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PARTE I – A edição

1. A edição em contexto empresarial

1.4. O global e glocal

O processo de globalização acabou por chamar a atenção para o valor da diversidade cultural e as indústrias culturais e criativas têm sido fundamentais na sua promoção. A diversidade cultural está estreitamente relacionada com a dimensão imaterial do conhecimento e essa riqueza é gerada por pessoas criativas com competências e ideias. Por si só, «creativity constitutes a response to some of the economic challenges raised by globalisation, it requires initiative and organisation at a local level “glocality”: helps retain talent (and corresponding jobs) locally» (The

Economy of Culture in Europe. 2006: 38).

Assim se compreende porque a globalização tem de dar lugar à glocalização, que não é um regresso à economia local mas sim a possibilidade de o local estar ligado ao global. É aqui que entram as novas tecnologias de informação e comunicação e as indústrias culturais e criativas. A Internet, por exemplo, não é um fim em si mesma, nem deve ser vista como a forma mais rápida e barata de uniformizar gostos e estilos de

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vida a nível mundial, formatando os consumidores aos produtos e não os produtos aos consumidores. Portanto, a Internet e restantes tecnologias de informação e comunicação devem ser vistas pelos decisores políticos como um instrumento que permita que cidadãos de todo o mundo beneficiem de uma vasta gama de novos serviços, e muitos bens culturais estão particularmente bem desenhados para pertencerem a estes novos serviços. O número de aplicações e serviços oferecidos pela Internet é potencialmente infinito e permite uma atualização contínua de conexões que, por sua vez, permitem aceder a um número crescente de obras, correntes e manifestações culturais.

A cultura não traz automaticamente benefícios económicos e sociais a um dado território ou população. Para que isso ocorra é necessário cumprir certos critérios e, entre eles, talvez os mais importantes sejam: a existência de atividades culturais, o grau de participação das pessoas locais, a capacidade de produção de bens e serviços a nível local, a independência e a interdependência das atividades culturais como forma de promoção e autopromoção. As indústrias culturais e criativas têm conseguido algum reconhecimento nos círculos políticos, mas as políticas culturais reais são ainda incipientes e só aos poucos compreendem o desenvolvimento cultural local para além do óbvio turismo e de atividades a ele diretamente ligadas, como o património arquitetónico e natural. É necessário alargar horizontes e estimular «a more entrepreneurial approach to the arts and culture, encouraging innovation and creativity […] and stimulating cultural diversity and democracy» (Hesmondhalgh e Pratt. 2004: 6).

O mesmo é dizer que, no atual momento civilizacional global, temos de contrariar a globalização de gostos e costumes e responder com inúmeros focos com posicionamentos culturais e artísticos cada vez mais particularizados. Esta nossa época, no dizer de Felix Guattari (e no nosso), tem como melhor o «promover a invenção de novos Universos de referência; o pior é a mass-midialização embrutecedora» (Guattari. 1992: 15-16).

A Agenda 21 da Cultura (2006) é o primeiro documento, a nível mundial, aprovado por cidades e governos locais de todo o mundo no IV Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social de Porto Alegre (2004) e defende princípios como a diversidade cultural e a preocupação ecológica. O primeiro princípio reflete a evidência de que a diversidade cultural no mundo se encontra em perigo devido a uma mundialização que promove a massificação e a exclusão. O segundo princípio retoma o papel destruidor do meio ambiente do atual modelo de crescimento económico.

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Neste Fórum, os governos locais reconhecem que «os direitos culturais fazem parte indissociável dos direitos humanos» (Agenda 21 da Cultura. 2006: 4). Os governos participantes defendem ainda que os «princípios de um bom governo incluem a transparência informativa e a participação cidadã na concepção das políticas culturais, nos processos de tomada de decisões e na avaliação de programas e projectos.» (Agenda

21 da Cultura. 2006: 4), que as «políticas culturais devem encontrar um ponto de

equilíbrio entre interesse público e privado, vocação pública e institucionalização da cultura» (Agenda 21 da Cultura. 2006: 5) e que o «acesso ao universo cultural e simbólico em todos os momentos da vida, desde a infância à velhice, constitui um elemento fundamental de formação da sensibilidade, da expressividade, da convivência e da construção de cidadania» (Agenda 21 da Cultura. 2006: 5).

A Agenda 21 assume um grande número de compromissos, de entre os quais destacamos os seguintes: estabelecer políticas que fomentem a diversidade cultural, garantir ampla oferta cultural, promover o acesso a produtos culturais, incentivar a criatividade dos cidadãos, garantir financiamento público para a cultura, implementar formas de avaliação do impacte cultural (ou seja, verificar as alterações significativas na vida cultural dos cidadãos), dar atenção ao fator estético dos espaços e equipamentos públicos, descentralizar as políticas e os recursos culturais (contemplando também as periferias), promover a literacia digital, garantir a liberdade de expressão, promover a participação dos criadores artísticos nas comunidades em que estão inseridos, identificar problemas e conflitos sociais, melhorar a qualidade de vida, ampliar a capacidade criativa e crítica dos cidadãos, coordenar as políticas culturais e as políticas educativas, fomentar a cultura científica e tecnológica, dar atenção a questões éticas, sociais e económicas de interesse público.

Esta visão de mundo é herdeira do multiculturalismo. Para Homi Bhabha, «as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora» (Bhabha. 2008: 30). É esta relação entre o Eu e o Outro, entre o local e o global que enriquecem ambos os termos da equação. É também ela que contribui para o caráter inclusivo do diálogo entre culturas, assim como esta inclusão contribui para o conhecimento do Outro e o conhecimento do Eu, que só é cabal quando se relativiza em confronto com o conhecimento que se tem do Outro e até mesmo quando se conhece o conhecimento que o Outro tem de si próprio. Na verdade, será por isso que o

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conhecimento, no geral, é o maior fator de resolução de conflitos e de harmonia entre os povos.

O universal não pode excluir o local e o local não pode excluir o universal, porque ambos coexistem simultaneamente num mesmo tempo e espaço. Os locais da cultura são sempre heterogéneos e híbridos, mesmo que as relações sociais e económicas impostas na pós-modernidade tenham como consequência a homogeneização cultural. A hibridização cultural promove outros dois processos: a desterritorialização e reterritorialização e, segundo Néstor Canclini, esses processos correspondem, respetivamente, à «perda da relação "natural" da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas» (Canclini. 2008: 309). Portanto, as indústrias culturais, sejam elas locais, glocais ou globais, e as migrações de classes criativas e de criadores artísticos não desvanecem, por si só «perguntas pela identidade e pelo nacional, pela defesa da soberania, pela desigual apropriação do saber e da arte» (Canclini. 2008: 326).

Investir no conhecimento e na cultura é a forma salutar de prevenir e solucionar conflitos intra e interpovos e, certamente, é uma das mais baratas, quando se contabiliza o investimento versus os ganhos, materiais e imateriais. Sabemos, no entanto, que a economia é um dos campos mais conservadores da atividade humana e, portanto, não é fácil substituir o consumo de combustíveis fósseis por energias renováveis, assim como não será fácil substituir o negócio das armas por festivais musicais ou o narcotráfico por serviços médicos. Todavia, refutamos antecipadamente o argumento de que a defesa da ética, da justiça e da solidariedade são reflexo de ingenuidade histórica e social. Não fossem as chamadas ingenuidades históricas e sociais e dificilmente teríamos saído das cavernas, porque sempre houve bons e provados argumentos para não evoluir, muito embora o progresso não se compadeça com o conservadorismo; felizmente que não são só os conservadores a comandar os destinos do mundo e do Homem.

No novo paradigma da glocalidade, todos somos compostos não de uma única, mas de várias identidades. A diversidade cultural é o processo adequado à construção de sistemas de identificação cultural e as diferenças culturais são um processo de significação, uma forma de autorreconhecimento de conteúdos e costumes culturais prévios, agora compatíveis com o intercâmbio cultural. Muito embora haja uma inegável permeabilidade entre o tradicional, local e/ou regional, e o internacional e/ou universal, não desaparece a necessidade de identificação com ambientes próximos e

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ancestrais que designam uma forma exclusiva de apropriação do mundo a partir do que é único numa dada cultura. Portanto, o glocal permite a saudável convivência entre a globalização – uma rede planetária de processos industriais, tecnológicos e culturais, constituída por um leque de bens simbólicos, muitas vezes homogeneizador de hábitos de consumo – e a localização cultural – um regresso às tradições locais, num processo de busca por traços culturais capazes de marcar a diferença entre povos e identidades coletivas. Aliás, mais do que uma saudável convivência, é a globalização que está na origem de muitos regressos a saberes locais e ancestrais e o resultado desta negociação, do diálogo entre estes dois movimentos (o de globalização e o de localização) reflete-se nas novas identidades híbridas. Estas novas identidades, por serem resultado do universal e do local são, por isso, facilmente compreendidas por um largo espetro de destinatários, também eles híbridos, também eles locais e globais, glocais e progressistas.

É no campo do progresso que as políticas públicas são insubstituíveis e, portanto, é fácil aceitar que o papel do Estado é fundamental no impulso da glocalização da cultura e do conhecimento. Conforme afirma Idalina Conde, «à revelia da onda neoliberal com pressupostos sobre as virtudes da empresarialização e de "menos Estado", a viabilidade da economia da cultura depende crucialmente das políticas e orçamentos públicos» (Conde. 2014: 54).