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Bálsamo: memória e imagem na construção performática

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA E IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

NATAL/RN 2018

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PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA E IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

Monografia apresentada como parte das exigências para conclusão do curso de Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas

NATAL/RN 2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART Dantas, Pamela Dutra.

Bálsamo : memória e imagem na construção performática / Pamela Dutra Dantas. - 2018.

62 f.: il.

Monografia (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura em Teatro, Natal, 2018.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas.

1. Memória. 2. Imagem. 3. Performance. 4. Feminino. 5. Persona. I. Freitas, Camila Maria Grazielle. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 792

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PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Teatro/Licenciatura como parte das exigências para a obtenção do título de licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

_______________________________________________ Prof.º Dr.º Alex Beigui de Paiva Cavalcante

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

_______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Nara Neide Ciotti

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À minha mãe, Waneide. Às minhas irmãs, Wanessa, Marcely, Paloma e Acácia. Às minhas sobrinhas, Odara e Aurora. À minha filha Maria Bella e a todas as mulheres que fizeram parte desta trajetória...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à orientadora deste trabalho, professora Camila Freitas, que com paciência e simplicidade conseguiu me guiar de forma sábia até a concretização desta pesquisa. Pela generosidade em que apontou meus erros, me fazendo querer prosseguir. Obrigada! Você surgiu de repente já deixando sua leveza ao me ensinar sobre os melhores caminhos a se percorrer, me mostrando que existe sim a possibilidade de dar certo.

Ao professor Alex Beigui, que foi o primeiro orientador dessa jornada. Agradeço, pois, apesar de não poder acompanhar o processo de perto, você me ensinou bastante sobre a arte e sobre a vida desde o primeiro momento em sala de aula. E despertou em mim, a virtude de sempre querer ser e fazer o melhor que posso.

À professora Naira Ciotti, por sempre me inspirar como mulher e artista, mostrando-me, através da performance, que podemos enfrentar nossos próprios anseios. Por aceitar fazer parte deste percurso, mesmo que indiretamente. Por estar disponível a me ajudar em todas as horas que a procuro.

Agradeço a todas as mulheres que fazem parte da minha família.

À minha mãe, Waneide, por nunca me deixar desistir, por ser meu porto seguro, por ter sido a mãe de minha filha no período em que eu mais precisava, por me fazer acreditar que conseguiria e por ter me dado as melhores irmãs do mundo.

Às minhas irmãs, por serem sempre as melhores companheiras, as quais eu posso contar seja qual for o momento. Deposito nelas a culpa dos dramas a seguir.

À minha irmã Wanessa, por ter sido minha mãe nos anos em que mainha precisava nos deixar para trabalhar; eu reconheço cada esforço seu. Por me acolher em seu mundo encantado que é o Monte do Sol, juntamente com seu companheiro Bico. Pelas conversas, pelos conselhos e pela referência que és para mim.

À minha irmã Marcely, por me mostrar sempre o lado bom das coisas e que, apesar de tudo, foi você que me ensinou sobre a aceitação, me fazendo sentir felicidade

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por ser do jeitinho que eu sou. Por me mostrar a possibilidade de olhar o mundo com sensibilidade e humanidade. Eu te amo muito.

À minha querida irmã Paloma, que é meu espelho, meu ombro amigo, meu aconchego, minha força pra continuar. Cuidou e olhou para minha filha com os meus olhos de mãe, me mostrando a força da amizade em cada lágrima que escorria por sua bochecha, que inclusive é mais fofinha que a minha. Deu-me a mão como uma criança abraça a outra.

À minha irmã caçula Acácia, que apesar de ter sido a última a chegar em casa, me mostra a cada dia o poder da justiça e da coerência, da calma e da pureza, da generosidade e do carinho. E, ainda mima minha filha como ninguém. Não perde nem pra mainha.

Às minhas sobrinhas Odara e Aurora, por alegrarem meus dias e por me lembrarem da importância em cultivar a espontaneidade e a ingenuidade. Por me mostrarem que, apesar de vivermos num país em caos, estaremos sempre unidas para juntas atravessarmos o sistema e mudarmos o mundo.

À minha filha Maria Bella, que compartilha comigo de sua criatividade e me convida a entrar num universo que é só seu. Por ter paciência diante das ausências necessárias para o fechamento desse ciclo, que esteve totalmente voltado para as experiências proporcionadas pela sua chegada. Obrigada filha.

Ao meu companheiro Adilis, por cuidar, junto comigo, tão bem de minha filha e com muita sabedoria, principalmente nos momentos turbulentos desta jornada. Por ter me mostrado sua sensibilidade e que, apesar disso, diariamente, tenta amolecer suas verdades endurecidas pela sociedade. Por caminhar junto a mim nessa eterna desconstrução da vida. Por me apoiar, por me ajudar nas indecisões geminianas, por me levantar quando o autoboicote da preguiça reina sobre meu corpo. Obrigada, eu te amo.

Agradeço aos amigos que conquistei ao longo do curso. Em especial Bianca, Bruno, Éric, Guga, Juciê e Wisla por me fazerem acreditar em mim e por estarem ao meu lado, principalmente nos aspectos mais difíceis do curso, dando uma palavra de carinho ou nas arengas que sempre são superadas. Gratidão.

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Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu quem deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura?

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma reflexão teórica e prática acerca do meu percurso durante o curso de Licenciatura em Teatro (2014-2018) e da construção das quatro figuras intituladas: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, desenvolvidas nas disciplinas de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos (2016.2), Estudos da

Performance (2016.2) e TCC I: Espetáculo (2017.1). O trabalho baseou-se nos aspectos

da memória voltados para a infância, em vista da elaboração de imagens mentais, oníricas e imaginárias permeadas pela ideia do feminino em desconstrução, tendo como resultado a produção do fragmento performático Bálsamo. O extrato narra, através das ações da persona central Aurita, os fatos existentes em minhas experiências de forma hibrida e ressignificativa, transformando a subjetividade do memorável em poética pessoal.

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ABSTRACT

This research aims to present a theoretical reflection and practice about my journey during the course of degree in theater (2014-2018) and the construction of four pictures titled: Tuberosa, Malambo, Prenhe and Salito, developed in disciplines of Preexpressive Training Elements (2016.2), Performance Studies (2016.2) and TCC I: Show (2017.1). The work was based on aspects of memory for childhood, in view of the development of mental images, dreamy and imaginary permeated by the idea of the female in deconstruction, resulting in the production of the performance fragment called

Bálsamo. The extract tells, through the actions of the central persona Aurita, the facts

that exist in my experiences of hybrid form and remeaned, transforming the subjectivity of the memorable in personal poetic.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...12

CAPÍTULO I: Trajetória In(disciplinar) ...16

1.1 Memória como campo de resistência ...16

1.2 As faces de Aurita ...23

1.3 Metáforas do Real ...34

CAPÍTULO II: Bálsamo ...40

2.1 A espacialidade ...40

2.2 As ações ...45

2.3 O feminino ...54

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...58

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar minha trajetória durante o curso de Licenciatura em Teatro (2014-2018), com vista na reflexão teórica e prática que permeia o processo de construção poética, tendo como base as imagens da memória e suas ressignificações. O processo de desenvolvimento parte das figuras Tuberosa e

Malambo, Prenhe e Salito, desenvolvidas nas disciplinas de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos (2016.2) ministrada pelo professor Robson Carlos Haderchpek, Estudos da Performance (2016.2) e Salito TCC I: Espetáculo (2017.1), ambas ministradas pela

professora Naira Neide Ciotti. Assim, a construção da persona central Aurita, que manifesta em si a hibridização das quatro figuras, se dá em virtude da ideia do feminino em desconstrução, cujas investigações resultaram no fragmento performático Bálsamo.

Para tanto, o trabalho está dividido em dois capítulos, dentre os quais o primeiro apresenta uma contextualização sobre a memória enquanto potência para a resistência artística e o segundo tenta esmiuçar o extrato performático a partir da espacialidade e das ações, além de analisar o aspecto feminino que diz respeito às manifestações das imagens da memória e sua materialidade cênica.

O primeiro capítulo, intitulado Trajetória (in)disciplinar, apresenta, como já sugere o título, a forma como me coloco (in)disciplina, ou seja, dentro de tais componentes curriculares do curso, ao mesmo tempo que analiso a minha trajetória a partir dos aspectos disciplinares. Neste sentido, o diálogo com a teoria teatral, performática, bem como o uso dos pensamentos teóricos a seguir foram essenciais para a construção deste capítulo.

Destaco o autor e filósofo, Erich Auerbach (1997) a partir do conceito de figura que utilizo ao longo do trabalho. Georges Didi-Huberman (2011) me apresentou a metáfora referente ao brilho dos vagalumes em contrapartida às grandes luzes do poder, na qual me aproprio para desenvolver a relação da infância com a criação poética e artística. Gaston Bachelard (2003) colaborou com suas investigações sobre a imagem da casa na perspectiva espacial e imaginativa que abrange a presente pesquisa. Cássia Lopes (1999) aponta uma análise sobre a repetição permeada pelo mito de Sísifo, onde faço uma relação com a importância da ressignificação do gesto repetitivo para o

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processo criativo. Hans Ulrich Gumbrecht (2010) contribuiu com o conceito de presença que se relaciona com a ideia de corpo-vida de Jerzy Grotowski (2010). Renato Cohen (2013) esclareceu-me sobre a performance e Alfred Jarry (2011) sobre a patafísica.

Apresento, então, a origem da motivação em tratar sobre a memória, seus desdobramentos e suas ressignificações visando às imagens da infância e da casa, baseadas na sobrevivência da minha voz e do meu corpo em estado de criação. Reflito sobre as questões que ocasionaram desvios no entendimento do conhecimento regular obtido em sala de aula, com vista na reversão voltada para a necessidade da construção poética, pautando o aspecto coletivo e individual que sugeriu o processo criativo. Ressalto ainda, a busca pelo saber necessária para compreender a própria poética que revigora no conceito de figura (AUERBACH, 1997), de modo a apontar caminhos para o entendimento e o desenvolvimento da composição performática. Pretendo esclarecer as questões relacionadas à escolha do título Bálsamo que nomeia o extrato cênico, deixando explícito como este se aproxima com a ideia de caixa que me acompanhou por um longo período da vida.

Apresento a origem da figura central (Aurita) do extrato performático e seu aspecto narrativo, assim como sua relação com a minha realidade. Discuto sobre as disciplinas, destacando os aspectos formativos pelos quais se manifestaram as demais metodologias, o processo da construção das quatro figuras e ainda, como as mesmas compuseram a identidade da persona central Aurita que contempla seus anseios e características de forma híbrida e suplementar. Por conseguinte, faço uma análise sobre a configuração que os tempos do passado e do presente sofreram, atravessando tanto o aspecto da memória quanto a perspectiva de criação que se manifesta pela presença da ação.

As discussões pretendem dialogar com as metáforas do real que dizem respeito à relação entre ficção e realidade, refletindo sobre como a memória se transforma em cena e como esta fala sobre a realidade. Exponho a perspectiva da autobiografia, cuja memória se insere como objeto de pesquisa, reconfigurada numa perspectiva de transformação e de reinvenção. A narratividade me desloca para uma posição de criadora/produtora, onde posso manipular as estratégias de recriação de minha própria história. Ao fim, mostrarei como o ciclo de criação poética se desenvolveu nesta jornada

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e como preencher o vazio, numa perspectiva da inventividade, que tende a nos puxar para trás com intuito de nos fazer desacreditar no processo de criação artística.

No segundo capítulo, cujo título é Bálsamo, foco na reflexão sobre a prática dramatúrgica a qual abrange a transformação da espacialidade e como esta interfere inclusive no diálogo com os processos teórico da pesquisa. As ações e as questões apresentadas partem do envolvimento com uma teoria e uma prática baseadas nos aspectos do feminino.

Nesta perspectiva, as contribuições dos teóricos e autores se manifestaram como guias para sistematização do pensamento. O aporte teórico contou com as colaborações de Jean Chevalier et al. (2018) de acordo com o verbete do labirinto, de Virgínia Kastrup (2015) com a contextualização sobre o método cartográfico proposto por Deleuze e Guattari, de Christine Greiner (2006) analisando sobre o corpo que não se dissocia do espaço, com os estudos de M. Darcy Uchôa (1959) sobre a despersonalização e de Daniela Souza, Luiz Prado e Cesar Piccicini (2011) sobre o contexto da depressão pós-parto. Aproprio-me ainda dos aspectos antropofágicos apontado por Michel Riaudel (2011), da dualidade que envolve o sagrado e o profano de Mircea Eliade (1992) e do contexto histórico sobre o feminino pautado por Simone de Beauvoir (1967).

Apresento, assim, o discurso que diz respeito à construção e à transformação da espacialidade, com intuito de melhor retratar a ambiência das imagens mentais em vista da sua materialidade. Em um primeiro momento a disposição do espaço se manifestou num cubo com 8m³ de área, feito com cano de PVC pintado de tinta preta; em seguida, por meio da necessidade de me dispor de uma maior liberdade corporal, o espaço se reconfigura numa espécie de labirinto demarcado no chão com fita isolante também de cor preta. Por conseguinte, o labirinto se coloca como cartografia que rege inclusive as características voltadas para a forma de aprendizagem que se dá por várias vias do entendimento, se caracterizando pelo aspecto metamórfico e de retorno. Destaco a intenção de fazer uma associação do corpo como a continuidade do espaço através das estratégias que envolvem o figurino e a sonoplastia, em virtude da materialidade das imagens mentais.

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O que permeia o trabalho também são as questões referentes à escolha de se trabalhar com a performance, tendo em vista a variedade de metodologias e de estéticas oferecidas durante o curso e as simbologias voltadas para as ações através da proposta de roteirização, na qual apresento as significações dos gestos desenvolvidos. Assim, também será evidenciada a relação entre espaço, corpo e objeto, visando seus desdobramentos e sua dualidade.

Destaco, nesta perspectiva, a presença do feminino na composição do trabalho. A narrativa onírica surge para mostrar como, diante das imagens produzidas, o feminino permanece na infância e na memória que emerge em Bálsamo. A dualidade, presente nas ações e nos objetos de Aurita, transparece a relação com o sagrado e com o profano me propondo a desconstrução dos aspectos históricos que impõe a mulher um lugar predefinido através dos padrões. Aurita subverte os fatos tidos como “femininos” pela sociedade machista, rompendo com o mito do “eterno feminino” (Beauvoir, 1967) e utilizando-se dos aspectos inerentes à mulher, como a menstruação, o parto e etc., para a ressignificação da imagem feminina, enaltecida pelo olhar subversivo da transformação.

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CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA (IN)DISCIPLINAR

1.1 Memória como campo de resistência

A pesquisa aqui realizada parte de campos distintos de criação artística. A princípio, ela corresponde à consciência diante das minhas memórias de infância, bem como das imagens mentais que se apresentam nos meus sonhos. Desta forma, destaco os exercícios de criação desenvolvidos em disciplinas do curso de Licenciatura em Teatro (2014-2018), as quais ajudaram a compor as quatro figuras que permearam meu processo criativo. Tais figuras, apresentadas no presente trabalho, auxiliaram na composição do extrato cênico Bálsamo1, objeto do segundo capítulo. Sendo assim, ao longo do trabalho procuro fazer uma reflexão sobre meu percurso dentro do curso a partir de disciplinas específicas, bem como das experiências pessoais que me atravessaram e fizeram com que eu buscasse compreender tais vivências como propulsora do fazer artístico.

Para as figuras surgidas durante o processo de criação nas disciplinas, atribuí os seguintes nomes: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito. As mesmas fundem-se na figura central de Aurita que carrega as quatro faces em si e conta suas histórias de forma híbrida. As duas primeiras foram desenvolvidas na disciplina Elementos de

Treinamentos Pré-expressivos (2016.2), cuja proposta era dialogar com as poéticas

corporais inerentes aos estudos da Antropologia Teatral, bem como o uso de imagens fotográficas e pinturas. A terceira figura nasceu na disciplina Estudos da Performance (2016.2), sendo objeto de trabalho também na matéria Composição Coreográfica (2017.1), ofertada pelo curso de dança. A quarta e última surgiu na matéria de TCC I:

Espetáculo (2017.1), na qual, além da performance, estudávamos contextos

relacionados à teoria da patafísica proposta pelo dramaturgo francês Alfred Jarry. As figuras por hora apresentadas norteiam este trabalho, sendo melhores retratadas no tópico seguinte.

1 Apresentado na mostra de composições coreográficas no início de 2017, no evento Tudo à Mostra,

organizado pelos alunos e pela coordenação do curso de teatro, no final do ano de 2017 e no Congresso Reperformar o Afeto no início de 2018.

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No presente tópico, o que permeia o discurso, além da investigação que introduz o processo, é a forma como me coloco (in)disciplina, dentro de tais componentes curriculares do curso, questionando meu papel como artista-criadora e as propostas disciplinares. A trajetória manifestou-se diante da necessidade de composição relacionada às memórias, às imagens da infância e da casa, baseada na sobrevivência da minha voz e do meu corpo em estado de criação, cujas necessidades ocasionaram desvios no entendimento do conhecimento regular. Portanto, a expectativa do saber a qual abrangeria somente os conteúdos voltados para tais disciplinas, se reverteu em disposição e inserção das minhas lembranças com vista na necessidade de construção poética. A criação artística ultrapassou as propostas no âmbito acadêmico em função da necessidade de uma investigação que abrangeria a relação tanto com a coletividade, advinda da turma, quanto com a individualiadade originária das minhas vivências.

Durante os estudos, identifico na composição um manifesto do eu que se firma através da relação construída pela interferência e pela contribuição do externo, apesar do caráter individual do fragmento performático. O processo pressupõe um aspecto de pluralidade e de alteridade que permeia a “ideia de esfume” relacionada aos olhares evocados pelos colegas enquanto expectadores e em exercício, assim como a relação inversa que desvenda e produz outros olhares. Na perspectiva de criação voltada para as intervenções e proposições dos colegas em sala de aula, vislumbro a construção da aprendizagem, cujo foco se manifesta de forma horizontal. Ou seja, o processo de criação o qual toma sua consciência durante as disciplinas, desvia-se de qualquer relação hierárquica que compreende o formato de aula e manifesta-se considerando a produção dos sujeitos presentes durante os exercícios.

No entanto, a busca pelo saber, necessária para compreender a própria poética, revigora-se no conceito de figura utilizado durante o desenvolvimento da pesquisa, de modo a apontar caminhos para o entendimento das composições cênicas. O significado da palavra figura emergiu nas primeiras investigações, permeado pela consciência do surgimento de imagens que reverberaram na construção e na costura dos fragmentos. Segundo a obra Figura (1997) de Erich Auerbach, o conceito está remotamente ligado à “forma plástica”, mas historicamente agregou definições como: imagem, cópia, forma que retrata, forma que muda, visão de sonho e até mesmo a concepção de figura de linguagem.

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Durante seus estudos, o filósofo alemão descobre a alusão relacionada à interpretação figural da palavra, revelada e expandida pela Igreja no Período Medieval. Portanto, essa interpretação indica a prefiguração concreta de algo que acontecerá em um momento futuro.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo, mas também ao segundo. Enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois polos da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. (AUERBACH, 1997, p. 47)

Diante desse fato, considerando as figuras que surgia repetitivamente através das minhas memórias, pude sondar esta reflexão que explica a interpretação no contexto deste trabalho. As matrizes desenvolvidas são femininas, de aspectos velhos ou relacionadas com o sofrimento, com a dor e com a loucura. Por trás de certa obscuridade, observei que os reflexos contidos nessas aparições expunham revelações que falavam muito sobre as figuras femininas existentes na minha família. Assim, tracei um paralelo entre as fantasias da memória que prefiguram as vivências maternais da minha realidade. O encontro entre as fantasias e as experiências da realidade, bem como figuras reais e fictícias, compuseram o fragmento Bálsamo.

O título surgiu da condição da imagem do corpo morto, porém zelado e embalsamado, que tanto permeou minhas mais longínquas confusões sobre vida e morte. A metáfora refere-se às memórias restauradas e preservadas em virtude da dramaturgia pessoal e poética apresentada neste trabalho. A imagem também indica o corpo como caixa e/ou o corpo como moradia. Ainda que o mesmo possa esconder algo ou pareça estar morto externamente, ele pulsa por dentro como o brilho dos vaga-lumes que desaparecem na grande claridade e resurge diante da poesia por trás de sua ingenuidade.

Aqui, reverberam-me os pequenos lampejos que Georges Didi-Huberman evoca em seu livro Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011). A obra retrata momentos históricos e políticos através de observações de filósofos, poetas e escritores relacionadas à figura do vaga-lume. A proposta do autor enaltece a importância da imagem do povo como

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aparição que persiste e sobrevive diante da feroz luz do poder. As grandes luzes tentam apagar o brilho do pensamento supostamente ínfero das luzes pequenas. E é justamente nesse brilho efêmero que incide a ideia da resistência poética retratada aqui.

[...] Trata-se nada mais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio “princípio esperança” através do modo como Outrora encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, uma constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio futuro. Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes uma constelação? Afirmar isto a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar faz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração. [...] (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 60)

A partir da ideia dos vaga-lumes trazida pelo autor, me aproprio dos pequenos lampejos de contraposição que fazem jus às imagens evocadas pela criança ou pelo poeta, que geralmente apagam-se diante da imensa luz dos convictos. Entretanto, a mesma luz que se apaga, reacende-se através de sua perseverança e intuição ingênua. O brilho passageiro em movimentos de compressão e de expansão se condensa durante a infância tornando-se política do ser. Estes passos contemplaram o processo de criação de Bálsamo, que resiste a um diálogo com as memórias do passado, pautado na sua ressignificação através da imaginação, e retornam-me impulsionando o meu processo de criação artística.

Antes mesmo de ter contato com estudos sobre o teatro, já questionava a relação entre o imaginário do ser e sua existência no universo. E nisto, posso incluir fortemente fases da infância, nas quais eu e minhas irmãs, longe da proteção de nossa mãe que precisava nos deixar pra trabalhar, inventávamos nosso mundo diante de toda aquela liberdade.

Em nossa antiga casa não havia quartos ou se quer cantos da casa que pudéssemos nos resguardar. Nas minhas mais distantes lembranças, vivíamos num único ambiente até meados dos meus 10 anos de idade. Nos momentos de angústia, me trancava em meu mundo e, coberta por um lençol, protegia-me dos sentimentos ruins. Nas ocasiões de solidão, repugnava a mim e aos meus pensamentos, reforçando o desejo e a

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necessidade de habitar e me esconder no meu próprio corpo. Eu me fechava, me fazia caixa lacrada como encomenda secreta que somente uma pessoa pode desvendar. A imagem da caixa me fez entender suas paredes como minha própria pele. O menor vestígio de movimento resultaria em indícios da respiração, somente.

Houve momentos, até alcançar algum entendimento sobre a experiência poética, nos quais meu corpo embalsamado de memórias me possibilitava a consciência de acessar visões e aparições de imagens mentais. As imagens que me surgiam em sonhos da infância deslocavam-me para outro sentido: o imaginário. Estagnada diante da necessidade de fuga, encontrava nesses sonhos um estado confortável. Eu não sabia exatamente o que isso tudo significava, quase sempre eu findava por escrever sobre as imagens num caderno e até então isso já me satisfazia.

Em um dos sonhos, uma voz intuitiva me ordenara que eu corresse até chegar ao pé de uma ladeira longa e escura, que alcançava o interior de uma casinha pequenina, com suas paredes feitas de escuridão. Chegando a casa, me dei conta de que o dia era escuro e a noite clara. Então me indaguei: de que ou de quem eu corro? Para onde? Por quê? Corria do rosto “feminino” do céu, um rosto forte com cara de chuva e vento molhado, como se estivesse segurando uma mangueira furada que rega o espaço. Eu sempre conseguia chegar até a casa para proteger meu corpo e meus olhos em seu interior. Isto me retornara constantemente ao longo da minha infância.

Ao ingressar na faculdade, me deparei com os escritos de Gaston Bachelard (2003) que manifesta a casa como guardiã dos devaneios do sonhador, onde criamos o nosso primeiro universo antes mesmo de vivenciar experiências no mundo externo. Quando o ser verdadeiramente encontra o menor abrigo, ele se enraíza no cosmo. Essa primitividade pertence somente aqueles que aceitam sonhar. A casa abriga o imaginário do sujeito da infância, possibilitando ao adulto um mergulho no passado, por meio das lembranças desdobradas no tempo presente. Os momentos de imaginação regados pela criança sobrevivem através da proteção que oferece este espaço, não só diante de seu aspecto físico, mas também de sua virtualidade onírica e fantasiosa. Um domínio imemorial, para além da mais distante memória, se abre para o sonhador do lar. Nossas diversas moradas guardam o tesouro dos dias antigos, memória e imaginação comungam em aprofundamento mútuo, constituindo-se de lembrança e de imagem.

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As imagens reexistem no ciclo que compreende a criação poética ou pelo contrário, o ciclo se compõe pelas imagens que sempre acompanharam os passos dessa repetição significativa através de sua inventividade. Aqui ecoa a imensidão íntima que Bachelard discute em sua obra A Poética do Espaço (1975). No instante do vazio2, abrem-se as portas dos devaneios que adentra a imensidão, onde certamente as imagens latejam a vigor de produção sempre retornando à solidão. No universo do sonho, o sonhador já não vislumbra a realidade tal como ela é, e isso se reverte por meio da existência da imaginação.

No vazio, encontra-se o ser puro, de imaginação pura, que provoca, durante o devaneio, a imensidão das imagens purificadas e ativas por excelência desde seu instante inicial, que estão livres da necessidade de analogias ou referências, pois são inteiramente constituídas desde a primeira contemplação. Segundo o autor, a imensidão é o movimento do ser imóvel. Externamente nada acontece, mas internamente olhamos com grandeza o universo. Deslocamo-nos por espaços incomparáveis que esse estado de intimidade nos propicia. Foram por esses deslocamentos que transitamos Aurita e eu. Ela se tornou minha aliada no processo de embalsamamento da memória, cujo corpo elucidara luz de resistência. Desde a infância até a construção do imaginário do presente trabalho, os espaços e tempos se fundem e já não são como o óleo e a água, rompendo limites e fazendo movimentar-se em homogêneo espaço que ultrapassa as demandas do tempo e me remonta no fazer que transita entre os tempos do passado, do presente e do futuro.

De dentro da caixa, vi-me perante diversas imagens e figuras que me surgiam repetidamente. Diante da estranheza de suas faces, o medo me tomava conta, e de repente eu me via frente a mim mesma. Cássia Lopes em Um Olhar na Neblina (1999) explica que Sigmund Freud, aborda a questão da inquietude do estranho3 como algo que assusta e provoca medo, como desconforto, porém, isso remete ao conhecido, ao familiar, na qual seria uma categoria do próprio inconsciente. A autora ainda aponta em Freud uma premissa que define o estranho em relação à realidade, através de algum

2 Neste sentido, Segundo Peter Brook, “Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço

vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música, só pode existir se a expressão for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la.” (BROOK, 2010, p. 4).

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elemento familiar reprimido. Quando esse elemento explode, ele desvela-se como uma realidade estranha. Portanto, a condição de renascimento do impulso primitivo reflete no sujeito o estranho, já que o mesmo viveu repressão em sua origem. Minhas imagens espelhavam anseios pequeninos e inocentes que latejavam diante do vasto mundo prestes a me engolir. E como foi insuportável conseguir deixá-los sobreviver até o momento em que alcançassem sua menor virtude no presente.

A busca pela presentificação da memória permeou as investigações dramatúrgicas e corpóreas das quatro figuras desenvolvidas no curso, que mais tarde fundiram-se em Aurita, figura central do fragmento Bálsamo. Esta, que de tão soterrada na obscuridade do inconsciente, parecia até chegar aos portões do imemorável. No entanto, sobreviveu ao engessamento social que tende a nos fazer vencer pelo cansaço. As imagens vislumbradas no passado agora ressoam corporificadas como símbolo de resistência poética e política que me mantém ativa no ato da criação.

Em sua obra Produção de Presença (2010), Hans Ulrich Gumbrecht elucida que a presença está ligada à sensação de ser a corporificação de algo. A intensidade da presença pressupõe uma oposição à procura por sentidos (explicações) que instaura a distância e desvia o estado de presença à sua redução. A serenidade do corpo advém da vontade de querer ser e de estar ali, fazendo possível a ação da experiência diante da presença. No entanto, há uma alternância entre intensidade e apaziguamento perfeito, são nesses instantes que conseguimos viver momentos de presença; quando os pensamentos que nos trazem as lembranças relacionadas aos nossos sentimentos individuais, sejam eles alegrias ou tristezas, já não interferem ou distanciam nossa relação com os aspectos externos. Desse modo, isolamos esses pensamentos particulares no corpo e a distância se transforma em estado de presença, cuja experiência alcança a virtude de estar-no-mundo.

Diante disto, Lopes traz ainda, nos seus discursos sobre o aspecto da repetição que atravessa o mito de Sísifo, a potência que está por trás deste ato e as questões que resistiram ao meu processo de sobrevivência. Sísifo como reflexo do poeta, ao empurrar o rochedo até o alto da montanha e repetir incansavelmente a ação, nos revela um tom irônico que transforma a inutilidade do gesto, a princípio tratada como infernal, numa poética do fazer como expressão de vontade e de desejo. Assim, a ação que se apresenta como um fardo a ser cumprido por Sísifo torna-se ensejo de libertação.

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A tessitura da memória provém tanto da lembrança quanto, não menos importante, do esquecimento. O artista adquire diante disso a persuasão do disfarce e se apropria do fingimento que possibilita motivos e caminhos impulsionados pela invenção, permitindo a continuidade da repetição por meio desse filtro. Com isso, Lopes explica que Deleuze revê o papel da pulsão da morte:

O eu centralizado do autor morre no disfarce, na re-presentação. O ato de repetir exige a presença, assim, da morte. No disfarce, no poder da máscara, uma identidade fixa e centralizadora, construída pela permanência do hábito, morre e, com isso, as vozes de outros se contorcem nas páginas, permitindo a repetição na diferença. (LOPES, 1999, p. 62).

A repetição se constrói na diferença, desencadeando sua multiplicidade no que diz respeito às máscaras. Desta forma, a presença da morte está para a ausência da matriz originária que se suplementa do novo. Isto é, a morte abre espaço para surgir novos “eus”, que se embriagam nesses movimentos do retorno e da diferença. Portanto, a morte e o disfarce referem-se aos destinos que estão também ligados aos pontos de partidas, cujas máscaras transitam em regresso e progresso no labirinto da criação diante da sua demasiada pluralidade.

Se, na literatura, Sísifo e o rochedo representam, respectivamente, o poeta e a palavra, nesse contexto eles despertam o eu artista e a memória. O gesto da repetição mora na solidão deste mergulho e tece-se em composição e decomposição. Assim, como seus passos, os meus também reexistiram pela crença. A arte transgrediu-os no limiar da linha tênue entre crença e descrença, morte e vida. As palavras escritas no papel são como minhas pegadas, apagam-se por natureza e através da necessidade de tomar outros rumos e chegar a destinos filtrados pelo ciclo, remarcam o chão, nos quais traçam o percurso manifestado pela experiência vivida.

1.2 As faces de Aurita

A ressignificação da memória ressoou para mim como voz de súplica por sobrevivência poética diante do engessamento social que tenta impedir o acontecimento da transformação e da resistência individual. Assim, proponho, em virtude do fragmento

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performático Bálsamo, a presentificação da ausência como eco de potência criativa que permeia o resgate das imagens advindas dos devaneios e sonhos da infância.

As imagens dizem respeito às experiências sinestésicas voltadas para as figuras centrais do fragmento performático Bálsamo: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, repercutidas em uma única face: a de Aurita, que contempla os anseios e as características das quatro forças de forma híbrida e suplementar. Contudo, antes de começar a exprimir o diálogo entre as figuras, considero importante falar sobre quem foi Aurita4 fora da ficção. Essa mulher ecoava em mim antes mesmo de seu nome pairar sob as ideias de criação da poética, pois existia em minha memória a personagem real. Aurita fora uma babá que trabalhara em minha antiga casa, nos tempos de infância. Recordo-me bem de sua força e de seus cabelos que eram tão pálidos que quase chegava a ser da cor de sua alma. Tornava-se nossa mãe nos tempos que a saudade ainda não era entendida. Eu e minhas irmãs gostávamos de imaginar histórias sobre ela e atrelada a isso estavam as que ela nos contava.

Ainda ouço, como se fosse hoje, o rangido do balanço de sua rede surrada e cheirosa que nem café feito na tardezinha de domingo, quase sempre depressivo. Aurita

carregava baldes de lágrimas descansadas na desilusão de que crer nas pessoas

enruga-lhe a garganta. Vi-a desamparada na suspensão da solidão e diante de sua sufocante respiração; eu a sentia. Não entendia o motivo de tanta melancolia, mas acho que isso de alguma forma impregnou em mim, causando-me um olhar diferente sobre as coisas. Na época, ninguém enxergava minhas mãos e suas preces, somente avistavam uma

bolha no dedão da mão esquerda que tem formato de placenta e se escondia

entrelaçando pelos outros dedos. Com Aurita acontecia diferente, além de observar a placenta estacionada, ela me falava sobre a textura da pele que a cobria me fazendo

enxergar a beleza da aceitação. Às vezes, eu a confundia com minha mãe, mas nos dias

ruins seus olhos me faziam ter medo e estranhamento. Aquele rosto me era familiar, porém, sua figura acompanhou e contribuiu para todo um desencadeamento do meu olhar sensível.

Assim, passei a acreditar nessas construções regadas pelos impulsos que os

momentos de liberdade e de imaginação podem nos proporcionar. Aurita agora se funde

4 Utilizarei grafias distintas para diferenciar as “Auritas”, as quais representam a personagem fictícia e a

personagem real. Sendo em itálico para referir-me à figura de Bálsamo e sem destaque a Aurita que existiu na vida real.

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nessas quatro faces e está presente como inspiração primordial para condensação das figuras que reexistiram no meu imaginário.

Na disciplina de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos, ministrada pelo professor Robson Haderspeck, no segundo período do ano de 2016, tive a oportunidade de iniciar um trabalho voltado para imagens concretas. Nessa ocasião, pude perceber que minhas escolhas dialogavam, intrinsecamente, com momentos da infância nos quais

eu me encerrava em forma de caixa. A princípio, foi solicitado pelo professor que

trouxéssemos duas imagens que nos representassem ou nos emocionassem. Assim, ficou estabelecido que partiríamos das imagens de uma árvore e de uma pintura.

A árvore escolhida por mim foi o Umbuzeiro, de nome científico Spondia Tuberosa.

Imagem 15: Planta Spondia Tuberosa (Umbuzeiro). Foto: Rosa Melo.

Considerada a árvore sagrada do sertão, por Euclides da Cunha, ela é bastante conhecida no interior do Nordeste, uma vez que assume a função de reservar água em suas raízes para se prevenir de secas futuras. Desta forma, desenvolvi a figura Tuberosa

5

Umbuzeiro (Spondias Tuberosa) de Rosa Melo. Disponível em

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baseada na sede, remetendo às características relacionadas à planta. Aqui surge a imagem do labirinto na forma como a raiz, o caule e os galhos do Umbuzeiro se organizam espacialmente bem como nos movimentos que o corpo da figura Tuberosa realiza.

Por ser um verme, ela alimenta-se de terra e seus movimentos estão completamente presos nas suas raízes, conseguindo livrar-se somente ao pingo do meio dia. Rasteja-se pelo chão fervente em busca de outros alimentos, como o sangue. Pela sua vagina saem animais pequenos e podres que furam cabeças alheias e sua menstruação é feita de cascas de feridas que ao serem expelidas para o mundo, contaminam a natureza.

A segunda figura desenvolvida na disciplina partiu da pintura que uma senhora penteia os fios de cabelo da criança que parece não gostar dos movimentos daquelas mãos.

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Imagem 2: Pintura A Penteação da Neta6.

Sob o título Malambo, a figura se comunica e sente o universo através do contato com os fios existentes e dispersos pelo espaço. Após conseguir se comunicar, a velha reúne os cabelos que serão queimados na chama de uma vela. Na ação desenvolvida, vivencio junto a ela uma peste danada de piolhos no momento da partitura corporal, cujos gestos de contaminação epidêmica crescem a partir da relação com o outro. A relação com o labirinto se manifesta também nesta figura, na precisão do emaranhado que os cabelos acabam por provocar. Durante as ações, utilizo a partir de minhas lembranças, a música que sempre tocava na difusora da igreja de minha cidade natal, que fala sobre um barco esquecido7, me trazendo a nostalgia das tardes que se dissipam pelo céu.

Nesse período do curso, estive diante das imagens que se revelaram como o estranho que tende a retornar. Dispus-me, então, a encontrar esse estado investigando as possibilidades de contato com o espaço e o grupo de colegas de curso. Diante disto, encontrei nos escritos de Jerzy Grotowski (2010) um texto sobre o corpo-vida que fala da importância do reconhecimento do corpo como base que carrega todas nossas inscrições de experiências, desde a infância até o momento presente. O meu primeiro passo foi entender o momento, respeitando os limites das proposições vindas do encontro entre o eu, minha memória e as interações e intervenções de todo coletivo. Segundo Grotowski, o ato do corpo-vida implica nessa comunhão com os seres, que é virtude primordial de nossa natureza. O impulso sincero nasce da consciência de estar presente ocasionando a disposição para os compartilhamentos entre o coletivo que nos impulsiona e desperta vida. No mesmo instante, percebi que eu já não interpretava o meu resguarde no interior da caixa como proteção e acolhimento, era necessário desnudar-me dela para poder presentificar-me na liberdade de estar em exercícios de reinvenção de mim mesma e de minha memória.

A partir de Tuberosa, meu corpo enfraquecia-se em sua forma física ressecada, áspera e com seu emaranhado de galhos que sufocaria até a si própria. Em Malambo, o corpo trapo empestava a natureza com sua maldade. Porém, eu estava disposta a esvair

6The Combing of Grand-daughter” do pintor grego Georgios Iakividis, 1886. Disponível em: <http://wiki.cultured.com/people/Georgios_Jakob> Acesso em 02 de outubro de 2018.

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da caixa que me trancafiava dentro do impossível e da negação. Ao abri-la avistei uma floresta. Já não havia distinção entre Tuberosa e Malambo, tornaram-se uma só, conseguindo vislumbrar seu lugar no espaço fora da caixa.

Imagem 3: Atriz nas figuras Tuberosa e Malambo, simultaneamente, na sala A do Deart/UFRN.

O processo que norteou o desenvolvimento das ações na disciplina partiu de exercícios de treinamento energético proposto pelo LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, que visa, através do esgotamento físico, a descoberta de novas energias. Durante as aulas iniciais, antes de investigarmos as imagens individuais e coletivas, seguíamos os passos do treinamento de forma ritualística, pelos quais, a cada encontro que se passava, era possível perceber a abertura e a naturalidade com que as histórias aconteciam. O treinamento era conduzido na seguinte sequência:

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 Aquecimento individual: alongamento corporal, aquecimento vocal, concentração e presença para o trabalho que estar por vir;

 Corpos deitados e dispostos pelo chão, percebendo os mínimos movimentos que a respiração provoca, controlando o ritmo da mesma;

 Percepção das qualidades de pulsos e impulsos advindos dos movimentos da respiração;

 Movimento que nascem do ato de espreguiçar-se, esticando e alongando o corpo nas mais diversas possibilidades ainda em nível baixo;

 Inicia-se um deslocamento do nível baixo aos níveis médio e alto;

 Dinamização da energia: os movimentos intercalam-se entre os três níveis e sua intensidade altera do lento para o rápido;

 Ocorre, a partir da exaustão, um esvaziamento das energias, abrindo canal para uma nova energia;

 A construção da nova energia começa a se instalar;

 O coletivo inicia um processo de troca dessas energias, através da interação dos movimentos;

Nesse momento do treinamento, o professor nos conduz com alguns “stops” e bruscamente os corpos paralisam e retornam aos seus movimentos.

 O treinamento continua com apontamentos de alguns elementos técnicos propostos pelo professor como: o corpo como bola de borracha; o corpo numa piscina de concreto; o corpo com alavancas; ativação do koshi; sensação de asas nas costas; lançamentos; porcentagem dos movimentos; feches de luz que saem do corpo, etc.

A investigação das energias para composição de novas ações corporais teve duração de dois meses. Foram semanas de puro cansaço e exaustão através da repetição do treinamento, mas considerei o trabalho gratificante e necessário, pois eu buscava o alcance de novas formas para reinvenção da memória. Durante o processo, eu me sentia confortável e, apesar das dificuldades, encontrei no gesto repetitivo a novidade.

Partimos então para o trabalho com as imagens. A princípio, após a pesquisa e escolha das imagens, as construções das matrizes iniciaram-se da simples observação e codificação das mesmas. Colocávamos no corpo suas posições e formas estáticas, sempre como ponto de partida e, diante das indicações, os movimentos e os diálogos

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iam surgindo. Com a construção corporal, vieram os trabalhos dos ressonadores para encontrar as vozes das figuras. Minhas matrizes quase não falavam, mas foi na repetição de seus próprios nomes que encontrei o impulso da vibração grave em suas vozes. Elas são como o barro denso e pesado, rachando-se de sede, sem nem se quer haver saliva em suas bocas. Mas são como o fogo também, inconstante e leve diante de suas existências, disparando uma luta contra as cinzas que confundem com o que as aprisionam.

A floresta estava posta, e as figuras também. Elas ativavam-se como se brotassem das gotas de suor que escorriam pelos corpos até chegar ao chão. Algumas me traziam mensagens das falecidas carnes de meus familiares que morreram afogados no álcool, me traduzindo o cheiro das paredes do quarto pequeno, nos fundos da casa de minha avó materna, que servia de túmulo todas as vezes que seus filhos morriam. Ah, e como morriam. Constantemente. Incessantemente.

Aurita se concebe aqui em mulher árvore, vinda das raízes do profundo solo e

destinada a contaminar o espaço com seus frutos que de tanto comerem, ardiam os dentes e quebravam-se as gengivas alheias. O umbu de casca plana, com as veias a explodirem, guardava dentro de si toda força materna de várias gerações. Os cadeados de minha caixa, ao menos, foram rompidos e a memória se refez na constante metamorfose de presentificação. A caixa, através de sua ressignificação, já não interrompe ou esfuma o processo de experiência, pois contem frestas de luzes que surgem em decorrência do contato com o espaço e se colocam disponíveis para intervir e interagir na memória.

Nesse percurso, ainda no segundo período do ano de 2016, em paralelo a

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Imagem 4: A atriz na figura Prenhe.

No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN. Foto: Produção da Mostra de Composições.

Nascida na disciplina de Estudos da Performance ministrada pela professora Naira Ciotti, pude através da figura, reviver o momento das dores sofridas do meu parto. Aqui, houve um aguçar na perspectiva voltada para a percepção do tempo/espaço. Eu estava diante da condição de reviver uma realidade, desde sua inevitável ressignificação e do tempo que havia se passado até o ato da reperformance. Houve ainda a necessidade de me apropriar de um objeto como metáfora para a ação de expelir. Busquei por um objeto que conseguisse expressar tempo/espaço, distintos e iguais simultaneamente.

Na ocasião do parto original, existiu uma analogia à sensação de estar vivenciando tudo aquilo em um hospício. A parição ocorreu em um dos leitos do hospital NASF, situado na cidade de Carnaúba dos Dantas/RN, na data de 29 de dezembro de 2012, onde nascera minha filha. O quarto contaminado da cor branca, sem que houvesse nenhum sintoma de qualquer outra cor, inclusive no sanitário, nos lençóis e nos rostos dos profissionais que não apareciam, fez emaranhar-me em surto.

Com esse ensejo, pude perceber e vislumbrar no objeto da biloca (bola de gude) esta intensidade. O impulso ao ser expelido da vagina, seu barulho ao cair no chão, seus desenhos e formas perante os movimentos no espaço, tudo se concentrava na medida do

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tempo e do espaço que eu esperava provocar. A rigidez da estrutura do material do objeto me levou a pensar e associar ao leite pedrado que jazia dentro de mim. As bilocas aparecem para mim como mundos distintos e iguais em tempos diversos, se complementando e misturando com as bilas do olhar do espectador que observa e interpreta as ações desempenhadas.

O intervalo de tempo e a reconfiguração dos espaços, entre o ato original e o ato da reperformance, me fez refletir sobre a ausência diante do presente. Aqui, a ausência da dor não significaria sinônimo de conforto. O que se moveu em um corpo passado se traduz na reconfiguração desse corpo no presente, tornando-se ausência presentificada.

Renato Cohen, em sua obra Performance como Linguagem (2013), define a performance, como uma função da relação entre espaço/tempo. Nas perspectivas de conceito e de prática, a performance advém das artes visuais e não das artes cênicas. No entanto, ela propõe um limite entre as duas artes através do seu hibridismo, levando em conta as características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade. Desta forma, ela passa pela chamada body art, onde o artista se coloca no espaço como sujeito de sua própria obra de arte, enquanto escultura viva, transformando-se em atuante que age como performer (artista cênico). Levando em consideração esta definição, o interessante aqui é a questão de como a performance dispara certa transgressão diante da realidade, alterando a perspectiva entre espaço e tempo que possibilita experiências podendo compreender o passado, o presente e até mesmo o futuro, em virtude da criação e poética do sujeito como fio condutor.

A performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromisso com a mídia, nem com uma expectativa de público, nem com uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a liberdade da criação, com a força motriz da arte.

A arte como formula Freud, caminha com base no princípio do prazer e não no princípio de realidade. O artista lida com a transgressão, desobstruindo os impedimentos e as interdições que a realidade coloca (a obra de arte vai se caracterizar por ser uma outra criação: se eu vejo uma paisagem que objetivamente é verde, sob uma ótica vermelha, nada me impede de pintá-la assim). (COHEN, 2013, p.45)

Aqui, a arte e a vida se misturam. A invenção e a memória compõem a criação. As ações de Prenhe já não significariam representações de um ato passado, mas insistentemente diz respeito à ruptura do apego que ocasiona o retrocesso na potência da

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experiência. Portanto, percebe-se diante dessas afirmações sobre a performance, seu caráter radicalizador que concerne na satisfação do prazer, prevalecendo e ultrapassando as exigências e as imposições engessadas perante à realidade.

No primeiro período do ano de 2017, na disciplina de Composição coreográfica, ofertada pelo curso de dança e ministrada pela professora Maria de Lurdes Barros da Paixão, tive a oportunidade de pensar as ações de Prenhe a partir da composição de um extrato coreográfico. Os impulsos dos movimentos partiam do ato da dor e me possibilitaram o controle de uma fluidez e o rompimento total do cordão umbilical que ainda me mantinha ligada à caixa.

Com isso, Aurita estava prestes a complementar-se em Bálsamo. Mas, foi no final de 2017 que ela reluziu com a força de Salito, desenvolvida na disciplina de TCC

I: Espetáculo, ministrada também pela professora Naira Ciotti.

Imagem 5: A atriz na figura Salito.

No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN. Foto: Produção da Mostra de Teatro do DEART.

A inspiração inicial se manifestou da imagem de uma parede se desmanchando em pó, advinda de um sonho. Todas as pessoas do universo tinham seus corpos feitos de um material semelhante ao gesso. Os mesmos se desmanchavam em virtude de mazelas

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advindas dos corações podres. Em contrapartida, os corações providos de pureza garantiam o estoque de partes corporais que os mantinham vivos. Era possível para as pessoas boas reconstruírem-se, tanto a si quanto aqueles que elas desejassem ajudar, incluindo os de corações ruins que quase sempre estariam prestes a dissiparem pelo espaço, deixando de existirem.

Durante os estudos sobre a patafísica, definida como soluções imaginárias por Alfred Jarry (2004), o presente sonho me propôs, através de suas soluções de sobrevivência, um estranhamento diante da figura. Repercutindo na relação até então construída com Aurita, a quarta e última figura da composição provocara um desmonte de seu corpo, como uma parede que leva pouco tempo para se desmoronar, ela seguiu o sentido inverso que as outras, se decompondo em tempo e em espaço. A patafísica apresentou-se como uma proposição para sua existência, mantendo-se entregue ao público.

No espaço, ela surge desenhando uma espiral (símbolo da patafísica) no chão com giz. Neste momento, sua veste compõe-se por uma máscara e uma saia feita com tiras de elásticos, cujas pontas serão entregues às pessoas da plateia. O público, ao segurar as pontas da saia, é puxado com a intenção de movimentar-se no espaço. A ação de entrega das supostas extensões de corpo representa a distribuição de partes fragmentadas do corpo, como doação ao espectador que agora compõe a ação e o espaço.

Aurita está perpétua, embalsamada. Se ontem me encontrei com a memória, hoje

preservo a capacidade de sua manipulação, pela presença e pela ausência, mesmo diante dos desmontes e acúmulos suportados em nossos próprios túmulos. Aurita se tornou o escuro em uma montanha solitária, cansada de mastigar suas recordações. Mas o escuro sempre nos retorna, apesar das frestas de liberdade. A mulher que brotara do chão e como árvore manifestou seus frutos à natureza (Tuberosa e Malambo), repousando em sua dor a prosperidade da vida (Prenhe), agora se desfaz e se desmonta (Salito) na busca, mais uma vez, pela retomada do seu ciclo (Aurita).

1.3 Metáfora do real

As experiências vivenciadas em Bálsamo propuseram-me uma série de sensações que se caracterizam por me manter em contato e diálogo com a poesia

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concentrada na infância. A abertura para possibilidade de reinventar-me, tanto no campo ficcional quanto no campo da vida, me fez enxergar o mundo ainda com olhar imaginante e perceber que aí está o sentido pra continuar repetindo e me firmando presente e existente aos olhos da arte. O retorno ao túmulo que embalsama minhas memórias se mantém em relação com a imperfeição, me colocando em estado de transformação toda vez que a ele retorno. A resistência impulsiona-me a crer na criação poética advinda de experiências vividas, proporcionando a potência do eu enquanto artista e enquanto inventora de minha própria identidade no trajeto de volta para casa. Aqui, traço a morte como ponto de partida desse infinito mosaico que não cessa por multiplicar-se. Neste tópico, o plano onírico se confunde, ou melhor, se propõe como um reflexo do real diante da linha tênue entre obra e vida.

Eneida Maria de Souza em seu livro sobre crítica biográfica, Janela Indiscretas (2011), explica o fator de rompimento da integridade estética por meio da ponte metafórica entre ficção e realidade. Para a autora, “Metaforizar o real significa considerar tanto os fatos quanto as ações praticadas pela pessoa biografada como possibilidade de inserção na esfera ficcional. Ao espectador o direito de construir também sua história e interpretação do enredo [...]” (SOUZA, 2011, p. 54) Com isso, a estética compreende não somente a ficção, mas uma apropriação de fatos reais para a composição artística e ficcional. No contexto da presente pesquisa, a memória em seu demasiado aspecto imaginante, adentra na fantasia através da narrativa e possibilita à biografia um caráter de compartilhamento que se mantém pela reconstrução das histórias, permeadas ainda, pela relação com o outro e com o externo.

O aspecto narrativo, no qual eu me coloco em primeira pessoa, assumindo a realidade diante dos fatos oníricos, me propõe registros, ainda que incertos, das visões e aparições das imagens do passado vivido ou imaginado. Através do exercício de composição das narrativas autobiográficas e dos sonhos e imagens suscitadas na infância, pude perceber um fortalecimento no resgate do corpus de memória que adquiriu potência na firmação de sua existência, me auxiliando na trajetória de composição de Bálsamo. Sendo assim, esse foi o passo que provocara uma consciência diante da experiência poética, e sucessivamente, um domínio perante às potências que ressignificariam a memória, através de sua inventividade e criação. Trata-se então, de reunir os elementos dispersos e redescobrir a intimidade. Nesse caso, em virtude da criação poética, proponho exercícios de autoinvenção e de sintonizar o tempo-espaço

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entre as experiências do passado em diálogo com o presente da ação criadora e com o desfecho da narrativa pelo aspecto do futuro.

Ainda nos discursos de Souza, destaco a morte imaginária do sujeito que escreve sua própria biografia, na transformação da escrita real em ficção. O atravessamento das histórias reais pela ficcionalidade imaginária converte a biografia em literatura, na qual subsiste o deslocamento intencional da figura do poeta em várias outras. Essa multiplicidade compreende o caminho que busquei para representar a dinâmica voltada para Bálsamo. Nesse sentido, as faces de Aurita distorcem a realidade da minha memória convergindo para o renascimento de composições múltiplas.

Segundo Ítalo Calvino (2010), em seus escritos sobre a visibilidade, há dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parta da imagem para chegar à expressão verbal. Nessa perspectiva, a poética para construção do fragmento performático Bálsamo permeou o segundo tipo de processo imaginativo, percorrendo o caminho que parte das imagens mentais para sua corporificação, chegando à construção da dramaturgia. A escrita se manifesta como condutora dessa composição, já que a mesma guia a manipulação da memória em detrimento de seu registro fixo no papel e no corpo, possibilitando assim, um retorno à imagem originária que reverbera caminhos múltiplos diante da imaginação.

Calvino reflete ainda sobre a importância da preservação das imagens na qual a imaginação transmite-nos de forma individual, porém essas estão suscetíveis a borrarem-se, não adquirindo relevo diante dos mil estilhaços de outros tipos de imagens que se depositam e sujam nossa memória. A visibilidade dessas imagens evocadas no interior se manteve como propósito principal para processo de criação, tornando-se extrato híbrido que alcança a presença da criança, da ficcionalidade e da subjetividade.

A aspiração por essas imagens me propôs a composição do ciclo que compreende um eterno retorno aos aspectos da memória como lembrança do que se é e ao esquecimento que repercute a não existência, colocando-me diante do vazio que impulsiona a novidade na criação. Contudo, a experiência relacionada a esse vazio, no limite da sobrevivência, alcançou virtudes que me colocou em extremo estado de pulsão de presença.

Como ponte entre as perspectivas pelas quais transitou minha experiência, destaco esse vazio seja ele reflexo de vida ou de morte, como impulsionador no ato da criação que reforça a resistência poética e possibilita a sobrevivência das imagens. Vladimir

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Saflate (2016) discute sobre o salto no vazio como redenção e abertura às possibilidades de afetos que a queda está disposta a nos causar, onde a impotência se coloca como obstáculo que esconde o impossível. No entanto, há nisso, os perigos a quem se propõe a esse encontro com o chão. Segundo o autor, o poder reside nos corpos que se sujeitam a quebrarem-se diante da dureza do asfalto, decompondo-se e despossuindo-se para que surjam novos circuitos de afetos. O desamparo, inesperadamente, trata de nos mostrar o impossível através do papel da arte, pois a situação do sujeito desamparado implica no reconhecimento de sua impotência, em contrapartida, ao ajuste pela necessidade de transformação que desvia dessa condição revelando-se em criação.

Recorro, aqui, aos meus sonhos de criança, quando, por vezes eu adormecia vigiando o teto e contando suas telhas. Ao chegar o sono, o teto se derretia diante de meu corpo com sua voz suave, quase calando, gritando silêncios ao meu ouvido e me dando forças para voar. Durante o voo, eu me desviava das árvores, dos fios dos postes e das nuvens que cruzavam o meu caminho. Justo no momento que eu estava possuída da certeza de estar no ar, eu despertava estagnada, com meu corpo estático após a sensação de queda. E um vazio tomava conta de mim. A certeza pura de ter vivido aquilo entrava em conflito com o choque que a realidade provocara.

Portanto, o vazio nesse processo não é inerte, mesmo surgindo em detrimento de um fim, ele suscita no sujeito uma possibilidade de recomeço. A arte é responsável pelo acesso ao impossível, que nos faz transformar o nada em brechas que vazam múltiplas alternativas possíveis. O vazio é um espaço infinito onde se morrem e se renascem saídas e caminhos manipulados pela criação.

O processo de decomposição de Aurita, instaurado com a presença de Salito, direcionou-me à ideia que compreende esse estado, onde o que eu sentia resumia-se no vazio que repercutiu na ação do corpo que se entrega e se desmonta, e enrijece seus movimentos como o cimento secando na parede. No entanto, é nesse momento que

Aurita se firma em Bálsamo. A partir disso, a experiência volta-se para o renascimento

ou para sua lucidez que desperta existência.

Na obra A Procura da Lucidez em Artaud (1996), Vera Lúcia explica que, para Artaud, o nascer significa reconhecer uma alteridade que está dentro de si e que não pode nascer porque é como outro independentemente, enxergando nessa falha a possibilidade da poesia como liberdade. Portanto, deseja-se o relato verídico da fragmentação que se unifica pela força da alma. O poema, então, possibilitaria a

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concentração entre pensamento e alma, como esperança de reconhecimento do poema existente no presente.

Reconhecer o aspecto da existência no contexto da presente pesquisa resultaria na consciência do renascimento de uma poética, que se reconfigura a partir das imagens da memória. A poética diz respeito a uma realidade vista sob o olhar da arte, que através da linguagem tem a finalidade de fazer consumar esse encontro e comunicação entre as imagens da alma e o pensamento do artista. Daí a função transformadora da linguagem, pois recupera para além da racionalidade um ponto que (re) ascende e torna possível a criação. A realidade poética passa a ser o próprio artista, em novidade, substância da imagem (vida) e escala do sentimento (lucidez). O que conta para esse renascimento são a densidade interior e a força do sentimento.

O vazio propõe o renascer resgatado pela força das lembranças, porém propõe finalidades distintas que atravessa a memória em reconstruções e apresenta caminhos para o meu fazer artístico. O ciclo compreende pela repetição, uma criação pautada na ressignificações das imagens e um diálogo que permite o processo permeado pela visitação nos tempos: passado, presente e futuro. Esses aspectos refletiram na perspectiva da existência, tanto na ficção quanto na vida, me propondo o despertar das histórias que traçam um olhar para a perspectiva subjetiva e me motivam a permanecer em exercício de criação no qual a criança faz morada. Portanto, a existência reflete a identidade dentro de seu aspecto de transformação e ressignificação a partir da imaginação advinda da forma individual da interpretação do universo. O processo de criação volta-se para percepção desse ciclo que reúne os sofrimentos e as descobertas, em uma consciência favorável a qual se compõe a vivência artística, propondo um dialogo com a realidade que designa a experiência no presente.

Neste ensejo, Aurita representa minha memória fantasiosa e real, se definindo pelas figuras que a compõe, e perpetua-se pelo vazio, em existência, morte e renascimento que caracteriza o ciclo da criação. Bálsamo encerra-se em fragmentos, numa narrativa não linear, os desvios vão surgindo como as imagens de um sonho que deixam seus rastros ao despertar. Nas primeiras apresentações, a caixa existia vazada e escura, porém agora ela se transfigurou na imagem do labirinto.

Escrever no espaço a história da memória é preencher de vida um corpo vazio. Aurita vive lá em sua casa real, porém vive aqui no encontro com a fantasia, transmitindo sua força para outras pessoas que nem ela própria conhece. Aurita da

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