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Capítulo II – Direito ou Dever da Ingerência Humanitária

3. Direito Internacional Humanitário

4.1. O Eu como uma singularidade

O “Eu” passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a referência do Homem a si mesmo, como reflexão sobre si ou consciência, foi assumida como definição do homem (ABBAGNANO, 1998)

No ponto anterior refletíamos sobre as diferentes dimensões da pessoa humana em Levinas tendo assinalado que a abertura ou o existir – com, assinalava a essência fundamental da pessoa. Portanto, para Levinas existir significa existir - com.

No presente ponto pretendemos refletir sobre como Levinas concebe o individuo na sua singularidade, o que de certa forma ajuda a compreender a medida da transcendência, esta entendida como uma socialidade.

Diferentemente de filósofos como Descartes, Kant que acreditavam que o pensamento representava o ponto mais alto da humanidade, pois, para estes era através do pensamento que o Homem transcendia a si mesmo; para Levinas o pensamento, o psiquismo representa o princípio apenas de individuação (LÉVINAS, 2008).

Em a Crítica da Razão Prática Kant (2004), afirma que a autonomia é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda a natureza raciocinante. E aponta o uso da razão como caminho para transcendência e por conseguinte meio pelo qual o Homem se torna Homem. Para Kant só o conhecimento é capaz de libertar o Homem. É pela razão que o Homem possui o conhecimento das leis da natureza e da socialidade portanto, só quem escuta os apelos da consciência, faz o uso da razão é capaz de sabiamente viver a socialidade e por outro lado, desvendar os segredos da natureza para dominá-la.

Por seu turno Descartes, afirma que o Homem se torna existente pelo pensamento:

“Eu sou, se me engano; duvido, penso, existo: essa palavra é necessariamente verdadeira todas as vezes que a concebo em meu espírito. Minha existência como coisa que pensa está doravante garantida e vejo claramente que esta coisa pensante é mais fácil, enquanto tal, de conhecer do que o corpo, a cujo respeito até agora nada me certifica. Este Cogito, este "eu penso", modelo de pensamento claro e distinto, dá-me a garantia subjetiva de toda ideia clara e distinta no tempo em que a percebo. Ele funda já a possibilidade da ciência” (DESCARTES, 2001).

Segundo (ABBAGNANO, 1998) Descartes foi o primeiro a referir - se ao Homem como coisa pensante e esta definição foi acolhida e incorporada à tradição filosófica.

Por conseguinte, quer para Kant, quer para Descartes o pensamento é a dimensão fundamental da humanidade meio pelo qual o Homem transcende a si mesmo. O Eu é tomado como uma unidade que acompanha todas as representações, “como o eu penso” que constitui a perceção pura.

Porém, para Levinas o conhecimento é sempre uma adequação entre o pensamento e o que ele pensa. Há segundo Levinas uma impossibilidade de sair de si, através do conhecimento. O conhecimento não põe o Homem em comunhão com o verdadeiramente outro, é ainda e sempre uma solidão (LÉVINAS, 2008)

O que então significa para Levinas ser “Eu”? Em a Totalidade e Infinito Levinas faz uma interessante descrição sobre o Eu. Afirma que ser Eu é possuir a identidade como conteúdo. O Eu não é um Ser que se mantém sempre o mesmo, mas, o ser cujo existir consiste em identificar-se, em reencontrar a sua identidade através de tudo o que lhe acontece. É a identidade por excelência, a obra original da identificação. A perspetiva levinasiana do Eu é paralela a perspetiva de Rosmini apud Abbagnano que refere que o Eu une ao conceito geral da alma, a relação da alma consigo mesmo, relação de identidade.

Portanto, sendo a identidade o conteúdo do Eu, esta é a única coisa que segundo Levinas não se pode partilhar. A identidade sendo uma das marcas de Ser é que tornam o Eu num ser singular. O Eu não pode ser objeto de totalização. O Eu permanece o mesmo perante a alteridade.

Segundo Levinas o Eu, representa uma marca negativa do Ser porque o Eu representa a solidão do Ser. O Eu é o lugar de encontro do Ser consigo mesmo, é a interioridade do Ser. A interioridade é identificada por Levinas como vida psíquica; e segundo afirma, “a vida psíquica que torna possível nascimento e morte é uma dimensão no ser, uma dimensão de não-essência...” (LÉVINAS, 2000, p.45) A interioridade como tal é para Levinas um nada, puro pensamento. Mas é justamente na interioridade onde reside o segredo que interrompe a continuidade do tempo histórico. Na perspetiva de Levinas é graças à dimensão da interioridade, que o ser recusa-se ao conceito e resiste à totalização.

Esta perspetiva contrasta a afirmação de Hegel segundo a qual, Razão “é ao mesmo tempo substância e poder infinito, que ele é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual e também a forma infinita, a realização de si como conteúdo” (LÉVINAS, 2008, p.52).

A par disso, podemos considerar dois aspetos relativos à pessoa humana: o primeiro é o facto de Levinas rejeitar a valorização do indivíduo captada a partir da sua racionalidade, visto que o pensamento é para Levinas o momento do isolamento, da solidão do ser; o segundo aspeto a considerar é que em Levinas a pessoa humana é única e sua identidade vai se construindo no contacto com diversas realidades que a vida lhe apresenta. O Eu como uma singularidade, mesmo diante da alteridade, a alteridade não lhe pode captar o seu conteúdo, não pode tematizá-lo pois, para tal precisaria conhecer a sua identidade. Tarefa impossível segundo Levinas porque o Eu, mesmo para si é um mistério, sua identidade revela-se com os acontecimentos e com a realidade que se lhe apresenta.

Disto resulta que, mesmo na relação com o outro, o Eu permaneça inviolável, a interioridade que assinala a identidade do Eu é sempre um segredo para o outro. E segundo Levinas o pluralismo das sociedades só é possível a partir desse segredo. Mais uma vez encontramos aqui uma forte crítica à perspetiva de totalização da pessoa humana; retomando Hegel citado anteriormente, afirmara que na História do mundo os indivíduos de que se devia tratar eram os povos que eram ao mesmo tempo totalidades e estados. Em a Ética e Infinito no diálogo com Philippe Nemo, Levinas afirma que a relação entre os Homens é certamente a não-sintetizável por excelência pois, segundo sustenta, “na relação interpessoal, não se trata de pensar conjuntamente o eu e o outro, mas de estar diante. A verdadeira união ou a verdadeira junção não é uma junção de síntese, mas uma junção do frente a frente” (LÉVINAS, 2000, p.69).

O frente a frente a que o nosso autor se refere só é possível respeitando e salvaguardando a interioridade de outrem.