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PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA TESE EM PSICANÁLISE

3. O CONCEITO DE SINTOMA EM FREUD E LACAN

3.1 SINTOMA: UM CONCEITO

3.2.2 O sintoma é uma metáfora

Para conceber o sintoma como uma metáfora é possível recorrer aos mecanismos do sonho, entendendo os dois processos de formação dos sonhos: a condensação e o deslocamento. Para Freud (1900), o sonho se produz a partir do recalque de uma representação. A partir do momento em que esta não consegue passar a barreira do recalque, acontecem dois processos que tentam transfigurar essa representação em outra coisa acessível ao sistema consciente. Freud (1900) expõe no Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos que no inconsciente os pensamentos oníricos latentes ─ equivalentes às representações (Vorstellung) mencionadas no artigo O inconsciente (1915) ─ buscam se realizar em forma de sonhos, por isso mesmo o sonho é uma realização de desejos inconscientes. Esses pensamentos oníricos devem permanecer latentes, recalcados no inconsciente por serem insuportáveis para a consciência. No entanto, esses pensamentos continuam a exercer alguma força sobre o recalque e buscam maneiras de se transfigurar para poder se ―realizar‖ no sonho. Essas maneiras serão justamente os mecanismos de condensação e deslocamento utilizados pelo aparelho psíquico como forma de chegar ao sistema consciente sob a forma de conteúdos manifestos do sonho. O conteúdo manifesto é uma espécie de rébus pictórico do sonho, ou seja, são as cenas ─ basicamente imagens e sons ─ daquilo que se sonha e que o analisante traz para a análise em

forma de discurso na associação livre. Alguns desses conteúdos manifestos trazem elementos paradoxais e incongruentes para a consciência. Freud (1900, p. 303) dá alguns exemplos desses sonhos: ―ele retrata uma casa com um barco no telhado, uma letra solta do alfabeto, a figura de um homem correndo, com a cabeça misteriosamente desaparecida, e assim por diante‖. Esses elementos podem ser incongruentes e paradoxais para a consciência, mas totalmente aceitáveis e cabíveis para o inconsciente, uma vez que eles não são aquilo que aparentam ser, mas sim representantes de uma representação inconsciente, significantes de um conteúdo inconsciente que após ter passado pela condensação e pelo deslocamento sofreram uma distorção na sua aparência de modo que aparecem para a consciência como algo sem nexo, ilógico, estranho etc.

O processo de deslocamento [Verschiebung] provoca no sonho um descentramento dos pensamentos oníricos centrais. Para Freud (1900, p. 331), ―o sonho tem, por assim dizer, uma centração diferente dos pensamentos oníricos ─ seu conteúdo tem elementos diferentes como ponto central‖. O deslocamento serve para retirar o foco do ponto central, deixando, contudo, algum elemento de associação por onde a interpretação pode incidir. O ―grau‖ de deslocamento é proporcional à importância daquele elemento no sonho, ou seja, quanto maior a deslocamento maior a importância daquele elemento do sonho. No deslocamento, um ponto central dos pensamentos e conteúdos inconscientes pode, no sonho manifesto, ocupar, através do deslocamento, uma representação ou figurabilidade periférica. Por isso, Freud (1900) dedica um subcapítulo da Interpretação dos sonhos às considerações sobre a figurabilidade. Neste sentido, para Freud (1900, p. 332):

No curso da formação de um sonho, esses elementos essenciais, carregados como estão de um intenso interesse, podem ser tratados como se tivessem um valor reduzido e seu lugar pode ser tomado, no sonho, por outros elementos sobre cujo pequeno valor nos pensamentos do sonho não há nenhuma dúvida.

Como exemplo, Freud (1900, p. 331) cita o seu sonho da monografia de botânica, que apresentava o elemento ―botânico‖ como central no sonho manifesto, enquanto que nos pensamentos oníricos inconscientes esse elemento representava as complicações e conflitos

que surgem entre colegas por suas obrigações profissionais, e ainda à acusação de que Freud tinha o hábito de fazer sacrifícios em prol de seus passatempos. Dessa forma, o pensamento onírico central foi deslocado para um outro elemento periférico. Freud (1900) chama a atenção de que o importante nos pensamentos dos sonhos não é aquilo que aparece nos conteúdos manifestos do sonho, mas o que neles ocorre repetidas vezes. Para ele (1900, p. 333, itálico do autor), há ―uma transferência e deslocamento de intensidade psíquica no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo [manifesto] do sonho e o dos pensamentos [latentes] do sonho‖.

Lacan (1957[1998]), apoiado nas ideias de Roman Jakobson, faz uma espécie de transposição da ideia de deslocamento em Freud para a metonímia como figura de linguagem. A metonímia, tal como o deslocamento, também desloca um ponto central para um elemento periférico mantendo certa associação. Em Vamos tomar uma gelada, por exemplo, o conteúdo central (cerveja) fica deslocado e também apagado por um elemento periférico e associativo, ou seja, gelada seria a temperatura ou o estado físico da cerveja, mas esse elemento, no enunciado, toma centralidade. No enunciado Aportaram trinta velas, também ocorre um deslocamento do elemento central (barco) para uma característica dele, ou seja, de ser à vela, um barco à vela, mantendo uma ligação. Aqui também é tomada a parte (vela) pelo todo (barco). Lacan (1957[1998, p. 509, itálico do autor]) mostra que:

[...] a palavra ―barco‖ nele ocultada parece multiplicar sua presença, por ter podido, no próprio repisamento desse exemplo, assumir seu sentido figurado [...]. Com efeito, a parte tomada pelo todo, dizíamos a nós mesmos, se a coisa é para ser tomada no real, não nos deixa uma grande idéia do que convém entender sobre a importância da frota que, no entanto, essas trinta velas supostamente aquilatam: um navio ter apenas uma vela é, na verdade, o caso menos comum.

Onde se vê que a ligação do navio com a vela não está em outro lugar senão no significante, e que é no de palavra em palavra dessa conexão que se apóia a metonímia.

A partir disso, Lacan (1957[1998]) toma a metonímia como deslocamento e mostra através da fórmula (Fig. 3) como na metonímia o conteúdo recalcado não atravessa a barra do recalque, mas tão somente desliza sob ela, ou seja, há um deslizamento de um significante, barco, por exemplo, para vela e não há uma substituição, um atravessamento da barreira do recalque. Na referida fórmula, o ―sinal ─, colocado entre ( ), manifesta aqui a manutenção da barra ─, que marca no primeiro algoritmo a irredutibilidade em que se constitui, nas relações do significante com o significado, a resistência da significação‖. (LACAN, 1957[1998, p. 519]).

Figura 3: Estrutura da metonímia

f (S...S‟) S ≡ S (─) s

Fonte: LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 519.

O deslocamento é um modo de despistar a censura, pois o deslocamento é ―o deslizamento do significado sob o significante, sempre em ação (inconsciente, note-se) no discurso.‖ (LACAN, 1957[1998, p. 514]). Para Lacan (1957[1998]), a metonímia não é o sintoma, mas o desejo na medida em que este sempre é desejo de outra coisa, perfazendo esse deslizamento de significantes resistentes à significação.

Para introduzir a temática da condensação, Freud (1900, p. 305) expõe que ―os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos.‖ Com isso está dizendo que há no sonho uma condensação dos pensamentos oníricos latentes nos conteúdos manifestos do sonho; tanto que se for relatado ou escrito talvez ocupe pouco espaço de fala ou de papel, já as análises correlativas aos pensamentos inconscientes podem gerar uma produção mais extensa. Freud (1900) argumenta que não se tem como saber o tamanho de uma condensação, ou seja, na interpretação de um sonho nunca se sabe exatamente até onde foi a condensação; sempre pode haver outros elementos condensados. Por isso mesmo que um sonho não se esgota em uma interpretação ou mesmo em uma sessão de análise, pois a interpretação de um sonho pode levar toda a duração de uma análise; em outras palavras, a análise de um sujeito pode estar condensada num sonho. Nesse sentido, o importante não é tentar dar

conta da interpretação do sonho, como se isso fosse possível, mas trazer seus elementos em associação de modo a provocar um efeito analítico de interpretação.

A condensação é, tal como o deslocamento, um elemento de distorção do sonho, ou seja, respeita o mesmo mecanismo em que uma representação inconsciente tenta passar, atravessar a barreira da censura e é interceptada pelo recalque que faz com que essa representação seja condensada com outras representações. Neste sentido, a condensação é um elemento de formação dos sonhos visando à realização do desejo inconsciente, ainda que condensado e/ou deslocado em seus elementos. Quase todos os exemplos de sonhos analisados por Freud (1900) podem ser usados como exemplo de condensação, pois em todos eles o conteúdo relatado do sonho é menor que sua análise, o que representa que os pensamentos oníricos inconscientes estão condensados quando aparecem nos conteúdos manifestos do sonho. A condensação, neste sentido, atua como uma substituição, pois em lugar de uma representação inconsciente aparece um conteúdo representativo, havendo, portanto, a substituição de um elemento por outro. Neste sentido, quando se sonha com uma pessoa, mas ela parece ter o aspecto de outra e ainda estar vestida tal como uma terceira pessoa, isso pode dizer de uma condensação de várias imagens em uma única, promovendo ao mesmo tempo uma substituição dessas imagens em uma única.

É fundamentalmente sob esse aspecto da substituição que Lacan (1957[1998]) toma a condensação como uma metáfora, pois na condensação ocorre uma sobreposição dos significantes, o que equivale a ―[...] uma palavra por outra‖ (LACAN, 1957[1998, p. 510]), mostrando que a metáfora é aquilo que está no lugar de outra coisa. A metáfora ―[...] indica que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação‖ (LACAN, 1957[1998, p. 519]). Em outras palavras, a substituição de um significante por outro provoca uma significação ou um sentido (um efeito de sentido). O sinal (+) presente na fórmula abaixo não deve denotar adição ou somatório, mas mostra que a barra do recalque que separa o sistema inconsciente do sistema consciente, ou que divide o significado do significante é atravessada. Há um atravessamento da barra que é a própria substituição de um termo por outro. ―O sinal +, colocado entre ( ), manifesta aqui a transposição da barra ─, bem como o valor constitutivo dessa transposição para a emergência da significação.‖ (LACAN, 1957[1998, p. 519]).

Figura 4: Estrutura da metáfora

f ( S‟) S ≡ S (+) s

S

Fonte: LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 519.

Neste ponto, a metáfora atesta uma rede de significantes, em que um significante vem ocupar o lugar de outro significante e isso produz um sentido. É nessa substituição que reside a condensação na medida em que substitui o pensamento onírico latente pelo conteúdo manifesto dos sonhos. Tal como no sonho da monografia de botânica de Freud (1900) em que o caráter unilateral de seus estudos se condensavam no preço elevado de seus fantasmas8.