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CAPÍTULO II: Bálsamo

2.3 O feminino

“Em um lapso de memória, minha mãe era uma velhinha com a face marcada por traços esqueléticos adquiridos durante o tempo de vida. Ela se balançava numa rede que acolhia seu corpo intacto exceto, seus olhos e os punhos feitos de cordão retorcido rangindo ao fissurarem-se nos tornos, que por ora fazia parte de si. Havia mulheres presas dentro de suas casas e homens soltos na rua que eu vigiava pela brecha da janela, vendo-os dançar mundo afora. Quando não, eles espiavam também, de fora pra dentro, invadindo nosso mundo particular. Eu me lembro de ficar embaixo da rede surrada de minha mãe, balançando nas alturas. Nós, filhas, nunca poderíamos encostar a pele de nossa mãe. Os homens lá fora pareciam famintos, gritavam e tentavam nos arrancar de dentro de casa. Nesse momento (ainda dormindo) tentei pegar um papel e escrever tudo aquilo, porém meus passos eram muito lentos e eu não tinha força para chegar até a cômoda que comportava a caneta e o papel. Enquanto isso, uma de minhas irmãs, sem querer, acabou encostando em mainha que em instantes, transformou-se em bolhinhas pesadas e molhadas que caiam no chão como espécie de sabão e nos engolia pouco a pouco. Os homens logo invadiram a casa e com seus próprios pés, estouraram as bolhas que jazia nossa mãe. Depois de um tempo, compreendi que ela já havia falecido, na rede restava só seu corpo sem vida, sem alma.13”

13

Sonho (ou pesadelo) vivenciado no ano de 2005 (quando eu tinha 12 anos de idade). O mesmo foi retirado do papel e escrito em arquivo virtual em meados de 2012 (quando eu tinha 19 anos de idade),

O aspecto feminino aparece, nesta pesquisa, desde o princípio, pois abrange o contato e a relação com as mulheres de minha vida. Outro aspecto que surge baseado nas construções do feminino são as quatro figuras desenvolvidas durante o curso (como podemos perceber no capítulo I) que estão voltadas para uma composição performática que fala sobre temáticas comuns ao universo das mulheres e a construção da persona

Aurita.

Os sonhos ou imagens mentais referentes ao passado memorial que inspiram esse trabalho, diz repeito a um corpus de situações e aparições que permaneceram, por muito tempo, vivos e pulsantes em mim. O corpus que expressa sobre o feminino recorrente em minhas vivências, assim como, as influências pela relação com as mulheres que fazem parte da minha família majoritariamente formada por mulheres, me despertaram a vontade de entender e buscar saídas criativas, pelas quais eu pudesse desconstruir a imagem do feminino.

A narrativa mencionada no início do presente tópico sobre um sonho vivenciado no passado mostra através de palavras, de certa forma ingênua, a imagem de poder e opressão que os homens carregam em si, evidenciada tanto na ação de pisotear as mulheres que viraram bolhas quanto na condição de liberdade quando eles dançam pelas ruas afora. Em contrapartida, a imagem das mulheres se transformando em sabão pelo simples fato de tocarem a mãe, me sugere a ideia de proteção em que cada uma entra em sua bolha para se isolar e se camuflar diante da opressão e da imposição daqueles homens.

Aurita tenta subverter os fatos incorporados na memória ao revelar seu corpo

como firmação que enaltece a força da mulher. Ela passa pela necessidade em deturpar- se de si e dos padrões impregnados em seu corpo e sua mente, chegando assim à limpeza e ao preenchimento de novos estados existenciais. Neste ensejo, destaco a relação entre o sagrado e o profano que permeou a trajetória da memória e da construção performática, pois as ações e os objetos carregam a dualidade como característica que subverte e denuncia as imposições da sociedade que segue, de certa forma, colaborando com a naturalização da inferioridade da mulher.

pois o caderno já estava se despedaçando. A escrita foi também reestruturada em vista das necessidades de adequação à ortografia e aos aspectos da estrutura textual.

Segundo Mircea Eliade (1992), a definição de profano surgiu quando o sagrado começou a se manifestar na sociedade e, consequentemente, pela necessidade de distinção entre o religioso e o não religioso. A manifestação do sagrado é denominada pelo termo hoerofania que pode revelar-se no mais simples objeto.

Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. (ELIADE. 1992. P. 13)

Levando em consideração os conceitos de sagrado e de profano exprimidos pelo autor, o sagrado indica algo que transcende e ultrapassa nossa realidade, e o profano corresponde aos acontecimentos mundanos, pelos quais dizem respeito a nossa forma de viver na terra. Neste sentido, Bálsamo expressa a dualidade através dos aspectos femininos de Aurita, representados pelas suas ações e pelos seus elementos cênicos que se transformam em aspectos divinos ligados à imagem da santa. O objeto feito de camisinha feminina, em determinado momento da performance, alterna-se em várias significações mundanas: uma vagina menstruada, um útero, uma placenta, porém também se mostra como a imagem de um coração “divino”, quando, ao final, a persona o põe em seu peito e caminha. Outro objeto que apresenta esta dualidade é o pano usado para cobrir a cabeça da persona que se confunde com o manto trazendo a ideia de pureza da santa e com o véu que remete a noiva que perderá a virgindade, portanto a pureza.

Contudo, esta dualidade perceptível no extrato performático, trata-se de uma estratégia para refletirmos sobre o papel da mulher na sociedade e o padrão estético que é imposto. O trabalho implica na desconstrução do corpo feminino que desconhece as imposições, sejam elas estéticas ou comportamentais. Para Simone de Beauvoir (1967), “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade.”

(BEAUVOIR, 1967, p. 9) Este argumento afirma que a sociedade é quem elaborou as questões que dizem respeito ao significado de ser mulher. Enquanto crianças, tanto as meninas como os meninos não se diferenciam sexualmente até, com passar dos anos, as culturas vão influenciando e separando os sujeitos como mulheres e homens. Desde a proteção maior que os pais têm com as meninas, ao desapego e à independência ensinados aos meninos até a imposição religiosa imposta às meninas e a liberdade de escolha em diferentes situações que os meninos desfrutam. A hierarquização é ensinada, onde, geralmente, o pai tem poder de bater o martelo e dar a palavra final. Assim, a mulher é ensinada a respeitar a vontade do homem, seja ele marido, irmão ou amigo. Apesar de muita coisa ter mudado, esta herança do passado ainda se mostra como realidade presente na vida contemporânea.

No entanto, a autora pontua que o mito do “eterno feminino” está prestes a ser destruído. Se antes, a femilidade estava ligada às figuras: da donzela ingênua, da virgem profissional, da mulher que valoriza o preço do coquetismo, da caçadora de maridos, da mãe absorvente e da mulher que ergue o escudo da fragilidade contra a agressão masculina, da dona-de-casa, da princesa, hoje a mulher faz questão de demonstrar sua independência, seja ela financeira ou intelectual.

O espaço é invadido por imagens do feminino onde a narratividade de fragmentos, coberta pelos aspectos da natureza feminina, rompem com a ideia de delicadeza e de leveza, revelando o que se esconde por trás das mais sutis situações, escancarada nas sangrentas circunstancias que violenta a mulher. Os estilhaços que distanciam a mulher da menina e a segregação que a afasta de sua própria liberdade estão estampadas na história contada por Aurita e aparta a ideia que associa a imagem da mulher como objeto da representação masculina.

O trajeto por este espaço que se faz real suscita a ambiência mental, me colocando em diálogo com meus próprios desejos, mas, sobretudo me proporcionando um diálogo com mulheres que, de alguma forma, atravessaram meu processo de amadurecimento criativo e pessoal. Estas mulheres foram representadas pela figura de Aurita, com a qual eu pude compreender a condição de ser mulher em vista da realidade em que vivemos e adquirir um olhar de transformação voltado para minha existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo manifestar a apropriação e a ressignificação das próprias experiências como possibilidade de firmar-se enquanto artista, em virtude de uma dramaturgia pessoal que se construiu partindo da matéria-prima disposta no âmbito memorial e pelas experiências vividas. As análises e as reflexões feitas às vivências permitiram a manipulação e o brincar com as imagens mentais, oníricas e oriundas da imaginação, pelas quais pude transformar-me, reinventando-me em outras.

O processo da pesquisa onírica que guiou a trajetória até Bálsamo, me mostrou a importância de se ter um trabalho que comunga das experiências pessoais e da produção artística. Pois, ao analisar meu início no curso de Licenciatura em Teatro, quando somente existiam as figuras e as imagens mentais quase enterradas pelo imemorável, percebo que a partir desse resgate, houve um retorno, inclusive a mim mesma. Foi possível reconhecer que as pequenas vibrações internas estavam prestes a saltarem para fora de meu corpo, me mostrando sua grande possibilidade de luz. Como vimos nos escritos de Didi-Huberman (2011) quando ele discorre sobre as pequenas luzes dos vaga-lumes que podem ser enaltecidas pela união e força de várias delas juntas.

Retornar à casa primitiva, mesmo que em aspectos intuitivos e invisíveis, me propiciou um diálogo com a minha própria criança que, antes adormecida, despertou-me a potência criativa relacionada à infância e ao resgate da memória de quem eu fui numa espacialidade vista com outros olhos. O conceito de presença (GUMBRECHT, 2010) direcionou o eu passado no processo de ressignificação para um diálogo com o eu de agora, suscitando as virtudes do “corpo-vida” (GROTOWSKI, 2010).

A condição da repetição imposta a Sísifo como destaca Lopes (1999) se manifestou num contexto em que a perseverança e o desejo fizeram moradia, preenchendo o vazio de impulso, através da inventividade, que se tornou objeto de criação poética. A performance se mostrou como condutora na relação entre ficção e realidade, me mostrando como posso parir outras de mim e vivenciar essas novas existências.

As quatro figuras, Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, manifestaram a multiplicidade de Aurita e, consequentemente, a minha. Estas faces permitiram um confronto individual que diz respeito à relação entre a minha memória e a reflexão sobre a mesma, meu interno e meu externo, meu ‘eu’ passado e meu ‘eu’ no presente.

O eterno retorno e a perspectiva da mudança, situações diretamente associadas ao labirinto (CHEVALIER; et al. 2018), permearam por todo processo desta pesquisa pelas quais esclarecem as virtudes da criação, em busca da singularidade que permite o encontro com as possibilidades de alteridade e multiplicidade, diante do ensejo da presentificação cênica. Por conseguinte, o processual se manifestou num contexto pedagógico, em que culmina a aprendizagem e reverbera nas experiências da realidade.

A desconstrução da imagem da mulher me permite revigorar a aspiração pela liberdade, levando em consideração as questões que a sociedade associa ao feminino, voltadas para o aspecto do mito do “eterno feminino” (Beauvoir, 1967), cujas características nos colocam em condição inferior e aprisionadora. Refletir sobre a condição em que estamos inseridas, permite olhar o mundo de forma transparente, em vista das sutilezas que se camuflam pelas atitudes e escondem a real agressividade dos fatos.

O fragmento performático Bálsamo transitou entre os aspectos do experimento como possibilidade de descoberta pelo eu criança e da experiência como desconstrução através do erro do eu adulto. O caminho se pautou na descoberta e no erro como potencialidades do processo criativo na perspectiva híbrida que une as mulheres relacionadas à memória e as mulheres relacionadas à ficção. A minha transformação enquanto artista baseou-se na unificação das histórias que entrelaçaram pelas veias do labirinto, o qual abandonou, em suas esquinas, algumas faces para ressurgirem outras.

Aurita é o embalsamamento dos fragmentos da memória, que advém do olhar cultivado

de uma criança e que permaneceu brilhando até a chegada de uma longa trajetória, encontrando potência em sua imaginação para dar continuidade a sua existência enquanto artista.

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