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CAPÍTULO 1: A PERSONAGEM

1.2. A PERSONAGEM HEROICA

1.2.1. O HERÓI E O ANTI-HERÓI

Segundo Massaud Moisés (2004: 219-220), a definição de herói, do grego

hêros, em si já traz à luz a noção de ambiguidade, de um ser descendente de

humanos e deuses, um semideus. Em sentido mais amplo, designa a personagem que exerce a função de maior destaque, a do protagonista, na prosa de ficção, seja na epopeia, no romance, na novela ou no conto. O termo herói ressalta um tanto de sobre-humanidade, com valentia, bravura, coragem, força física, moral de valor superior, que o aproxima mais dos deuses que de seus semelhantes: “ser primário, elementar, força indômita da Natureza, além de protagonizar as epopeias e as tragédias clássicas, acabou recebendo o culto das massas” (Idem: 219).

Na Idade Média, a imagem de superioridade de cavaleiros destemidos e indômitos, submetidos a duras provações de sua fé e de sua força física, consolida o perfil clássico de herói e corresponde às expectativas e aos valores aristocráticos e religiosos. Tal imagem exemplar de herói se projeta sobre outros períodos e estéticas, como no Romantismo.

No Renascimento, sob o modelo clássico, o herói materializa o antropocentrismo, confirmando a capacidade de superação humana na luta contra as divindades. A partir desse período, tem início uma crescente humanização do herói, que se torna um ser “normal”, em nada superior a seus semelhantes nem ao ambiente que habita.

Na estética romântica, o herói é um indivíduo de “percurso atribulado, isolado e em conflito virtual e efectivo com a sociedade, com as suas convenções e constrições; por isso, o herói romântico manifesta-se, não raro no decurso de uma viagem ou do seu acidentado trajecto biográfico” (Reis e Lopes 2002: 194). O romancista escocês Walter Scott (1771- 1812) resgatou os valores históricos medievais da união e da virtude através de suas personagens, em Ivanhoé. A imagem do guerreiro, justiceiro, destemido e honrado torna-se mais humana, sem a interferência divina, e revela uma preocupação do autor com a verossimilhança histórica.

Ainda consoante Reis e Lopes (2002: 193), a concepção antropocêntrica está relacionada diretamente com tal postulação de herói, pois que a narrativa se desenvolve em torno de sua figura, cuja centralidade é indiscutível. A supremacia do

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herói frente às outras personagens não pode ser ignorada mesmo na morfologia proppiana, ou na semiótica greimasiana, que acabam por ratificar “os sentidos da procura e da conquista que uma longa tradição cultural investiu sobretudo no protagonista da narrativa” (Ibidem).

No Real-Naturalismo, com o início de um processo de desmitificação do herói, surge o anti-herói (do grego anti, oposição, contra; heros, chefe, nobre, semideus, pelo latim heros, ois) (Moisés 2004: 28-29), definido como ser ficcional ainda mais aproximado dos seres humanos, avesso mesmo à semidivindade do herói tradicional.

Na verdade, o herói clássico identifica-se com atos de superior grandeza no bem e no mal, enquanto o anti-herói não alcança emprestar altitude ao seu comportamento, seja positivo, seja negativo: ao passo que o herói eleva e amplifica as ações que pratica, como se movido por uma força sobre-humana, o anti-herói as minimiza e rebaixa. Enquanto o herói é ativo, na direção do Bem ou do Mal, o anti-herói tende à passividade, e esta anda de mãos dadas com o anonimato. (Moisés 2004: 28)

O anti-herói naturalista, portanto, se inscreve em uma abordagem mais voltada ao coletivo que ao individual, na qual a identificação dos leitores com as personagens é, de fato, esperada e engendrada como um dos objetivos do autor. De maneira mais ampla, o processo de desqualificação do estereótipo moral, psicológico, social e econômico da imagem do herói banaliza e aproxima-o dos indivíduos desagregados, íntima e socialmente, despojando-o da excepcionalidade conhecida até o século XIX e reinterpretando o espaço de centralidade que ocupava (Reis e Lopes 2002: 35). Demetrio Estébanez Calderón (1996: 502) destaca-lhe a inevitabilidade da marginalização, uma vez que, no confronto com uma sociedade conservadora e puritana, o herói seria destruído.

De acordo com António Moniz (s.d.), o conceito de anti-herói se opõe duplamente ao de herói. Na primeira oposição, o estereótipo do anti-herói se apresenta como o avesso do herói. Segundo Moniz, “o anti-herói reveste-se de qualidades opostas ao cânone axiológico positivo: a beleza, a força física e espiritual, a destreza, dinamismo e capacidade de intervenção, a liderança social, as virtudes morais” (Idem). No segundo caso, ao se opor ao protagonista, o anti-herói

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resume-se no papel do antagonista. Ainda para Moniz (1997), a caracterização antitética ao herói tem o propósito de

depreciar aos olhos do leitor/espectador o conceito de tal personagem. No romance realista, por exemplo, de forte cunho moralizante, a desmontagem da corrupção social, política e moral é feita a partir da caracterização repugnante de certas figuras, quase sempre secundárias, cuja hostilização permite recuperar, de certo modo, os erros das personagens centrais, humanamente toleradas e compreendidas na óptica da explicação naturalista do comportamento (Moniz 1997: 20).

Desde a Antiguidade, a acepção do herói mescla-se com a de seu oposto, uma vez que o julgamento de valor dos atos heroicos é elaborado de maneira subjetiva pelo leitor/espectador. Sua caracterização se afirma mais claramente nas obras de teor satírico, nas quais se busca a ruptura do perfil tradicional do herói. No teatro vicentino, os tipos sociais satirizados sintetizavam o estereótipo do que não deveria ser seguido ou imitado. No Renascimento, esse contorno do oposto se desenvolve na figura do pícaro, um novo e destorcido modelo de personagem.

Em La Novela Picaresca, Ángel Valbuena Prat (1956) apresenta que o surgimento do vocábulo pícaro, ou picaño, se registra por volta de 1550. O termo aparece em Farsa Custódia (escrita entre 1541 e 1547), de Bartolomé Palau, e em

Primera parte de la vida y hechos del emperador Carlos V (escrita antes de 1547),

de Fray Prudencio de Sandoval. A primeira acepção do termo refere-se ao ganha- pão (ganapanes, em referência aos trabalhadores assalariados, pobres e nômades), em uma alusão à condição social inferior daqueles que faziam quaisquer serviços para garantir sua sobrevivência. Eugenio de Salazar, em Carta del Bachiller de

Arcádia al capitan Salazar (aproximadamente 1548), refere-se a esse tipo social

desprezível, existente na corte e que circulava entre falsários, vagabundo, malfeitores e velhacos (Valbuena Prat 1956: 15-16). Salazar ainda menciona, em uma sátira, a presença de um “pícaro de corte” que acompanhava um médico, na acepção de criado ou escudeiro. Hustado de Mendonza, em Sátira contra las

damas, relaciona o pícaro a um cozinheiro e a um lacaio. O termo ganhou acepção

de “pícaro de cozinha”, na época de Felipe II. Martinez Montiño, em Arte de cocina (1611), apresenta o pícaro de cozinha como um parasita da abundância, sujo e de

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manias endiabradas, de feições asquerosas e trajes rotos, como um mal a ser evitado. João Palma-Ferreira sintetiza o tom depreciativo das acepções da palavra:

O pícaro tem logo de início um aspecto timbrado. É criatura mais ou menos andrajosa que se dedica a ofícios desprezíveis ou transitórios, quase sempre nómada, embora talvez por pícaro se entendesse também o ladrão comum e o simples busca-vidas. (Palma-Ferreira 1981: 8)

A etimologia da palavra é controversa. Dentre as mais destacadas, Rafael Salillas, em El delincuente español, relaciona-o ao verbo picar, que justifica sua relação com o pícaro de cozinha. Outra origem aceitável apresenta A. R. Nykl, em “Pícaro” (Revue Hispanique, tomo LXXVII, 1929), ao relacioná-la ao termo picardia, em alusão à influência da língua francesa na espanhola. Devido à fama das guerras de Picardia e Flandres, surgiu a expressão “viver como um picardo”, ou seja, como um soldado, aludindo ao modo de vida ou de ocupação. Também se registra a noção da gente pobre que vinha da Picardia para a Espanha.

Oldrich Bélic (1963), em busca das marcas estruturais da novela picaresca, como ordem artística, ainda que não possam ser sempre encontradas em todas as obras desse gênero, enumera algumas dessas características fundamentais: o princípio de viagens do pícaro, não como um fim em si mesmas, mas em busca de situações casuais (serviços, empregos, encontros), que servem para expressar a casualidade como condição principal de sua vida; o princípio da servidão e o caráter autobiográfico da narrativa. Os pícaros estão sempre na margem da sociedade e, por estarem excluídos das relações sociais “normais”, estão a mercê do acaso, dos joguetes do destino, do azar. O pícaro é ainda um moço pobre, que serve a muitos amos, e cujo princípio de servilidade expressa as suas relações com a sociedade, através das quais procura tirar sempre algum proveito. O pícaro, portanto, não possui profissão estável e se submete aos mais variados serviços em busca da sobrevivência. É astuto e engenhoso, habilidades que utiliza como meio de superar sua condição social inferior.

A novela picaresca apresenta ainda um caráter autobiográfico e sempre é retrospectiva: o pícaro mais idoso conta suas histórias de pícaro jovem, olhando para o passado, não como um diário, que narra um episódio contemporâneo. Por

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esse motivo, a narrativa apresenta forte caráter subjetivo, através do qual o narrador elabora uma seleção e uma hierarquização dos episódios a serem rememorados e, consequentemente, apresenta seus comentários e juízos sobre eles.

O pícaro engana, trapaceia, rouba, mas apenas por necessidade, quando não encontra outra saída; não se converte, pois, em ladrão. Consoante Moniz (s.d.), suas marcas principais são baixa ascendência, fanfarrice, manha, mentira, valentia, trapaça e roubo: delinea-se um perfil ideal para a paródia e o sarcasmo, inverso aos princípios éticos que norteiam o herói tradicional.

No que respeita às classificações do herói, Calderón (1996: 501) enumera seis categorias, à luz dos postulados de Hegel e N. Frye: o herói mítico, um ser superior aos homens, divino; o herói que aparece nos contos fantásticos, nas lendas, também de caracteres superiores aos humanos, que habita entre seres fantásticos, como fadas e magos; o terceiro tipo, o herói épico, de ascendência superior, qualidades e poderes extraordinários; o quarto, o herói trágico, que desperta no leitor ou no espectador piedade, pela fatalidade com que acaba sucumbindo ante o destino, e admiração por sua grandeza. O quinto, o herói

dramático escapa dessa fatalidade, porque consegue conciliar suas paixões com as

imposições do meio social em que está inserido, evitando assim seu fracasso; e o último tipo, o herói que se converte em protagonista do relato épico-narrativo ou dramático e se desnuda de toda caracterização superior ou exemplar diante do absurdo e da frustração.

Philippe Sellier (1990), em Le Mythe du Héros, enumera os aspectos que caracterizam a constituição do modelo heroico, a partir da definição apresentada no

Diccionaire de la langue française, de Littré:

HÉROS

1. Nom donné dans Homère aux hommes d’un courage et d’un mérite supérieurs, favoris particuliers des dieux, et dans Hésiode à ceux qu’on disait fils d’un dieu et d’une mortelle ou d’une déesse et d’un mortel.

2. Fig. Ceux qui se distinguent par une valeur extraordinaire ou des succès éclatants à la guerre.

3. Tout homme que se distingue par la force du caractère, la grandeur d’âme, une haute vertu.

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4. Terme de littérature. Personnage principal d’un poème, d’un roman, d’une pièce de théâter.

5. Le héros d’une chose, celui que y brille d’une manière excellente en bien ou en mal... Le héros du jour, l’homme qui, en un certain moment, attire sur soi toute l’attention du public. (Sellier 1990: 13) (grifos nossos)

As acepções citadas confirmam o virtuosismo do herói, tanto na moral, quanto na força física. Destaque-se, contudo, a quinta acepção, na qual se considera a possibilidade de modelo heroico também na prática do mal, o que ratifica a definição de Massaud Moisés (2004: 28), anteriormente apresentada. Neste ponto, compreendemos que o termo herói permaneça sendo utilizado por ausência de outro denominativo mais apropriado, uma vez que a imagem do herói no inconsciente coletivo está vinculada à luta contra o mal, em uma perspectiva maniqueísta. Outro aspecto de relevo nas acepções do dicionário, que valida nossa hipótese, é a luminosidade do herói, que o destaca dos outros seres ordinários. Sellier sublinha ainda que a imagem do herói materializa nosso desejo de escapar de uma realidade sombria para alcançar a luminosidade, nossa paixão pela soberania. Dessa forma, a possibilidade de um herói do mal contrasta com suas marcas distintivas do anti- herói.

Sellier (1990: 14-21) apresenta, como primeira distinção do herói épico, a marca de nascimentos sucessivos, haja vista a alternância nascimento-morte- nascimento em sua trajetória de vida. A natureza semi-divina (o herói é filho de deuses com mortais, ou de pais com reflexos de divindade, como reis ou princesas) constitui sua primeira característica. Em segundo lugar, e relacionado a essa origem, o nascimento da criança frequentemente é marcado por presságios ou premonições, muitas vezes ameaçadores. A presença do maravilhoso se faz uma constante. A infância do herói é pontuada de provações: muitas vezes, no intuito de ocultá-lo e protegê-lo de tais ameaças, o herói é rejeitado e abandonado pelos pais. Esse abandono representa uma morte aparente e seu crescimento se dá sob anonimato: uma vida fingida. Mas a ocultação é desfeita, pois o herói normalmente possui uma marca que o identificará como um sinal de reconhecimento. A partir daí, tem início uma trajetória de trabalhos e provações, nos quais o herói se destaca: é o momento da epifania heroica. Vencedor das provações, o herói é visto como um salvador, a providência de todo um povo. Sua iniciação faz dele um vencedor da morte, ao

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mesmo tempo em que alcança a imortalidade, por um segundo nascimento: a

apoteose do herói.

A solaridade do herói é outro de seus aspectos distintivos. Sua trajetória de vida brilhante é facilmente associada às diferentes etapas do movimento da Terra em torno do Sol: a aurora, o zênite e o crepúsculo. Como a luz solar, o herói também entra e sai das sombras. Seu nascimento é tido como o surgimento do Sol, na aurora; sua ocultação, uma passagem pelas sombras; sua epifania está associada à culminância do zênite e sua apoteose é como o crepúsculo: uma morte aparente. Como o Sol, o herói é invencível. Em alguns casos, pode haver marcas físicas no herói que se aproximam da luminosidade solar, como cabelos e olhar, ou associações a animais relacionados simbolicamente ao Sol, como o leão ou a águia.

A soberania do herói constitui seu terceiro traço distintivo. Ele exerce a função de salvador de seu povo. Ele tem o poder de renovar, resgatar o poder político ameaçado, seja como um legítimo representante desse poder, como um filho desconhecido do rei, por exemplo, ou como vitorioso dos conflitos com o chefe político.

Também frequentemente associados à trajetória do herói estão os relacionamentos com as mulheres. Normalmente, elas representam uma ameaça à realização dos planos heroicos da personagem, seja como uma fonte de sedução, por ser o repouso do guerreiro, seja por representar a fraqueza do herói. Entretanto, como o desejo amoroso sempre atiça o heroísmo, daí se depreende outro aspecto relevante: o herói vive em um universo de brutalidade e paroxismos, e a mulher pode representar, para ele, a reconciliação consigo mesmo, a serenidade, a doçura e outro tipo de alegria diferente das que lhe oferece o universo bélico.

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