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PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA TESE EM PSICANÁLISE

5. GOZO: SUBSTÂNCIA DA PSICANÁLISE.

5.2 GOZO: UM CONCEITO LACANIANO.

5.2.2 O gozo e o objeto a

As relações do gozo com o desejo estão vinculadas com o objeto a, este que foi, segundo Lacan, seu único invento. Que invento capital! Pois, esse conceito representa o resto da operação de divisão do sujeito e

que a partir dele pode-se denotar tanto o desejo quanto o gozo, quiçá a angústia. Vamos nos centrar nos dois primeiros sem correr o risco de desviarmo-nos do tema. Antes disso, passamos a definir um pouco melhor o objeto a.

Lacan o inventa sob a insígnia de objeto a, ou mais exatamente, objeto pequeno a (petit a) para designar o resto, aquilo que sobra na operação de divisão do sujeito. O Outro é aquele que opera a divisão do sujeito, ou seja, que incide o corte da castração, é um corte lógico, que representa simbolicamente a castração. É por um instrumento de linguagem que este corte opera na constituição do sujeito. É esse corte que faz com que o sujeito torne-se castrado, dividido, em que sua pretensa unidade fica desfeita nesse corte. Essa é a divisão do sujeito produzindo o sujeito barrado. Dessa divisão, tal como na operação matemática, há um resto, aquilo que sobra da divisão na matemática. Esse resto, que não serve para nada, é perdido, dejetado. Na operação subjetiva, trata-se de um resto que deve ser expelido, perdido. A rigor, ele é tomado como um objeto perdido, mas não no sentido em que se teve o objeto e depois foi perdido, mas no sentido em que esse objeto é desde sempre perdido. Logo, ele é um resto que se perde, mas que nunca se teve. É um objeto que se constitui desde sempre como perdido. Por isso mesmo, Lacan (1962[2005, p. 169]) toma ―[...] o próprio desejo como a, como causa de desejo, e não como objeto.‖; ou seja, o objeto a é causa do desejo no sentido que por ser um objeto desde sempre em falta é também causa de desejo. Nesse ponto, vemos que o desejo é um efeito do objeto a que o causa, que é pura falta. Vê-se desenhar, nesse momento, a relação do desejo com o a, e mais, do desejo com a falta.

Estando o gozo em uma oposição ao desejo, pode-se conceber que a relação do gozo com o objeto a é oposta a isso. Para o gozo, o a não se inscreve enquanto um objeto faltante, mas como um objeto de gozo. A relação que o gozo estabelece com o objeto não é de uma falta, de uma perda fundamental e constituinte, e sim toma o objeto como um uso para o gozo e não o concebe enquanto faltoso. Nesse sentido, o objeto, no gozo, não é a, mas um objeto de gozo. Não é causa de desejo, mas um objeto que provoca um plus, um excesso. Cabe perguntar: De quê? De gozo! No Seminário 10, Lacan aponta que goza-se com esse pequeno objeto, com essa libra de carne que provoca um plus, sentido pelo sujeito como um gozo sedutor e incontrolável. O gozo, desse modo, opera numa tentativa de não perder o a, mas de retê-lo e de usufruí-lo como forma de gozo.

Quando nos referimos ao objeto a, estamos nos referindo a um objeto que está sempre em falta, não se tratando de um objeto perdido

no sentido de que em algum lugar ele existiu e foi, posteriormente, perdido; mas de um objeto que é, em si mesmo, em falta. Por isso ele também é denominado objeto causa de desejo, uma vez que ele é um objeto faltoso. O objeto causa de desejo (objeto a) deve ser diferenciado do objeto de desejo, que, ao contrário do objeto a, é um objeto de presença e não de ausência (ou falta), pois o objeto de desejo tenta suprir a falta primordial do objeto a que causa o desejo. Em outras palavras, há uma falta primordial, esta do objeto a, que causa o desejo e este tenta eleger um objeto que aplaque esta falta. Pode-se dizer que o objeto do desejo é aquilo que está na frente do desejo, como meta ou objetivo a ser atingido, ao mesmo tempo em que é um objeto possível de ser aprendido; e o objeto perdido é causa de desejo, ―[...] está atrás do desejo.‖ (LACAN, 1962[2005, p. 115]). E por isso causa-o numa ―precessão essencial‖ (p. 116).

Já o objeto do gozo é algo oposto ao objeto a, na medida em que não o reconhece enquanto faltante, e também oposto ao objeto do desejo, pois este seria um ―semblante‖ do objeto a, e o objeto do gozo não é o a nem o seu semblante. O objeto do gozo é qualquer coisa que o sujeito usa como forma de gozo, não tomando esse objeto como ausência ou perda. Nas palavras de Lacan (1966, tradução nossa, cotejada com a versão castelhana), na classe 21, em 08/06/66, do Seminário 13:

É daí que é necessário partir. Vocês vêem que rapidamente nos encontramos comprometidos em uma espécie de colusão, que é aquilo sobre o que se precipitaram as pessoas que tomam atalhos de colusão entre o objeto (a) da demanda e algo que concerne ao que se recusa de ou ao objeto do gozo27.

Dessa forma, o objeto não é tomado como um objeto em falta (objeto a), mas o que vai gerar um plus no gozo, um mais-de-gozar. Nas palavras de Lacan (1968[2008, p. 19]), ―[...] o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto a.‖ Isso mostra de igual forma a relação do gozo com a falta, no sentido de tentar isolá-la. Tal como a

27

« C’est de là qu’il faut partir. Vous voyez que, très vite, nous nous trouvons engagés dans une espèce de collusion qui est bien ce sur quoi se sont précipitées les personnes à chemin court, de collusion entre l’objet (a) de la demande et quelque chose qui concerne ce qu’on refuse de ou à l’objet de la jouissance ». (Versão francesa).

vinheta clínica apresentada acima, havia uma escamoteação da falta, um apagamento para advir um gozo na fala, um gozo na elucubração das infinitas possibilidades que circulavam e davam giros para permanecerem no mesmo lugar. Se o objeto deixa de servir ao gozo e passa a estar em falta, há a eclosão de um desejo e isso que causa o desejo também seria uma possível saída desse gozo que tenta burlar a lei, seria a possibilidade de um gozo outro, não sintomático.