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O eu absoluto de Fichte e a constituição da realidade

No documento Arte e política no romantismo alemão (páginas 70-99)

1. P RENÚNCIOS ROMÂNTICOS

1.2. O eu absoluto de Fichte e a constituição da realidade

A influência de Fichte é decisiva para a compreensão do pensamento romântico; e somente de posse de seus fundamentos filosóficos é que a dimensão política do Romantismo abre-se plenamente à interpretação. Para confirmar a primeira proposição em sentido mais imediato, bastaria de início recuperar o famoso fragmento 216 da Athenäum, no qual Schlegel promove tanto um diagnóstico da época, quanto eleva a Doutrina-da-Ciência (Wissenschaftslehre) à

posição de obra transformadora, consonante com o espírito da Revolução: “A Revolução

Francesa, a doutrina-da-ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época. Alguém que se choca com essa combinação, alguém ao qual nenhuma revolução pode parecer importante, a não ser que seja ruidosa e material, alguém assim ainda não se alçou ao alto e amplo ponto de vista da história da humanidade”.132 A afirmação cabal contrasta com a refutação antecipada de uma possível crítica: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe e a Doutrina-da-Ciência de Fichte são imbuídos do elemento revolucionário da época e, para além do aspecto de força física e destruidora das revoluções, contam entre aquelas obras que no amplo decurso da história apresentam-se como verdadeiros pontos de inflexão no destino

humano. São estes livros – assim continua Schlegel de modo polêmico – “nos quais na época a

plebe barulhenta não prestou muita atenção”, aqueles que “desempenham um papel muito maior

do que tudo o que esta produziu”. É a partir de pensamentos, sejam os da filosofia ou da arte, que

se dão as mudanças radicais no horizonte histórico, e a obra de Fichte é identificada nesta passagem como uma das condutoras da Revolução do período. Mas qual o sentido desta relação

feita entre Fichte e a Revolução? Em que medida sua obra é revolucionária? O que a leva a ser considerada entre as maiores tendências da época?

Antes de tudo, é certo que o caráter revolucionário da filosofia fichteana diz respeito diretamente à formação da constelação romântica. Desde o juízo de Hegel, contudo, o pensamento romântico foi interpretado historicamente como uma derivação do projeto da Doutrina-da-Ciência e, de fato, como uma derivação “pobre” da intenção original do idealismo transcendental. Essa recepção atravessa o século XIX e se consuma, quase com as mesmas palavras, no Romantismo Político de Carl Schmitt, onde o império da realidade submete mais

uma vez a “estrutura ocasionalista da subjetividade”. Os românticos permanecem aqui sob a

sombra da filosofia idealista, situados no interior da “filosofia do sujeito”, sem o reconhecimento de sua dignidade filosófica.133 Mas se a influência de Fichte é indiscutível neste caso, uma visão

muito mais justa do Romantismo será obtida na medida em que esta relação – e, na verdade, toda

a relação com o idealismo absoluto – for posta em questão. Como veremos, o pensamento romântico surge efetivamente da crítica à proposição fichteana de fundação da filosofia no eu absoluto. Sem que se leve em conta o deslocamento radical implicado nesta crítica, é quase uma trivialidade a conclusão de que o Romantismo se resume a um mero ocasionalismo subjetivado. Assim, para levar a cabo uma compreensão do pensamento romântico que não lhe negue seu enraizamento na filosofia, será necessária uma exposição do sistema fichteano naquilo em que ele determinou a formação da constelação romântica. A partir desta exposição, a recepção de Schlegel e Novalis poderá ser conduzida de modo mais consistente nos capítulos seguintes, de modo a se ganhar uma clara visão do projeto filosófico em questão, bem como da implicação desse projeto sobre a dimensão do político.134

133 É natural, portanto, que os românticos tenham sido tratados no interior da Estética de Hegel. O conceito de ironia,

central no pensamento de Schlegel, é visto então como uma “aplicação” das premissas de Fichte no campo da arte: “A partir desta tendência e especialmente das convicções e doutrinas de Friedrich Schlegel desenvolveu-se, além

disso, em formas múltiplas a assim chamada ironia. Esta encontrou seu fundamento profundo, segundo alguns de seus lados, na filosofia fichteana, na medida em que os princípios dessa filosofia foram aplicados à arte. Tanto Friedrich Schlegel quanto Schelling partiram do ponto de vista fichteano; Schelling, para ultrapassá-lo completamente; Friedrich Schlegel, para desenvolvê-lo peculiarmente e dele se desarraigar”. HEGEL, Vorlesungen

über die Ästhetik I, op. cit., p. 93.

134 Deste modo, o diálogo crítico com Fichte será tratado ao início dos capítulos 2 e 3, na medida em que contribua

ao esclarecimento da posição filosófica própria do Romantismo. Uma vez que nos importa a reconstrução do horizonte no qual o pensamento político do Romantismo torna-se inteligível, procuraremos nos ater às obras do primeiro período de Fichte, que influenciaram diretamente Schlegel, Novalis e os outros integrantes do círculo. Sobre a reação de Schlegel e Schelling ao idealismo transcendental, cf.: FRANK, Das Problem ‘Zeit’ in der

A relação feita por Schlegel entre a Revolução e o pensamento de Fichte não soa estranha ao espírito de sua obra. Foi o próprio autor a afirmar que a Doutrina-da-Ciência havia sido o

“primeiro sistema da liberdade”. Este sistema arranca o homem “das correntes da coisa em si, da

influência externa que em todos os sistemas anteriores, mesmo no kantiano, se abatia de certo

modo sobre ele, e o coloca em sua primeira proposição fundamental como ser independente”.135

Por um lado, essa declaração possui um conteúdo propriamente filosófico. Ela indica o lugar constitutivo da liberdade no próprio pensar, na medida em que tal sistema de filosofia parte de um ato de autoposição do eu que, em última instância, abole por dentro a possibilidade de um realismo dogmático, isto é, de uma atividade completamente independente do eu, como seria o caso nas filosofias que admitem de algum modo a coisa em si; por outro lado, Fichte nunca se eximiu de extrair de sua filosofia todas as suas consequências políticas e de articulá-las com a responsabilidade sobre o seu tempo.

Já no escrito Contribuições para retificação do juízo do público sobre a Revolução Francesa, publicado um ano antes da primeira versão da Wissenschaftslehre, Fichte se utilizava de algumas ideias que norteariam seu sistema para afirmar o direito de um povo de alterar a constituição de seu Estado. Ele se colocava então contra os conservadores alemães como Rehberg e Friedrich von Gentz que, apoiados em Edmund Burke, questionavam a possibilidade de se alterar um contrato previamente firmado, sobre o qual se estruturavam os pilares da sociedade. Um tal contrato, no entanto, que resultava em um vínculo inalterável com Estado, seria para Fichte algo de contraditório e impossível, pois terminaria por impor a um povo a lei fundada em um princípio heterônomo. Justamente neste ponto Fichte introduz o termo cultura, para indicar com isso a libertação de todo e qualquer princípio que não possua sua fundação precisamente na

autonomia do homem: “Cultura significa o exercício de todas as forças com o fim da liberdade plena, a independência plena de tudo aquilo que não seja nós próprios, nosso puro eu”.136

Tudo

135“[Es reiße den Menschen] von den Feßeln der Dinge an sich, des äußern Einflußes los, die in allen bisherigen

Systemen, selbst in dem Kantischen mehr oder weniger um ihn geschlagen sind, u. stellt ihn in seinem ersten

Grundsatze als selbstständiges Wesen hin.” FICHTE, J. G. Carta de abril de 1795 ao poeta Jens Immanuel Baggesen.

Apud WAIBEL, Violetta L. Fichte, Hardenberg, Sartre und die Freiheit. In: STOLZENBERG, Jürgen; RUDOLPH,

Oliver-Pierre (org.). Wissen, Freiheit, Geschichte. Die Philosophie Fichtes im 19. und 20. Jahrhundert (Fichte-

Studien Band 35). Amsterdam: Rodolpi, 2010, p. 154-155.

136“Cultur heisst Uebung aller Kräfte auf den Zweck der völligen Freiheit, der völligen Unabhängigkeit von allem,

was nicht wir selbst, unser reines Selbst ist”. FICHTE, J. G. Beitrag zur Berichtigung der Urtheile des Publicums

über die frazösische Revolution. In: Fichtes Werke. Band VI: Zur Politik und Moral. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1971, p. 86-87. Há uma tradução portuguesa do primeiro capítulo do primeiro livro deste escrito, que

quanto possa se opor à liberdade do homem – a natureza, o destino ou a tirania –, tudo isso se opõe à finalidade própria da humanidade. Ver-se-á que essa finalidade tem seu fundamento em uma instância mais originária que a política, a saber, a do idealismo transcendental. Contra o argumento conservador de Rehberg impõe-se a própria lei moral, de modo que uma lei civil que nela não encontre respaldo, que não considere o homem fim em si mesmo, mas que proponha um fim que lhe seja externo, jamais poderá ter validade irrestrita: “Se o nosso verdadeiro e último fim final nos for estabelecido através de nosso puro eu e na sua forma, através da lei moral em nós, então tudo aquilo em nós que não pertença a essa pura forma, ou tudo aquilo que faz de nós

seres sensíveis, não é fim em si mesmo, mas mero meio para o nosso fim espiritual supremo”.137

Aquilo que se põe como oposto ao “fim final” e seu estabelecimento pelo puro eu mostra-se

enquanto sensibilidade (Sinnlichkeit), isto é, enquanto receptividade de objetos dados

externamente em nossas representações, tudo aquilo “que não é este eu puro”. No contexto da

justificação da lei civil ou do contrato, considerar o homem enquanto ser sensível equivale a permitir que algo que não pertence à sua autonomia lhe determine, ou, dito de outro modo, que haja uma lei que não seja determinada pela razão, e sim por algo outro, como o princípio de sucessão hereditária dos reis. A sensibilidade, neste sentido preciso daquilo que não é o eu puro, deve ser necessariamente dominada na ação de libertação do nosso eu. Não para que seja extirpada, mas para que deixe de ser soberana para ser moldada e formada pela razão. Deve haver

uma cultura da sensibilidade. “Por meio do supremo exercício destes dois direitos do vencedor

sobre a sensibilidade [sua dominação e seu cultivo] o homem se tornaria livre, isto é, dependeria

somente de si, do seu puro eu. A cada ‘eu quero’ teria de corresponder em seu peito um ‘está aí, no mundo dos fenômenos’”.138

O que motiva o argumento fichteano é, acima de tudo, a contraposição entre natureza e cultura. O reino cultural é o destino inexorável do homem, o que lhe exige a tomada de consciência da própria liberdade frente e sobre o mundo. A determinação do homem por algo

acompanha uma interessante explicação de seu contexto. Cf. MORUJÃO, Carlos; TERESA PEDRO, Cláudia Oliveira (org.). A Filosofia Alemã e a Revolução Francesa. Lisboa: Católica Editora, 2011.

137 “Wird uns durch und in der Form unseres reinen Selbst, durch das Sittengesetz in uns, unser wahrer letzter

Endzweck aufgestellt, so ist alles in uns, was nicht zu dieser reinen Form gehört, oder alles, was uns zu sinnlichen

Wesen macht, nicht selbst Zweck, sondern bloss Mittel für unseren höheren geistigen Zweck”. FICHTE, J. G.

Beitrag zur Berichtigung..., op. cit., p. 87.

138“Durch diese höchste Ausübung dieser beiden Rechte des Ueberwinders über die Sinnlichkeit nun würde der

Mensch frei, d. i. bloss von sich, von seinem reinen Ich abhängig werden. Jedem: Ich will, in seiner Brust müsste ein:

Es steht da, in der Welt der Erscheinungen entsprechen”. FICHTE, J. G. Beitrag zur Berichtigung..., op. cit., p. 88-

externo a ele seria uma privação de sua própria humanidade, na medida em que isso implicaria impor ao homem uma quididade imprópria. Ao contrário da natureza, que é algo, a essência do homem se encontra em sua formatividade, como será afirmado em uma passagem reveladora do Fundamento do Direito Natural:

Todo animal é o que ele é: somente o homem não é nada originariamente. Ele tem de se tornar aquilo que ele deve ser: e ele tem de ser tornar isso através de si mesmo, uma vez que ele deve ser um ser [Wesen] para si. A natureza concluiu todas as suas obras, apenas do homem ela retirou sua mão, e precisamente por meio de disso ela entregou o homem a si mesmo. A formatividade é, enquanto tal, o caráter da humanidade.139

À nadidade do homem enquanto homem corresponde a sua necessidade de formação. O fato de Fichte sublinhar o verbo ser, que caracteriza “todo animal” (“é o que ele é”), mostra que o animal é obra completa, concluída pela natureza, e que tem uma constituição própria, perene, isto é, o animal é em sentido pregnante, ele possui uma essência e um lugar fixo no cosmos. Por outro lado, é uma decorrência direta dessa afirmação que o homem não é: seu ser não é dado pela natureza, mas deve ser conquistado por sua própria obra. Dito de outro modo: o ser do homem é o devir de sua formação, é por meio de sua atividade que ele se torna aquilo que deve ser. Na medida em que é livre, o caráter da humanidade é formatividade (Bildsamkeit); o sufixo deste termo indica que ela não está formada, mas deve a todo tempo, segundo sua capacidade para tal, formar-se.140 Assim, o homem se separa da natureza enquanto um ente que está entregue a si

mesmo, e que por isso deve criar a si mesmo e sua “realidade” segundo o imperativo da razão.

Isso explica de modo mais fundamental a recusa obstinada de Fichte aos argumentos conservadores que negavam a legitimidade de mudança da constituição política em razão de um

139“Jedes Thier ist, was es ist: der Mensch allein ist ursprünglich gar nichts. Was er seyn soll, muss er werden: und

da er doch ein Wesen für sich seyn soll, durch sich selbst werden. Die Natur hat alle ihre Werke vollendet, nur von dem Menschen zog sie die Hand ab, und übergab ihn gerade dadurch an sich selbst. Bildsamkeit, als solche, ist der

Charakter der Menschheit”. FICHTE, J. G. Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenschaftslehre. In:

Fichtes Werke. Band III: Zur Rechts- und Sittenlehre. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1971, p. 80.

140 Essa passagem do Fundamento do Direito Natural fornece um indício do motivo das aproximações feitas entre a

filosofia de Fichte e o existencialismo. Justifica-se então a afirmação de Pareyson de que o estudo da filosofia fichteana exige uma libertação da visão de história da filosofia legada da tradição hegeliana e, mais importante, que seu estudo vem a ser possível pela renovação da historiografia filosófica a partir da filosofia da existência. Isso se estende também para o interesse que desde então se verifica na filosofia do “jovem Hegel” e no pensamento tardio de

Schelling. Somente quando a história do idealismo alemão deixa de ser um progresso retilíneo “de Kant a Hegel” é

que uma tal passagem pode ser considerada em sua riqueza própria. PAREYSON, Luigi. Fichte. Il sistema della

libertà. 2ª ed. Milano: Mursia, 1976, p. 46-55. Ver também o artigo de Waibel, acima citado, sobre o conceito de

contrato previamente dado: assim como a sensibilidade deve ser domada e cultivada, deixando de ser soberana, também a pessoa alguma pode ser dada uma lei, senão por si mesma.

O caráter próprio do homem será tratado de modo ainda mais claro no escrito Algumas preleções sobre a destinação do erudito. As ideias destas lições estão em íntima conexão com o sistema da Wissenschaftslehre, e Fichte inclusive afirma ao longo delas que sua “fundamentação” se daria apenas em suas preleções privadas, que naquele semestre diziam respeito justamente à parte teórica da Doutrina-da-Ciência. Uma breve análise sobre a destinação do homem neste escrito abrirá nosso caminho para a compreensão da Doutrina-da-Ciência, na medida em que aquilo que nas preleções públicas é dito de uma forma “popular” – dirigida ao público em um vocabulário de certo modo “externo” à linguagem propriamente filosófica – encontra-se fundamentado nos princípios filosóficos do sistema fichteano.

O que a princípio se encontra em jogo nas Preleções sobre a destinação do erudito é, coerentemente com seu título, a tentativa de encontrar, a partir do traço fundamental do erudito, sua finalidade enquanto tal. O erudito possui uma tarefa que diz respeito ao mundo com o qual

ele necessariamente se relaciona. Nesse sentido, o erudito “somente é erudito na medida em que

se opõe a outros homens que não o são; seu conceito surge através da comparação e da relação

com a sociedade”.141

Por isso, a resposta à pergunta sobre a destinação do erudito pressupõe, antes de tudo, a resposta à pergunta sobre a destinação do homem na sociedade, e esta, por sua vez, depende da resposta à questão sobre a destinação do homem enquanto tal, isto é, do homem na medida em que ele é considerado somente enquanto homem, ou, ainda, pensado segundo o seu conceito. O conceito de erudito, bem como sua tarefa, pode ser concebido apenas em sua relação essencial com o lugar do homem na sociedade e com o conceito da própria humanidade. O enfrentamento da questão proposta pelas preleções públicas toca então em um ponto ainda mais profundo, que diz respeito ao conhecimento daquilo que é o homem. Esse é o problema que, segundo Fichte, move a filosofia e todo o pensamento humano, enquanto um esforço para a

resposta da pergunta que se coloca nos seguintes termos: “Qual a destinação do homem em geral,

e por meio de quais meios ele pode alcançá-la do modo mais seguro?”142

141“Der Gelehrte ist nur insofern ein Gelehrter, inwiefern er anderen Menschen entgegengesetzt wird, die das nicht

sind; sein Begriff entsteht durch Vergleichung, durch Beziehung auf die Gesellschaft”. FICHTE, J. G. Einige

Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten. In: Fichtes Werke. Band VI: Zur Politik und Moral. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1971, p. 293.

142 “Welches ist die Bestimmung des Menschen überhaupt, und durch welche Mittel kann er sie am sichersten

Como esta questão é respondida nas preleções públicas? Por onde é necessário começar a respondê-la? Fichte sugere iniciar por aquilo que é propriamente espiritual no homem, isto é, seu eu puro, considerado pura e simplesmente em si, isoladamente, fora de toda relação com algo fora de si mesmo. Essa via, entretanto, está eivada por uma contradição. Pois embora seja falso que o eu seja um produto do não-eu, que seja portanto determinado por algo que lhe é

absolutamente externo – por “aquilo que é pensado como situado fora do eu, o que é diverso do

eu e oposto ele” –, é certo que o eu (enquanto eu puro) jamais é plenamente consciente de si

mesmo e nem pode sê-lo, senão em suas determinações empíricas. Tais determinações empíricas, por sua vez, pressupõem necessariamente um algo fora do eu. Dito de outro modo, no interior de uma busca pela destinação do homem, o homem enquanto tal não pode jamais ser pensado somente em seu elemento espiritual como eu puro, pois encontra-se sempre em relação com algo

que não é ele mesmo. “Já o corpo do homem, que ele chama de seu corpo, é algo fora do eu. Ele

não seria nem mesmo um homem fora dessa relação, mas algo simplesmente impensável para nós; se é que ainda pode-se chamar algo assim, que sequer é um objeto de pensamento, de um

algo”.143

O homem não é observado no interior destas preleções enquanto puro eu, na medida em seu elemento espiritual encontra-se sempre em relação com algo – como o seu corpo –, nunca está fora de toda relação. Considerar o homem enquanto tal significa em princípio muito mais pensá-lo fora de toda relação com seres racionais similares a ele. Há, em verdade, uma contradição interna entre o eu puro e o eu considerado em suas determinações empíricas, e esta contradição será aprofundada e fundamentada na Doutrina-da-Ciência, mas já se apresenta em suas consequências na investigação sobre a destinação do homem; é também, como veremos, essa contradição que estará nas bases da crítica romântica ao próprio Fichte, e que abrirá espaço para a visualização de uma insuficiência da concepção idealista de fundação a partir da

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