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CAPÍTULO III: A MODIFICAÇÃO/TRANSFORMAÇÃO CORPORAL

3.2 O Feminino Versus a Cirurgia Plástica

O processo de construção da subjetividade constitui-se através da relação estabelecida como o mundo e com os demais indivíduos, todos inseridos em uma determinada cultura e determinado período histórico. Cabendo aqui ressaltar que esta relação é mediada pela linguagem.

Neste sentido, os meios de comunicação assumem lugar importante na concepção dos novos valores do corpo na medida em que, através de seu discurso influenciam o modo de as pessoas se relacionarem com o mundo e com seu corpo, bem como produz modos de ser que constituem subjetividades.

Aqui, abordaremos a subjetividade do sujeito feminino, buscando responder a pergunta: Por que as mulheres se expõem a riscos e desconfortos resultantes do processo de uma intervenção cirúrgica? O que a mulher busca afinal obter através desse procedimento?

Sabemos que a linguagem tem grande importância para a constituição do sujeito, posto que as partes do corpo e suas manifestações, não são vistas pela psicanálise de uma maneira tão simples como o senso-comum as percebe, segundo Levin (1991) é a significação que é determinada pelo desejo do Outro, que irá transformá-lo em um corpo pulsional.

Para Nasio (1993) Lacan concebe o corpo como falante, não porque ele fala como poderíamos pensar, „ao pé da letra, mas sim, porque ele só existe se for atravessado pela ordem do simbólico, ou seja, das palavras, posto que, só há existência de um corpo na medida em que alguém se certifica dessa existência e passa a falar sobre o mesmo, isto quer dizer, que ele é composto por elementos significantes.

É o mapeamento erógeno que faz o corpo ter a certeza de uma presença, e ganhar uma permanência narcísica, sedimentando então, o traço que desenha a sua forma. O corpo toma para si a imagem da forma do Outro, e ao mesmo tempo em que essa imagem do Outro é objeto de identificação, ela demonstra em sua formação, certa instabilidade. Esse processo de oscilação faz com que o sujeito busque sempre uma imagem que confirme a sua forma.

Portanto, somos dependentes de um Outro, que com o seu olhar nos certifica nossa existência. Isso nos possibilita pensar que há um desejo de ser olhado pelo Outro, considerando que, a partir das modificações corporais, pode-se estar buscando provocar nesse Outro os mais diversos tipos de reação.

Diante disso, percebe-se a todo instante, um exacerbado culto ao corpo, e como diz Kehl (2004), o corpo que mostramos e exibimos é o que vai nos apresentar diante do olhar do Outro, portanto, deve estar bem cuidado para que possa agradar esse Outro, o qual consideramos tão importante. Mas, este olhar também pode ser provocador dos nossos temores, pois ao mesmo tempo em que pode glorificar e exaltar, ele pode também nos rejeitar, criticar e menosprezar. Ainda segundo Guimarães,

O olhar que incide sobre o corpo feminino funciona muitas vezes como um veredito que engendra a experiência subjetiva de ver-se sendo vista como objeto – seja objeto de encantamento ou objeto de desejo, que pode facilmente resvalar para o valor de objeto degradado e descartável. (GUIMARÃES, 2000, p.201)

E este olhar de admiração e recriminação do Outro, faz com que o sujeito busque se adequar aos padrões de beleza, visto que, é dessa forma que ele irá fantasiar a idéia de que será sempre aceito, e principalmente, terá de volta aquele olhar que foi perdido na sua infância, do grande Outro materno.

Por exemplo, os sujeitos que transformam o seu corpo, passando muitas vezes por procedimentos dolorosos, na busca de um ideal narcísico estipulado, gozam a todo o momento para conseguir atingir este ideal, enchendo seu corpo de traços para que assim obtenha o objeto (olhar) perdido de volta. Ou seja, buscamos no olhar do Outro aquilo da infância que está para sempre perdido. Desta forma, a imagem corporal fascina, atrai o outro para olhar o seu corpo, buscando preencher esse vazio deixado na infância.

As técnicas de modificação dos corpos acabam por atingir o imaginário do sujeito, no sentido de que o mesmo estará com um objetivo a ser conquistado: o de transformação

corporal. Entra em questão o fato de que, quando as pessoas buscam essas técnicas, elas fantasiam o fato de que podem alcançar o seu ideal de corpo. Esse corpo da fantasia, que em um primeiro momento é encarnado como um objeto externo é tomado para si, transformando- se no corpo do sujeito, sendo que tais modificações nunca vão ser concluídas e sempre estarão sujeitas a novas adaptações.

As pessoas vão mudando seus corpos, com o intuito de que dessa forma estarão mudando sua identidade, como se fôssemos o que mostramos, como se o corpo biológico definisse nosso Eu.

Freud, em “Algumas Conseqüências Psíquicas das Diferenças Anatômicas entre os Sexos” (1925), lembra-nos da importância da constatação da diferença para a construção do aparelho psíquico e de suas instâncias, especialmente, do Superego. Ao tratar do complexo de castração e da inveja do pênis, Freud aborda a questão da ferida narcísica vivida pelas mulheres em virtude da não visibilidade do seu sexo. Nesse sentido, Novaes (2006) afirma que a forma que falta à mulher, determinará a supervalorização de tudo aquilo que for visível, ou seja, ela buscará ver o que não era possível visualizar, será um olhar compensatório.

Seguindo esse raciocínio Novaes (2006, p.238) nos diz:

O que a menina busca encontrar no campo do masculino não é propriamente o que lhe falta, mas o reconhecimento do que foi posto em seu lugar: um olhar amoroso sobre tudo que em si é visível. É, portanto, na busca desse olhar que encontramos o sujeito feminino.

De fato, como ainda lembra-nos Novaes (2006), se o mandamento estabelecido pelo superego masculino é ter o falo, a direção apontada pelo ideal de Eu das mulheres é ser desejada, é ter sobre seu corpo o olhar amoroso e desejante daquele que, supostamente, tem. Assim, ter um corpo belo, como o discurso socialmente estabelecido acerca das imagens, definiu como belo e atraente, é uma tarefa imposta pelo ideal de Eu. Na opinião da autora seria na busca dessa estética que o sujeito feminino se constituiria. Eis, então, no que reside a primazia do corpo feminino perfeito como constituinte da subjetividade contemporânea: capturar o olhar do Outro, a partir da beleza de seu corpo, característica cada vez mais valorizada na atualidade.

Nasio (1995), ao retomar a proposta de Lacan sobre a alienação no desejo do outro, lembra-nos: meu desejo é literalmente o desejo do outro (p.266). Portanto, se o que o social

deseja e reconhece é o corpo belo, o que resta à mulher senão reconhecer seu desejo a partir desse desejo social?

A sociedade do consumo e do espetáculo, cujas imagens de mulheres belas, felizes e bem-sucedidas estão sempre em cartaz, produz um cenário perfeito para que o sujeito feminino deseje modificar/transformar seu corpo, para corresponder ao desejo cultural e assim poder garantir lugar no palco desse espetáculo e atrair o olhar público.

Outro ponto a ser discutido é o fato de que faltam significantes no campo simbólico que nomeiem o que é ser mulher. Neste caso, a pregnância da imagem toma privilégio, funcionando como uma tentativa de recobrimento dessa falta (o que é ser mulher). Na ausência do que a defina como uma mulher no campo simbólico, o sujeito feminino recorre à mascarada feminina (termo utilizado por Lacan para se referir aos semblantes que portam a aparência da feminilidade). Através da mascarada feminina, as mulheres desenvolvem maneirismos, “caras e bocas”, cobrem-se e recobrem-se, despem-se e voltam a se recobrir, no ritmo vertiginoso da moda dos vestuários e adereços, em constante mutação.

É um dado da experiência cotidiana o fato de que a grande maioria das mulheres se ocupa, com extremo interesse, do seu corpo e dos adereços com os quais o recobrem e o revelam. Mantêm-se num estado de vigilância constante da imagem que se projeta não só do seu corpo, como também do corpo das outras mulheres.

Olhar os detalhes da imagem de outra mulher, traz uma interrogação sobre os detalhes da sua própria imagem, ou seja, o que ela vê na imagem da outra é o que em sua própria imagem corresponde a um ponto de falta. Por exemplo, ver a presença do batom na imagem da outra mulher remete, imediatamente, à ausência do batom na sua própria imagem. O que está em questão é um ponto de falta que diz respeito a uma falta estrutural. Segundo Cabeda (2000, p.219)

O corpo da mulher, na falta de um reconhecimento simbólico, pode tornar-se o suporte de identificação imaginária, porém alienante. A atenção, a curiosidade, o fascínio/inveja que as mulheres exercem entre si testemunham o fato de que cada uma busca na sua semelhante o traço de feminilidade que lhe falta.

Quando o sujeito feminino não suporta conviver com essa falta estrutural, poderá vir a localizar no seu corpo o lugar mesmo onde essa falta se situa. Dentre as modalidades de inserção da falta no corpo, destacamos duas modalidades extremas: a busca desesperadora de

um corpo perfeito e o desinteresse pela estética corporal, o qual pode resultar numa resignação em manter o corpo como um emblema da falta de ser mulher.

Assim, segundo Novaes (2006, p.85):

A questão tradicional – aceitar ou não o corpo recebido – parece ter se transformado em como mudar o corpo, e até que ponto. Convidadas a esculpir seu próprio corpo, como se este tivesse a plasticidade da argila, segundo os ideais fornecidos, as mulheres, freqüentemente, reportam-se a modelos fotográficos, como representantes de uma estética da perfeição.

A imagem de mulher na cultura confunde-se com a da beleza. Ou seja, ela pode ser bonita, deve ser bonita, do contrário não será totalmente mulher. A mulher torna-se responsável pelo seu corpo, suas formas de envelhecimento, e os cuidados consigo mesma passarão a ser vistos como um dever e responsabilidades seus.

Atualmente predomina a ordem do imediato, com a exigência de se alcançar „ontem‟, o modelo atual. Em tempos anteriores, o esforço pessoal afigurava-se como um caminho possível para a aquisição desse ideal, freqüentar academias, realizar dietas, eram meios disponíveis para se adequar ao modelo de sucesso.

Hoje com essa urgência, o processo antes de se constituir em uma trajetória para se atingir uma meta, é vivido como obstáculo a ser superado. Por isso, apela-se às intervenções cirúrgicas, pois o tempo que se espera para a transformação é curto comparando com aquele que exige certo esforço do sujeito (ex: a malhação).

Tudo isso nos leva a crer que o corpo passou a ocupar um novo lugar em nossa sociedade, e conseqüentemente em nossa estruturação psíquica, cultivar a beleza, a boa forma e a saúde apontam para uma nova ideologia que se impõe como um verdadeiro estilo de bem viver.

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