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Além do aspecto jurídico que ampara o tema, a completa assimilação do que é a responsabilidade civil médica também depende da conceituação do que é a ciência médica. Nesse passo, a Medicina costuma ser definida a partir de sua principal finalidade, qual seja, a arte de curar (SANTOS, 2008, p. 107). Na verdade, mais do que tão somente curar, a Medicina tem por escopo e, portanto, conceituação os desígnios de “prevenir, aliviar, tratar e curar” (FRANÇA, 2014, p. 13).

O médico é o ator desse processo curativo. Ele é o profissional habilitado para exercer “atos médicos” e atingir as finalidades terapêuticas da medicina. Entretanto, em um âmbito do conhecimento tão estratificado como é o da saúde contemporânea – medicina, farmácia, odontologia, fonoaudiologia, fisioterapia, nutrição, enfermagem, psicologia, etc. – torna-se de difícil delimitação quais são os atos cuja realização é privativa dos facultativos (SANTOS, 2008, p. 113). Nesse sentido, a recente promulgação da Lei n. 12.842/13 buscou delimitar o tema ao propor que:

Art. 2o O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em

benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para:

I - a promoção, a proteção e a recuperação da saúde; II - a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças; III - a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.

Ademais, referida normativa, precisamente em seu art. 4º, elenca quatorze incisos55 com atividades privativas do médico, dentre as quais se pode destacar a “indicação e

execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-

operatórios” e a “indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as

biópsias e as endoscopias” [sem grifo no original].

Entretanto, o ideal de exato abalizamento das atividades médicas restou severamente mitigado pela própria lei quando em seu art. 4º, §7º, ressalvou que o rol de práticas privativas desses profissionais deveria ser aplicado “de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia”.

Sem entrar nos aspectos controversos que circundam a elaboração dessa legislação, sua grande quantidade de vetos, juntamente com a sobredita ressalva acima transcrita, tornam nítida a preocupação da normativa em preservar a competência dos outros profissionais da saúde em suas atuais ocupações56. Entretanto, independentemente do acerto

ou desacerto de tal posicionamento – há grande litigância entre médicos e os demais

55 Art. 4o São atividades privativas do médico: I - (VETADO); II - indicação e execução da intervenção

cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios; III - indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias; IV - intubação traqueal; V - coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal; VI - execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral; VII - emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos; VIII - (VETADO); IX - (VETADO); X - determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico; XI - indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde; XII - realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular; XIII - atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas; XIV - atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.

56 Veja-se que houve nova tentativa de retomar os pontos vetados por meio de novo Projeto de Lei do Senado

(PLS 350/2014), todavia, após forte mobilização das entidades representativas de classe dos profissionais da saúde, a proposta foi arquivada em agosto de 2016.

profissionais da saúde nesse ponto –, a verdade é que, enquanto não existir uma precisa delimitação do campo de atuação médica prevista em lei, o jurista deverá se socorrer, em complemento, das construções doutrinárias sobre o tema (SANTOS, 2008, p. 116-117).

Nesse sentir, Genival Veloso de França nota que a obsessão pela tipificação de condutas exclusivamente médicas evidencia uma tendência corporativista cujo propósito principal é elitizar a profissão e, em ato contínuo, restringir o âmbito de atuação dos demais profissionais da saúde, o que vai de encontro aos modernos conceitos de saúde integral e interdisciplinar (2014, p. 69).

Por esse motivo, o aludido autor entende que o ato médico deve ser concebido em duas esferas. A primeira compreende toda e qualquer atuação profissional “em favor da qualidade de vida e da saúde do ser humano e da coletividade”. Assim, as atividades de diferentes profissionais da saúde reunidas em prol de um bem comum se encaixariam nesse conceito, sendo denominadas de “atos médicos lato sensu” (2014, p. 100).

Por outro lado, aqueles atos médicos cuja atuação possui íntima dependência aos conhecimentos angariados ao longo dos cursos regulares de medicina, seriam os “atos médicos stricto sensu”, os quais somente podem ser efetuados, ou ao menos supervisionados, por médicos legalmente habilitados (FRANÇA, 2014, p. 100).

As cirurgias plásticas são exemplos de “atos cirúrgicos”, que, por sua vez, são uma espécie de ato médico em sentido estrito. Em suma, os procedimentos estéticos são privativos de profissionais da medicina, de preferência com especialização na área (BORGES, 2014, p. 115). Não pode ser outra a dicção que se extrai do art. 4º, III, da Lei 12.842/13, bem como dos arts. 1º e 2º da Resolução n. 1.621/01 do Conselho Federal de Medicina (CFM)57.

Nesse sentido de proteção aos interesses do consumidor e de resguardo à qualidade dos serviços médico-estéticos ofertados, prudente foi a elaboração da Resolução n. 117 do Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina (CRMSC), cujo art. 1º veda a vinculação de atos cirúrgicos estéticos a estabelecimentos não conveniados ao CRMSC, tais como salões de beleza ou estruturas equivalentes58.

57 Art. 1º - A Cirurgia Plástica é especialidade única, indivisível e como tal deve ser exercida por médicos

devidamente qualificados, utilizando técnicas habituais reconhecidas cientificamente.

Art. 2º - O tratamento pela Cirurgia Plástica constitui ato médico cuja finalidade é trazer benefício à saúde do paciente, seja física, psicológica ou social.

58 Artigo 1º - Todo ato médico voltado a procedimentos estéticos deve ser realizado em consultório médico ou

instituição de saúde regularmente inscrita no CREMESC, sendo vedada a prática de atos médicos com vinculação e/ou interação com estabelecimentos de estética, salões ou institutos de beleza e congêneres.

De fato, devido à complexidade dessa seara médica, não se pode conceder a qualquer indivíduo habilitação para realizar procedimentos cirúrgicos plásticos. Pelo contrário, a outorga deste título (cirurgião plástico) depende de seis anos de estudo após a graduação em Medicina que se subdividem em dois anos de residência em cirurgia geral, três anos de residência em cirurgia plástica e um ano de estágio complementar para, enfim, submeter-se a exame escrito e oral junto à Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica59

(BORGES, 2014, p. 120).

Em síntese, embora haja certa dúvida quanto às fronteiras que demarcam os atos médicos, pode-se afirmar – e esse será o pressuposto que norteará o presente trabalho – que os procedimentos estéticos, mormente aqueles invasivos, são privativos de cirurgiões plásticos habilitados após todas as sobreditas formalidades legais e institucionais. É a responsabilização desses profissionais regularmente habilitados o objeto de estudo.60 No mais, os contornos a

respeito dos procedimentos cirúrgicos estéticos propriamente ditos serão tratados no último capítulo.