• Nenhum resultado encontrado

2 A TESSITURA DO FILÉ: MUDANÇA PARADIGMÁTICA

2.1 A arte da trama: da teorização e normatização à encarnação da ética na educação

2.1.1 O fio e a mão do tecelão: diferenças entre moral e ética

Muitas vezes os conceitos de ética e moral são utilizados como sinônimos ou guardando mesmo significado. Segundo Imbert (2001) esta confusão torna-se um problema sério, já que a questão da ética no campo educativo vem tornando-se um tema bastante defendido, e supostamente enfatizado no trabalho e reflexão pedagógico.

Para o autor, necessitaríamos de uma formação ética; mas nossa educação resume-se em formar pessoas obedientes, dóceis, e sem capacidade de tomar decisões, por serem trabalhadas na perspectiva da moral, como boa forma, ou seja, aquilo que faz bem ao sistema.

A Ética não se resume ao cumprimento de regras. Significa em primeiro lugar, uma atitude que parte de uma decisão pessoal, resultante da tomada de consciência que ocorre, quando consciência e afetividade se integram. Se crianças e adolescentes tivessem a oportunidade de expressar seus potenciais, e se desenvolvessem em um ambiente que facilitasse situações em que pudessem pensar, tomar decisões, responsabilizar-se por seus gestos e tomar atitudes efetivas de compromisso com o outro, e seu espaço, no caso o ambiente escolar, desenvolveriam atitudes éticas para com a sociedade. O que vimos no entanto, na maioria dos casos, são atitudes inversas a estas. Jovens com vergonha, com medo, e desestimulados, terão mais dificuldades de desenvolver atitudes éticas. Podendo restringir seu aprendizado ao cumprimento dos códigos, ou da norma estabelecida, para não sofrer a sanção prevista, no caso do descumprimento do que foi estabelecido.

Em minha prática educativa escolar, quando atuando na docência com o ensino fundamental e médio, costumava passar a maioria dos intervalos, considerados - a hora do recreio, no pátio da escola, conversando e brincando com as crianças e adolescentes e, principalmente, os observando. Certa vez, presenciei e participei de um diálogo entre dois irmãos, um com quatorze (14) e o outro com cinco (5) anos de idade. Um estava iniciando o segundo grau (hoje ensino médio); o outro chegando à escola, iniciando a primeira série. Como o menino mais jovem, não tinha passado pela pré-escola, estava iniciando seu processo escolar; por isso, estava muito entusiasmado, mostrando seu material para o irmão mais velho e contando-lhe sobre suas expectativas.

Apresentarei a seguir um trecho deste diálogo onde o irmão mais velho dirigiu-se à criança falando o que segue, por considerá-lo bastante elucidativo para o estudo em questão.

Tu estas feliz assim, porque é teu primeiro dia. Com o tempo, verás que a melhor coisa a fazer é entrar e sair da sala de aula calado; mudo; sem dizer nada. Só responder o que fores obrigado e prestando atenção para ver se consegues ter uma pista de como responder o que querem ouvir.

Neste momento eu entrei na conversa, perguntando ao jovem, o que o fazia pensar assim, ao que ele respondeu:

Se o cara escreve o que pensa numa prova ou trabalho, ganha um x (em vermelho). Dificilmente sabe por que errou ou o que errou. Só sabe que somado a outros, é reprovado e tem que fazer novamente a mesma coisa no ano seguinte; se diz o que pensa é recriminado – às vezes ridicularizado; quando ousa questionar, é expulso da sala e encaminhado para a direção. Depois de muitas destas, eu aprendi a entrar calado e sair mudo. Tenho reprovado menos depois de aprender isto.

Como é possível perceber, o jovem assimilou no ambiente escolar, uma lógica de operar, de dissimulação. Mecanismo este, que atrapalha o desenvolvimento da capacidade de tomar decisões deliberadas, no sentido da assunção da responsabilidade pelos próprios atos - o que é condição para o desenvolvimento ético. Ao mesmo tempo, a narrativa do relato feito pelo jovem (fiel ao que por ele foi falado), demonstra que se estava diante de um jovem inteligente, com uma capacidade de percepção e tomada de decisão bastante apurada, o que o possibilitou decidir obedecer às regras implicitamente estabelecidas no ambiente escolar, não por considerá-las pertinentes, mas para não sofrer as penalidades advindas de outra postura, que no caso seria espontânea, mas contraditória ao modelo esperado pela escola. Neste caso, trata-se de uma obediência coagida, assumida somente para não sofrer as consequências, a qual impede uma atitude coerente com o que a consciência crítica considera pertinente.

Uma prática educativa restritamente moral seria evitada, na medida em que os educadores relacionassem coerentemente seus objetivos, com os métodos e posturas efetivamente colocados em prática.

Com toda certeza, os pedagogos são bons entendedores de moral: dispensados ou não dos cursos de Instrução Moral, pode-se dizer que a moral constitui a própria essência da empreitada pedagógica. Para além de seus objetivos declarados de instrução, a escola socializa na perspectiva herdada de uma “regularização” e “moralização” da criança que, diz-se tem uma disposição natural para a “irregularidade” e a “anarquia”...de Platão a Durkheim, passando por Kant, a escola continua sendo o espaço e o tempo da aquisição dos “bons hábitos. (IMBERT, 2001 p. 22)

Imbert inicia sua obra realizando, de um lado, a distinção entre ética e moral, e de outro lado, a distinção entre regra e lei. Convida-nos a ficar atentos sobre as consequências da

empreitada histórica que muitos autores realizaram no intuito de trazer à luz a importância da moral e da ética na vida e na sociedade. Mas que nos deixaram um legado histórico que, muitas vezes, não só não contribuíram efetivamente para uma atuação ética, como atrapalharam, na medida em que não passam do campo metafísico.

Os conceitos de ética e moral em Durkheim e Kant exemplificam este paradoxo da intenção que fracassa na ação. A intenção de contribuir para ética é fracassada na ação, em função do teor metafísico de suas propostas. Estas propostas idealistas tornam-se abstratas porque se constituem impossíveis, uma vez que, o sujeito real, vivendo no mundo real se distancia de um sujeito ideal, pretendido pelos filósofos mencionados. Neste sentido, é possível identificar as origens de algumas propostas educativas atuais, que se distanciam da realidade, colocando em prática o cumprimento dos códigos restritos à moralização, pensando muitas vezes estar trabalhando a ética no campo educativo contemporâneo. E, como alerta Pivatto (2005), o moralismo é o maior inimigo da moral.

Imbert afirma que, quando tratamos de ética, estamos nos referindo às proposições fundadoras do discurso e das condutas daí decorrentes, e quando tratamos de moral, nos referimos às necessidades ou pseudo necessidades induzidas, com ou sem razão, desses princípios fundadores. A questão da ética nos leva ao questionamento sobre princípios que são de natureza diferente de necessidades. Necessidades estas, enfatizadas pela moral. Situar- se dentro de um plano da ética não corresponde à obediência das regras. Sendo que em determinadas situações, para se chegar à ética tem-se inclusive que transgredir algumas prescrições morais.

Cabe esclarecer que o conceito de necessidade tratado por Imbert, ora acolhido, diferencia-se do conceito de necessidades viscerais tratadas por Rolando Toro. O primeiro refere-se às necessidades advindas externamente, enquanto que o segundo representa as necessidades prementes do indivíduo, ligadas aos instintos, como veremos no próximo capitulo.

A negação das necessidades viscerais, que são reais, anestesia o sujeito com relação às sensações cenestésicas, dificultando o desenvolvimento da capacidade seletiva e de discernimento, bem como inviabiliza a percepção necessária para a tomada de consciência integrada à afetividade, que leva às atitudes éticas. Como visto por Imbert, as necessidades exteriores que por vezes são pseudo necessidades, no sentido de não representarem o que de fato o sujeito precisa, mas sim, o que ele supõe precisar, as quais são induzidas pelo apelo do

ambiente externo, situam-se no campo da moral, porque não representam os fundamentos dos discursos e das condutas, como no caso das necessidades viscerais que se relacionam daí sim, à ética.

Como vimos, no Capitulo I, os conceitos de ética e moral, provenientes do mesmo radical Ethos, escondem processos bem parecidos, mas com significados diferentes. A falta de conhecimento sobre o significado dos conceitos que utilizamos para pautar um trabalho educativo pode nos trazer como consequência, justamente uma ação que não condiz com os propósitos formulados.

A educação atual, no entanto, não realiza uma ação pedagógica que enfatiza a moral como desenho de “boas formas” por acaso, ou por mero descaso. A educação contemporânea, como apresentado anteriormente, sofre influências da cultura ocidental que foi historicamente formulando seus valores. A Paidéia grega já enfatizara a formação dos bons hábitos. Em Aristóteles o éthos é, em resumo, uma ciência do caráter: a criação de hábitos que subordina a ordem particular - o microcosmo, à ordem universal - o macrocosmo.

O educador e o legislador devem visar essa produção de hábitos. Daí, em sua conclusão, a ética a Nicômaco aborda o tema da importância das “leis” (as leis- códigos da sociedade) que fixam as regras da educação e, ao mesmo tempo, presidem as ocupações dos cidadãos. “Temos necessidade de leis” porque somente por seu intermédio aqueles que “obedecem à necessidade”, em vez da razão, e “aos castigos mais do que à honra”, são obrigados à aquisição desses bons hábitos. (IMBERT, 2001 p. 15)

Segundo Aristóteles, precisamos de uma educação moral, de uma educação que obrigue o cumprimento das normas, para àqueles que, por não seguirem sua “razão” e agirem aleatoriamente, perseguindo somente seus interesses particulares, acabam por realizar ações que comprometem a convivência harmônica com o todo, na sociedade.

Primeiramente destaquemos a distinção entre as necessidades viscerais e os interesses particulares apontados por Aristóteles mediante o esclarecimento do parágrafo anterior. Assim, aqui poderíamos substituir a palavra razão, usada por Aristóteles, por consciência, conforme a concepção elaborada por Rolando Toro, ou seja, consciência integrada à afetividade, a fim de atualizar a reflexão. Assim, utilizamos as leis, os códigos morais, seguidos da sanção, para àqueles que não agem de forma a possibilitar uma convivência

harmônica na sociedade de respeito para com todos e o meio em que vive, conscientemente. Como existem estes sujeitos, na sociedade, portanto, na escola, estes devem ser “sancionados”. Impedidos. Já que, por eles mesmos, não agem “corretamente”. Aqui a lei, ou a norma (na escola) cumpre o papel de uma consciência coletiva, que empresta àquele que não tem a sua, individual e gratuita, às condições de viver bem coletivamente, e deixar viver.

Ora, nossa intenção é a de desenvolver um processo educativo que propicie o desenvolvimento de identidades capazes de relações de respeito com os outros, por opção, por representar um valor subjetivo. Que desenvolva nos indivíduos a capacidade de buscar alcançar seus interesses particulares, considerando o outro e as gerações futuras. Assim, teríamos uma sociedade de fato humana. Onde as pessoas não precisassem de uma sanção, de um freio vindo de fora, para viver eticamente.

Não se está, neste estudo, desconsiderando em nenhuma hipótese, a importância da moral no processo educativo. Mas se está afirmando que, uma educação que não proporcione espaços de aprendizagem, onde se desenvolvam as potencialidades humanas que ofereçam aos sujeitos condições de agir coerentemente com seus motivos internos, mas ao contrário, somente enfatize o cumprimento das normas pelo medo das consequências de seus atos, forma pessoas descompromissadas com o Outro. Pois nesta perspectiva, as atitudes são condicionadas e desenvolvem o egoísmo, os hábitos de atitudes interesseiras - sem gratuidade, inconsequentes, e descompromissadas. Isso tem consequências sociais graves, como sabemos.

A dificuldade de se ultrapassar o campo metafísico que aumenta o hiato entre a intenção e a ação, e a tendência de se limitar ao condicionamento, por meio dos códigos morais ocorre, porque se trabalha a “conscientização”, ainda considerando uma consciência fragmentada, isto é, não integrada á afetividade e enfatiza-se uma moralidade abstrata desconectada com a vida. Trabalha-se a ética abstratamente. Do ponto de vista metodológico, este equívoco se coloca em prática quando nas escolas, falamos sobre ética, exigimos leituras sobre o assunto, pensamos a ética, sem vivenciá-la. As aulas são sobre ética. Nelas, os estudantes encontram-se sentados (um atrás do outro), sem poder conversar (dialogar), imóveis, com livros (agora com data show) disponíveis para leituras; (que poderiam, a propósito, ser igualmente realizadas fora do ambiente escolar).

A corporeidade e a afetividade não estão presentes. Não é possibilitado que os estudantes ajam em sintonia com o que sentem e pensam. E o maior obstáculo ao desenvolvimento ético presente no ambiente escolar, é a incoerência entre o discurso e a

prática advinda por vezes dos próprios professores. As atitudes e postura são fundamentais. Educa-se pelo testemunho.

A pergunta sobre como se desenvolvem homens e mulheres conscientes e responsáveis, capazes de avançar culturalmente considerando a qualidade de vida a partir de atitudes e posturas éticas de cuidado com o outro e preservação da vida, é respondida com o trabalho educativo. Acredito que a educação seja uma via. E neste sentido, o esforço necessário é buscar propostas condizentes á esta intencionalidade.

2.2 E surge a beleza na singularidade da tessitura: alteridade na relação com o