfil dos excluídos e um dos incluídos. Da mesma forma que existe um perfil dos representantes políticos e um perfil dos sub-representados. Dessa manei- ra, existem padrões que se perpetuam no arranjo político liberal dado a força de normas e va- lores dos privilegiados que impossibilitam mudanças no núcleo das desigualdades.

Para Young (1989), o exercício contínuo da produção de uma democracia plural é a con- sideração das diferentes experiências e interesses. Segundo a autora, é a possibilidade dos in- teresses políticos serem construídos de maneira mais plural, ou seja, que diferentes experiên- cias se constituam como interesses politicamente relevantes para, então, permitir uma maior participação no debate político assim como nas decisões da esfera política.

As discussões surgidas tendo como referência as desigualdades do arranjo moderno mos- tram a importância de modelos democráticos que prezem a inclusão assim como a aceitação da diferença – em contraposição ao bem comum absoluto. Pode-se apostar em arranjos de democracias comunicativas em que o exercício básico da cidadania se daria de forma mais justa através da discussão dos problemas, conflitos e exposições de necessidades e interesses que ultrapassam o conjunto do corpo social (YOUNG, 1990).

A democracia comunicativa poderia promover condições institucionais que possibilitas- sem maior valorização do indivíduo dentro de suas capacidades e particularidades. Questões como o autodesenvolvimento e a autodeterminação seriam resultados diretos de tais políticas. Sendo autodesenvolvimento apreendido a partir das condições institucionais que permitiriam a interação e comunicação entre as pessoas, enquanto a autodeterminação permitiria possibili- dades de questionamento e desenvolvimento do arranjo político.

Ao observar que nenhuma democracia é perfeitamente justa, os cidadãos deveriam perce- ber a problemática da adoção do bem comum como princípio a ser idealizado sob o falso as- pecto de suas universalidades e igualdades. Na verdade, ao partir de concepções democráticas comunicativas, como as defendidas por Young, os cidadãos deveriam se apegar a “algo co- mum” no lugar da busca do bem de todos. A questão aqui é que: “a ideia de bem comum ou interesse geral longe de incluir, poderia, ao contrário, ser usado como meio de legitimar a ex- clusão social”64. Nesse sentido, a aplicação do consenso também poderia ser legitimador da

exclusão de elementos considerados perigosos à estrutura do bem comum e do Estado. (YOUNG, 1990).

A política moderna promove a universalidade da condição de cidadania no senso de “in- clusão e participação para todos dentro da vida política e do processo democrático.”(YOUNG, 1989). O problema é falsa sensação de que todos os indivíduos participam com condições iguais ao processo político. Ao contrário dos corolários estabelecidos pelos ideais iluministas, a realidade concreta expõe as incongruências que impedem pessoas e grupos a terem direitos garantidos.

Resumindo, a realidade dos movimentos sociais desde a década de 70 parece informar uma mudança na teoria e nas práticas da cidadania. Lister (2008) mostra que as transforma- ções contemporâneas modificaram para um foco maior tanto na requisição de direitos quanto no reconhecimento do acesso aos direitos formais: a conhecida afirmativa de “direito a ter di- reitos”. Aspectos mais sociológicos com base mais na ênfase em normas, práticas, significa- dos e identidades passam a implementar uma cidadania dita agora como cultural. Pakulski (apud LISTER, 2008) coloca que a cidadania cultural indica

o direito de ser “diferente”, de revalorizar identidades estigmatizadas, de abarcar abertamente e legitimamente até agora estilos de vida marginalizados e de propagá-los sem obstáculos. A comunidade nacional, em outras palavras é definida não somente em dimensões legais, políticas e socioeconômicas, mas também progressivamente no sociocultural. Cidadania total envolve o di- reito a participação cultural e representação não distorcida (Pakulski apud LISTER, 2008, traduzido pelo autor).

O ethos da cidadania pós-moderna brasileira parece reconhecer as lutas e reinvindicações de movimentos sociais representantes de novas identidades culturais sob a ideia de uma co- munidade cultural nacional garantidora de seus direitos. E, apesar de alguns autores coloca- rem a pós-modernidade como o fim do Estado-nação, o atual trabalho observa que as reinvin- dicações culturais, que se fortalecem a partir da exigência da redemocratização, tendem a for- çar uma maior participação dentro da identidade nacional que fornece as garantias básicas de reconhecimento de grupos sociais marginalizados. Elas indicam a defesa da inserção e não o fim do Estado-nação.

Apesar das críticas, a aceitação da diferença parece ampliar aspectos da cidadania mo- derna e ser o elemento característico da cidadania brasileira contemporânea65. É nesse contex-

to cultural que as políticas sociais transversais comentadas no capítulo 2 ganham folego no Brasil pós CRFB/88. A questão da juventude representa justamente a exigência do reconhe- cimento dessa identidade etária como grupo de indivíduos nacionais nos processos políticos do Estado brasileiro.