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CAPÍTULO II A INSERÇÃO DE NORMAS TÉCNICAS NO ÂMBITO DO DIREITO

2. O fenômeno de incorporação de normas técnicas no Direito Administrativo

Como as normas técnicas têm existência própria que precede ocasional inserção ao âmbito do Direito Administrativo, não podendo ser vistas como espécies de normas jurídicas, afigura-se necessário agora analisar de que forma aquelas passam a fazer parte da atividade administrativa, produzindo efeitos jurídicos na vida dos administrados.

Passando para o âmbito exclusivo do Direito Administrativo, dois pressupostos gerais devem ser respeitados, de plano, em matéria de incorporação de normas técnicas: a) legitimidade democrática máxima do órgão público que autoriza o ingresso de normas técnicas na ordem jurídica e b) o caráter legal (em sentido amplo) da autorização de incorporação de conteúdos técnico-científicos no universo da Administração Pública. Embora correlacionados, enquanto o primeiro pressuposto geral, de caráter subjetivo, visa garantir que a entidade responsável por autorizar o ingresso de normas técnicas no sistema normativo seja democraticamente legitimada para conferir tal permissão, o segundo pressuposto pretende assegurar que qualquer conteúdo técnico-científico, para fazer parte de um sistema normativo e ser reconhecido por ele, depende de autorização legislativa (em sentido amplo), explícita ou implícita, conferida por um daqueles órgãos politicamente legitimados e com alcance geral. Em suma, para que normas técnicas aperfeiçoem-se validamente em um Estado de direito e, por consequência, no âmbito da Administração Pública, será importante avaliar não só o ente público que autorizou seu ingresso, mas também, por força principalmente do princípio da legalidade administrativa, o veículo jurídico por via do qual tal inserção jurídica efetivou-se: necessariamente legislativo ou com força de lei. Tais pressupostos objetivam impedir que normas técnicas elaboradas por entidades não legislativas possam interferir na esfera jurídica de titulares de direitos, sem qualquer participação política do restante da sociedade, com graves consequências tanto no campo da legalidade quanto da legitimidade democrática171.

171 Mesmo em países em que a regulação técnico-jurídica tem força de lei, como nos Estados Unidos, o direito não prescinde da existência de norma juíridica proveninente de órgão legislativo

Em síntese, é o respeito à legalidade administrativa que, na esteira dos ensinamentos de Diogo Freitas do Amaral, garantirá que os órgãos e agentes da Administração Pública ajam com fundamento, ainda que remoto, na lei e dentro dos limites por ela impostos172. Assim, não obstante a atual necessidade de compreender o significado e alcance das leis a partir dos princípios jurídicos, a atividade administrativa não se “libertou” de sua vinculação, mais ou menos adstringente, aos textos legais enquanto representação da vontade soberana de um povo. Com efeito, a origem legislativa, necessária para garantir, sobretudo no âmbito do Direito Administrativo, um mínimo de legalidade e legitimidade democrática, acaba por autorizar a inserção válida de normas técnicas no universo do direito.

Portanto, ainda que se possa admitir a existência de inserções meramente administrativas de normas técnicas no âmbito da Administração Pública, estas apenas serão tidas como válidas quando fundadas em alguma norma legal (em sentido amplo). Garante-se, com isso, uma tolerável debilitação da legitimidade democrática decorrente da transferência de poder decisório do legislador para a Administração. Entendimento diverso implicaria na aceitação da tese, ao nosso sentir, inadmissível, segundo a qual entidades meramente administrativas poderiam impor à população conteúdos tecnocráticos sem a participação democrática da sociedade, em grave afronta à noção de Estado democrático de direito. Tal cenário, de enorme gravidade para a democracia, serviria apenas para admitir o acolhimento jurídico de normas técnicas sem qualquer debate político antecedente, como se conteúdos técnico-científicos fossem, em razão de seu caráter pretensamente neutros, indiscutíveis ou vinculantes mesmo em face do processo político-democrático, que sequer poderia impor, em qualquer cenário, barreiras aos avanços da ciência. Seria como negar premissa firmada no capítulo antecedente segundo a qual o direito deve fazer o enquadramento democrático e social da técnica.

Nesta linha de raciocínio, a autorização e incorporação de uma norma técnica poderão formalizar-se, no âmbito do Direito Administrativo, por meio da conjugação de, no mínimo, uma norma jurídica de índole legislativa, a qual chamaremos de remissiva, e, alternativamente, uma outra norma jurídica (legislativa ou administrativa), chamada por nós de incorporadora, ou, se não for este o caso, através de uma conduta administrativa

dotado de legitimidade democrática. No caso americano, por exemplo, os atos normativos de natureza regulatória, não obstante, em alguns casos, sua força de lei, sempre terão que ter como fundamento normativo atos do legislador.

concreta (adjudication) que, neste cenário, desempenhará o papel de inserir, no caso concreto, normas técnicas no direito sempre que isto já não tiver sido feito integralmente pelas próprias normas legislativas ou pela regulação técnica promovida pela Administração Pública (regulation).

Em apertada síntese, enquanto a norma jurídica remissiva autoriza, pela via da técnica legislativa da remissão, a incorporação de normas técnicas no universo do Direito Administrativo, a norma jurídica incorporadora (legislativa ou administrativa) e a conduta administrativa constituem os veículos formais, respectivamente normativo e concreto, que formalizam e finalizam a inserção de uma norma técnica no ordenamento jurídico- administrativo. Em última análise, é por meio de normas e condutas administrativas técnicas (ditas incorporadoras) que a Administração Pública promove escolhas técnicas.

Em sentido muito simplificado, a norma jurídica remissiva constitui a “fechadura” da porta de entrada do Direito Administrativo e as normas, legislativas ou administrativas, e condutas administrativas correspondem às chaves de acesso.