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4.2 Abordagem prática I Títulos

4.2.1 O fato chileno: Daniel Zamudio

Cada título deve ser analisado como um recorte, que pressupõe um gesto analítico, segundo Orlandi (1984), seguido de Lagazzi (2009). Esses três recortes estão estampados na editoria “Mundo”, lugar ocupado por matérias de repercussão internacional, em março de 2010. Cada um desses títulos tem como função organizar e configurar o texto como unidade de significação. Ou seja, o recorte de cada jornal online é

considerado uma unidade de significação, que se vincula com um todo (o texto), permitindo ver o mesmo fato de perspectivas diferentes. É papel do analista buscar determinados efeitos que estão inscritos no discurso, nesse caso, em (1), (2) e (3).

É fato que a AD se faz na contradição, afirma Orlandi (2012). Isso pode ser comprovado nos títulos acima, que possuem marcas iguais e diferentes entre si. No jornal El mundo, (1) descreve o assassinato de um homossexual chileno atribuído a um grupo neonazista. O sujeito/autor deixa em evidência que se trata da morte de um jovem, decorrente de um ataque de neonazistas, cujo nome não é previamente divulgado no título, mas o identifica como homossexual. (1) traz algumas marcas avaliativas que se contrastarão com (2) e (3).

Por exemplo, em (1), chama-se a atenção para o verbo “atacar” e o substantivo “grupo”. De acordo com o Dicionário Houaiss (2001), o verbete “atacar” pode assim ser entendido:

Atacar: 1. Executar uma ação de defensiva; efetuar um ataque, investir, 2. Usar de agressão física contra, golpear ou morder, com o intuito de ferir ou matar. 3. Lançar injúrias contra, ofender. 4. Reprovar moralmente, censurar, criticar. 5. Contagiar, acometer. 6. Ocorrer a, iniciar subitamente em (alguém). 7. Causar danos, desgastar corroer. 8. Dar início a (alguma coisa) com ímpeto ou grande disposição. 9. Atirar- se à comida com grande apetite. 10. Arremessar, jogar, atirar. 11. Atingir com, dar ponta pé esmurrar, estapear com força e determinação, bater, tacar, virar. 12. Incendiar, queimar. 13. Dar, disparar. 14. Usar de muito empenho. 15. Exercer uma atividade ou papel. 16. Tomar a iniciativa, procurar marcar ponto deixando o adversário na defensiva. 17. Etim. Sinonímia de acometer e insultar, defender, proteger.

Os não-ditos em (1) ficam em evidência quando se procura entender qual ou quais desses 17 significados de “atacar” podem ser atribuídos ao modo de operação de nazistas contra um homossexual. “Atacar”, num primeiro momento, significa “tomar ofensiva contra”. A questão aqui não dita é a de que o homossexual é vítima, pois não está em posição de ataque contra os neonazistas, mas de defesa. “Hostilizar” e “acusar” são outros significados atribuídos a “atacar”. Parece mais apropriado aplicar-se esses sentidos à vítima, que está sob o domínio do grupo. Outros sentidos de atacar como: “usar de agressão física” contra alguém, “golpeá-lo” com o intuito de ferir ou matar se encaixa no sentido usado pelos neonazistas.

Esse é um dos exemplos, dentre muitos que ocorrem por todo o mundo, que chama a atenção do leitor para o fato de que a morte de Zamudio (nome da vítima chilena) é um ponto de partida para repensar a problemática que envolve casos de crimes de homofobia em diferentes

países, uma vez que a raiz desta pode estar no passado, nos pressupostos nazistas de Adolfo Hitler. Amparado no sistema hitleriano, ainda há indivíduos que seguem o nazismo com outra roupagem, considerando-se que a homossexualidade, ainda hoje, continua sendo vista como uma doença mental. Sendo assim, na luta por uma sociedade pura, o neonazista crê que é possível viver-se num mundo onde não haverá pedófilos, nem indivíduos com defeitos físicos nem mentais, fatores relevantes para que se prossiga à “caça” a homossexuais.

A morte do jovem chileno decorre, inicialmente, da “ação de atacar” de um grupo contra um indivíduo. Portanto, não cabe ao grupo a defesa jurídica de que está em posição ofensiva. Por essa razão, o julgamento servirá para apontar de ambas as partes fatos que esclarecem a morte de Zamudio, resultante de um encontro entre indivíduos com ideologias diferentes em relação às práticas sexuais. À primeira vista, percebe-se que um grupo neonazista o ataca sem razão alguma, mas por questões ideológicas.

Para fundamentar (1), torna-se necessário advertir ainda que os neonazistas têm como lema agir em grupo e lutar por um ideal. Não há lugar para uma luta de um para um, mas de um confronto com um grupo, com o intuito de eliminar a vítima (DIAS, 2009).

Compare-se o já dito sobre (1) a (2):

(2) Conmoción en Chile por la muerte de un gay torturado por neonazis. (El Clarín).

Nota-se que o referido jornal online busca no título marcas avaliativas que não se encontram em (1). Os efeitos de sentido em (2) apontam para uma “comoção” nacional chilena, que dimana do assassinato de um gay “torturado” por neonazistas. Observa-se que tanto (1) quanto (2) marcam a autoria do assassinato. Há uma consciência de que um indivíduo não é suficiente para lutar corpo a corpo contra um grupo. Por isso, a escolha do verbete “comoção” no início do título, para dar a amplitude do caso. O dicionário Houaiss (2001) oferece os seguintes significados aos termos:

Comoção: 1. Ato ou efeito de comover ou comover-se. 2. Abalo físico, sacudidela, abanão. 3. Emoção forte e repentina. 4. Med. Perturbação orgânica de origem nervosa, abalo, choque. 4. Agitação ou alvoroço, revolta popular, levantamento, agitação social. 6. Traumatismo craniano, que leva a um coma passageiro.

Tortura: s.f. Ato ou efeito de torturar. 1. Volta tortuosa, curvatura, dobra. 2. Dor violenta que se inflige a alguém, sobretudo, para lhe arrancar alguma revelação; suplicio. 3. Grande tormento no espírito; sofrimento, angústia. 4. Situação que encerra dificuldade, embaraço. 4. Ação de torcer; dor aguda, tortura; ato ou efeito de torturar. Suplício.

Há um uso de jogo de palavra para montar o título da matéria que impactou a sociedade chilena. Diferente do jornal espanhol, o argentino utiliza o verbete “comoção”, incluindo-se na situação de que se trata de um caso que toca o cidadão, ou seja, abalando toda e qualquer estrutura social. Percebe-se que o jornal El Mundo usa a palavra “homossexual”, enquanto El Clarín, “gay”. Há razão para haver diferença entre termos? Os efeitos de sentido seriam iguais ou diferentes?

Na antropologia, a palavra “homossexual” é mais antiga que “gay”. Significa gostar do “mesmo” sexo (seja entre homem ou mulher). A palavra é de uso universal, desde 1869, de acordo com jornalista gay- húngaro Benkert (MOTT, 2013). Já “gay” é usado para homossexual. Trata-se de um termo tão antigo quanto o vocábulo “homossexual”. Aquele (gay) significa: “alegre” (gaiato), numa sociedade heterossexista (MOTT, 2013). Portanto, os termos aqui equivalem e não há razão para pensar que o uso de “gay” é pejorativo.

Para complementar o que se tem dito e produzido, até então, pelo título dos jornais online El mundo e El Clarín em relação à morte do jovem chileno, toma-se o ponto de vista da Folha de São Paulo:

(3) Morre jovem espancando por neonazistas no Chile. (Folha de São Paulo).

Dos três títulos apresentados sobre a morte do jovem chileno atribuído a grupos neonazistas, a Folha de São Paulo usa termos que não deixam marcas avaliativas explícitas, como os outros dois jornais antes citados. Os gestos de sujeito/leitor de a Folha de São Paulo são mais limitados à objetividade como estratégia de escrita jornalística, uma vez que o título pretende resumir brevemente o caso sem fazer nenhuma referência de que se trata de um caso de comoção internacional. Nos três jornais online, há a presença da palavra “morrer”, mas não “assassinato atribuído à”.

Há diferenças entre “assassinar” e/ou “morrer” um homossexual no âmbito discursivo? Como ponto de partida, analisam-se dois verbetes do dicionário Houaiss.

Assassinar: 1. Destruir a vida de (um ser humano) por ato voluntário (ação ou omissão); matar (a, um desafeto). 2. Tirar com crueldade a vida de (animal). 3. Exterminar, destruir, aniquilar. 4. Praticar ou executar mal ou pessimamente. Ver sinonímia matar.

Morrer: 1. Deixar de viver; falecer, expirar, finar-se (qualquer ser vivo). 2. Perder a vida sob determinada condição ou circunstância. 3. Acabar-se, extinguir-se, terminar. 4. Desaparecer aos poucos; sumir. 5. Não chegar a concluir-se. 6. Cair no esquecimento. 8. Experimentar alguma perda; desaparecer da memória, etc.

No título da matéria jornalística apresentada pela Folha de São Paulo, percebe-se que o jornal escolhe cada palavra para construir objetivamente seu projeto discursivo, diferentemente do jornal argentino, que constrói um título com mais marcas avaliativas. No recorte (3), pertencente à Folha de São Paulo, observa-se que, nele, a vítima não é identificada como gay e nem como homossexual. No entanto, o jornal faz apenas alusão a um jovem que foi morto e não assassinado, espancado por um grupo neonazista.

Percebe-se que o uso de “morrer” seja mais brando que “assassinar”. No entanto, o Houaiss mostra que ambos os termos são equivalentes, ainda que, em alguns contextos, a correspondência não pareça ser assim tão próxima. Nesse caso, quando se assassina, alguém morre, perde a vida violentamente.

A Folha de São Paulo utiliza a palavra “morrer”, como sinônimo de “assassinar”. “Assassinar” é provocar também a morte, que nesse relato, não é um acidente do acaso, mas um ato planejado com antecipação. Os neonazistas se preparam com planejamento prévio para os safáris para atrair a vítima para a execução. Isso caracteriza assassinato, não morte natural ou por outra fatalidade não brutal. Os sentidos atribuídos aqui em (3) também se somam a “espancado”. Cabe assim, asseverar que os três títulos tratam da morte de Zamudio de maneira diferente, produzem sentidos diferentes em alguns aspectos, mas, ao mesmo tempo, semelhantes em outros, pois “morrer” e “assassinar” pertencentes ao mesmo campo semântico em algumas situações e em outras não.

Isso nos leva a afirmar que os enunciados (1), (2) e (3) são fontes de diferentes significações que se entrecruzam no ato de dizer. Cada gesto de interpretação dado pelo leitor provoca um efeito de sentido que se faz na contradição, entre o dito e o não-dito. Como se tem visto: o sujeito não é a fonte do dizer, porque ele é afetado por diferentes formações discursivas, razão pela qual leva a marcá-lo ideologicamente. Dizendo de outro modo, se há diferentes interpretações sobre o mesmo fato (a morte/assassinato de Zamudio) é porque cada sujeito/leitor tem uma FD, geralmente diferente, sempre ligada a formações ideológicas, responsáveis pela produção de sentido. Afinal, como disse Orlandi (1999), o sujeito/leitor é aqui entendido como um indivíduo, que ocupa um espaço social, de onde ele é capaz de produzir um novo discurso que nunca se fecha em si mesmo, pois está sempre em devir, produzindo sentido, pois a “incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão sempre se fazendo” (ORLANDI, 1999, p. 36).

Cada sujeito/ leitor está legitimado a produzir sentidos diante dos títulos online em questão. Afinal, no próprio titulo há termos polissêmicos, ligados a rupturas, a criatividades, ao deslocamento de uma dada regra, pois cada um desses títulos se movimenta, simultaneamente, na diferença. Trata-se de diferentes sentidos que pertencem ao mesmo objeto simbólico. Tanto os sentidos quanto os sujeitos são múltiplos, por isso o dizer está sempre aberto a novas formas de ver o mundo. Se assim não fosse, não haveria a necessidade de produzir sentidos iguais na diferença (entre os títulos), ou seja, dizer dessa maneira e não de outra, cada uma delas eficaz ao sujeito. Por isso, torna-se viável admitir que os efeitos provêm do projeto discursivos dos referidos jornais, aliados à posição de cada leitor, que está sob o domínio da língua e da história. Seja o título com menos ou mais marcas avaliativas, nada o isenta de dizer diferente, mas aceitável, sob a condição de produzir novos sentidos.