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A partir de Pêcheux (1975), Orlandi (1996) afirma que a interpretação é considerada um “gesto”, ou seja, um ato em nível simbólico. Em complemento:

[...] a palavra gesto, na perspectiva discursiva, serve justamente para deslocar a noção de “ato” da perspectiva pragmática; sem, no entanto, desconsiderá-la. O gesto de interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o silêncio (ORLANDI, 1996, p. 18).

Isso demonstra que o corpus de análise deste trabalho– publicação em jornais acerca de assassinatos de homossexuais atribuídos a neonazistas – provoca diferentes gestos de interpretação. O silenciar, segundo Orlandi (2012), também provoca efeitos de sentido. No nosso caso, há um corpus atravessado pelo silêncio (opressor) de diferentes grupos que fazem parte da sociedade, principalmente dos neonazistas. Como disse Orlandi (1996, p. 18), “A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideologia e é materializada pela história".

A principal característica da interpretação é esta: tomar o lugar da história e da sociedade, numa certa direção que se denomina política. A textualização do político, neste sentido, está presente no gesto de interpretação. Orlandi (1996) afirma que não há como abordar a questão

da interpretação se não se fizer uma reflexão sobre a própria leitura. Este estudo, segundo a autora, engloba outros conceitos como o de leitor, de autor, de história e de ideologia. É a partir da compreensão desses conceitos que se pode formular pontos primordiais existentes na relação entre o sujeito com os sentidos, noções essas que fazem parte do discurso.

Orlandi (1996) busca a noção de interpretação de Pêcheux (2006) dentro da AD. Pêcheux (2006), em Discurso: estrutura ou acontecimento, no capítulo III “Ler, descrever, interpretar”, busca o real logicamente estabilizado, daquilo que se pode saber, o que gerou um “esvaziamento” na teoria aristotélica, no que diz respeito a discursos estáveis, como os das ciências humanas. O discurso humanístico versus materialismo chama pela interpretação, afirma Pêcheux (2006). Trata-se de uma interpretação que desestabiliza os sentidos com potenciais a deriva.

Retornando aos anos 60, época em que nasce o estruturalismo na França, Pêcheux propôs uma leitura antipositivista dessa linha de pensamento, com o objetivo de levar em conta o real, a partir não só da estrutura, mas também do acontecimento, provocando novas práticas, que fazem uso da interpretação para dar conta de sua pesquisa, partindo do princípio de que todo fato é reconhecido como uma interpretação do real. Percebe-se que Pêcheux (2006) diz não ser possível separar a descrição da interpretação, pois na AD se trabalha em outra perspectiva, diferente da dos estruturalistas, cuja função era descrever as formas, abdicando, nesse sentido, do caráter interpretativo dos fatos, abordando a materialidade, olvidando-se da história.

Observe-se que quando se pensa o que “se quer dizer” já se está interpretando. Uma interpretação decorre das condições de produção do mesmo, o que gera diversos efeitos de sentido. Para Pêcheux (2006), a interpretação está sempre sob o risco de sofrer deslizes de sentido, pois está afetada pela história na linguagem. Já se disse que a linguagem é, por natureza, opaca, o que abre espaço para que outros deslizamentos ocorram num dado discurso. Faz sentido, então, afirmar, com Pêcheux, que antes a interpretação era agregada a um gesto de leitura frente a uma estrutura textual, a qual abrolhava efeitos de conjunto. Isso só corrobora com a perspectiva de que a interpretação só afeta a língua, que esta volta para si mesma, um sinal predominantemente estrutural.

Pêcheux (2006), ao considerar que o sujeito se apaga diante do enunciado, está provocando o deslizamento de um certo sentido num dado discurso sem sujeito, negando, desse modo, a interpretação daqueles discursos que são considerados logicamente estabilizados

(científicos, por exemplo). Por esta razão, o filósofo francês quer advertir que o ato de interpretar nada mais é do que produzir um enunciado que reflita no (outro enunciado) de “origem”, na sua ilusão. Esta é uma das razões por meio da qual se defende o ponto de vista pecheuxiano que confirma que é impossível diferenciar “descrever” de “interpretar”, em relação ao conhecimento real da própria língua.

Pêcheux (2006) ao falar sobre a descrição mostra que esta se encontra sujeita a equívocos, uma vez que um enunciado (seja ele de qual natureza for) é intrinsecamente passível de tornar-se noutro (enunciado), da mesma forma que seu sentido pode discursivamente produzir outros sentidos. Para o autor, um enunciado pode abrir possibilidades de ser descrito como uma sequência de pontos de deriva possíveis, proporcionando um lugar à interpretação.

Todo compreender, para Pêcheux (2006), ocasiona uma interpretação. Esse compreender está sob o domínio de um espaço de leitura que apresenta diversas formas. O acontecimento, por exemplo, é tomado pela interpretação, pela possibilidade de (re)significar aquilo que é da estrutura da língua, que decorre do gesto de um sujeito, que movimenta muitas memórias, decorrentes de suas relações sociais, responsáveis pela produção de novos sentidos.

Chama-se a atenção para o fato de que tanto a interpretação quanto a descrição, no sentido pecheuxiano, são resultantes de um período de análise, o que não garante que uma (interpretação) seja mais importante que a outra (descrição), mas ambas igualmente essenciais à análise linguística.

Em síntese, Pêcheux (2006) mostrou que a discursividade pode ser tratada tanto como estrutura quanto como acontecimento, percebendo que este (acontecimento) é absorvido por aquele (estrutura), originando outros acontecimentos. Isso deu abertura ao sujeito de considerar-se legitimado a interpretar diante de um discurso. O ato de interpretar deriva de tomada de posição em relação ao gesto de leitura. Não há, portanto, para o autor, sequer nenhuma probabilidade de se analisar um discurso sem considerá-lo na sua estrutura e no seu acontecimento, para o qual ele dá origem, no labor inextrincável entre a descrição e a interpretação, sobretudo, no que tange a discursos não logicamente estabilizados.

Filiada à teoria pecheuxiana, Orlandi (1996) se perfilha a um quadro teórico metodológico para explicar o trabalho da interpretação. O gesto de interpretação é tratado como uma relação necessária (ainda que em grande parte o sujeito a negue), intervindo de forma decisiva na relação existente entre o sujeito com o mundo, como se viu

anteriormente em Pêcheux (2006), ainda que ele (o sujeito) mesmo não saiba disso. Em face dessa postura discursiva, o ponto crucial em AD, proposto por Orlandi (1996; 2012), mostra o lugar da interpretação na sua forma, no seu no funcionamento. Aí, resume-se que o ato de interpretar sempre está em devir. Por isso não existe sentido sem interpretação; está-se sempre re-significando, no espaço do possível, da falha, do equivoco, do efeito metafórico: “em suma: do trabalho da história e do significante, em outras palavras, do trabalho do sujeito” (ORLANDI, 1996, p. 22).