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O HISTORICISMO RADICAL OU EXISTENCIALISTA

1 – A origem do historicismo radical

O historicismo radical ou existencialista parece ter uma enorme preocupação com o Bodenständigkeit, que pode ser vulgarmente traduzido por enraizamento na terra. Consiste no sentimento de que o homem pertence a um lugar ou de que está-em-casa. Este sentimento de familiaridade seria comum na pré-modernidade. Contudo, para o historicismo radical, também foi na pré-modernidade que se semearam as ideias que conduziram à decadência contemporânea. O desenraizar do homem tem como consequência maior a destruição das condições necessárias da grandeza humana. Tanto Friedrich Nietzsche, que não é certo que Strauss considere um historicista puro, como Martin Heidegger, i.e., aquele que Strauss considera ser o verdadeiro historicista radical, concebem filosofias enquanto soluções para o problema da profunda falta de humanidade do homem contemporâneo. Tanto Nietzsche como Heidegger, que procuram salvar o homem deste perigo, fundamentaram:

“Um Bodenständigkeit para além do mais extremo Bodenlosigkeit, um estar-em-casa para além do mais extremo desabrigo.”244

O historicismo teórico pressupõe, como se viu, a possibilidade da transhistoricidade do pensamento humano para asseverar a própria historicidade de todo

o pensamento humano. Para dizer que todo o pensamento humano está subordinado à história, o historicismo teórico precisa de pressupor o “fim da história”, i.e., assumir que a história chegou ao fim, pelo menos, no que diz respeito à “intuição decisiva acerca do carácter essencial do pensamento humano”.245

Dito de outra forma, o “fim da história” implica o reconhecimento da impossibilidade de uma mudança ou descoberta futura que ponha em causa a validade absoluta da intuição historicista; confunde-se com a sabedoria ou “religião absoluta”.246

Por esta razão o carácter da tese historicista difere do carácter do demais pensamento humano. Se todo o pensamento humano for essencialmente histórico ou comprometido, ou seja, se tiver uma ligação essencial com a história e, em especial, com o seu respectivo período histórico, poderá ser dito que o historicismo teórico não é nem comprometido, nem relativo, mas descomprometido e absoluto. O historicismo teórico corresponde a uma “análise” de todos os pensamentos humanos comprometidos ou históricos e, enquanto tal, está acima ou “distanciado” de qualquer um deles.247

Segundo Leo Strauss, o historicismo radical ou existencialista encontra-se no prolongamento do historicismo teórico.248 O historicismo radical recusa-se a abandonar a tese historicista fundamental de que todo o pensamento humano é essencialmente histórico, mas rejeita de algum modo o seu carácter transhistórico ou, pelo menos, o significado tradicional da transhistoricidade.249 Essa rejeição está, no fundo, a pressupor a possibilidade de afirmar o carácter essencialmente histórico de todo o pensamento humano sem se contradizer, i.e., sem recorrer à theoria. Por isso, este argumento de Strauss difere substancialmente do argumento de Emil Fackenheim, que consiste na ideia de que o historicismo radical se contradiz no próprio acto de tornar a filosofia

245

DNH, p. 25.

246Considere-se RCPR, pp. 24-25.

247Cf. DNH, p. 25 – “o historicismo não é, em si mesmo, uma mundividência englobante, mas uma

análise de todas as mundividências englobantes, é uma exposição do carácter essencial de tais mundividências englobantes, é uma exposição do carácter essencial de tais mundividências. Veja-se ainda Gadamer, op. cit., p. 530.

248

Como diz Strauss em RCPR, p. 36, “o existencialismo é a reacção dos homens sérios ao seu próprio relativismo”.

histórica.250 Por contraposição a Fackenheim, Strauss entende, como se verá, que o historicismo radical ou existencialista não é contraditório na sua oposição ao historicismo teórico.

Ora, para Leo Strauss o primeiro grande pensador a encarar o problema do relativismo dos nossos tempos – a saber, o problema de o historicismo ser uma visão descomprometida da relatividade de todo o pensamento humano ou uma “análise” teórica das mundividências –, foi Nietzsche.251 No juízo de Hannah Arendt, por exemplo, Nietzsche, depois de F. W. Schelling e Sören Kierkegaard, teve um papel determinante no desenvolvimento da filosofia existencialista e também no pensamento de Martin Heidegger.252

Segundo o Nietzsche de Strauss, aquilo que Strauss chama de historicismo teórico, mas que grosso modo pode ser identificado com o mero relativismo, “torna a própria vida humana impossível”. Impede o compromisso do homem com a sua cultura. Torna o próprio compromisso numa ilusão. Como para o Nietzsche de Strauss a “vida implica compromisso” ou não pode haver vida sem compromisso, o historicismo teórico, e com ele toda a teoria propriamente dita, não consegue compreender a vida.253 Poderá ser dito que, de certa forma, Nietzsche analisa o historicismo e, na verdade, toda a ciência enquanto ciência do ponto de vista da vida.

Nas suas Considerações Intempestivas (1873-1876), Nietzsche dá-nos conta de uma “culpa e defeito” do seu tempo, a saber, o historicismo – que corresponde a uma certa celebração generalizada e “decadente” da filosofia de Hegel.254

“Um certo excesso

250Cf. Metaphysics and Historicity, Marquette University Press, Milwaukee, 1961, p. 79.

251RCPR, p. 24. Cf. “The Thought of Nietzsche”, p. 181, em Kenneth Deutsch and Walter Soffer, op. cit. 252Cf. Compreensão e Política e Outros Ensaios, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, Lisboa,

2001, p. 83. Considere-se ainda os seguintes comentários de grandes autores sobre Nietzsche: Hans- Georg Gadamer, Political Hermeneutics, trad. David Linge, University of California Press, Berkleey, 1977, p. 116; Karl Mannheim, Ideology and Utopia: an Introduction to the Sociology of Knowledge, Harvest Books, New York, 1955, pp. 309-311; Paul Ricoeur, Freud and Philosophy: an Essay on

Interpretation, trad. Denis Savage, Yale University Press, New Haven, 1970, pp. 32-36.

253DNH, p. 26.

254Veja-se Unzeitgemässe Betrachtungen (1873-1876), tradução inglesa, Untimely Meditations, trad.

Daniel Breazeale, Cambridge University Press, Cambridge, 2007, p. 104. Nietzsche acha, tal como Strauss, que o processo histórico é interminável e, além disso, que o fim da história não é desejável. Sobre a decadência na obra de Nietzsche veja-se Charles Bakewell, “The Teaching of Friedrich Nietzsche”, International Journal of Ethics, Vol. 9, No. 3, 1899, pp. 316 e ss.

de história”, argumenta, “de sentido histórico (...) remove a atmosfera protectora e, desse modo, impede o homem de sentir e agir de forma a-histórica”.255 Contudo, o homem precisa de crer numa verdade absoluta na qual assenta todas as suas assunções. Neste sentido, como aponta Werner Dannhauser, para Nietzsche o “conhecimento histórico” do homem “tem de estar rodeado de uma atmosfera a-histórica de escuridão que limita o sentido histórico do homem”.256

O “sentido histórico” equivale aqui a «vestígio de verdade», digamos assim. Nas lapidares palavras de Nietzsche, “na medida em que está ao serviço da vida, a história está ao serviço de um poder a-histórico”.257 É infinitamente importante proteger a vida da história que não está ao serviço da vida. “Há um grau de dormência”, continua, “de ruminação, do sentido histórico, que é prejudicial e em última instância fatal para a coisa viva, seja esta coisa viva um homem, um povo ou uma cultura”.258

Isso acontecerá, no seu entender, porque aquilo que torna o homem feliz, digamos assim, é o sentimento do a-histórico, ou seja, a capacidade de o homem se perder ou prolongar no infinito que é estar-feliz; o que implica “esquecer todo o passado” e entregar-se ao presente. Esta ideia torna-se mais clara quando Nietzsche discute a “possibilidade mais extrema” do homem que não consegue esquecer: tal homem, como um verdadeiro “pupilo de Heraclito”, condenado a “ver em todo o lado um estado de devir”, já não acreditaria no seu “próprio ser”.259

Segundo o Nietzsche de Strauss, a tese do historicismo teórico implica o reconhecimento da ideia de que a história mostra que a “verdade é fatal”, ou seja, de

255

Ibid., p. 115. O que não quer dizer que toda a filosofia do passado, a-histórica, estivesse certa. cf.

Nietzsche, Menschliches, Allzumenschliches: Ein Buch für freie Geister (1878), tradução inglesa Human

all too Human: a book for the Free Spirits, trad. R. J. Hollingdale, Cambridge University Press,

Cambridge, 1996, pp. 12 e ss., §2. Sobre este assunto veja-se HPP, p. 830.

256HPP, p. 831.

257Nietzsche, Untimely Meditations, op. cit., pp. 67 e ss. 258

Ibid., p. 62. Nietzsche começa a sua obra com a análise dos animais. Os animais não têm

conhecimento histórico, vivem de uma forma a-histórica.

259Ibidem. Seja como for, o homem não é homem, e é isso que o distingue dos animais, sem a memória

do passado. O problema tipicamente humano é o de equilibrar as lembranças do passado com o esquecimento do passado. Ora, será o próprio organismo que impõe o equilíbrio – cf. HPP, p. 831. Veja- se ainda, Nietzsche, op. cit., p. 63 – acerca da relação entre a vitalidade do homem e o horizonte. Alguns autores, como Thomas Brobjer, argumentam que as teses de Nietzsche desenvolvidas nas suas

Considerações Intempestivas foram rejeitas pelo próprio Nietzsche mais tarde. Cf. “Nietzsche's View of

the Value of Historical Studies and Methods”, Journal of the History of Ideas, Vol. 65, No. 2, 2004, p. 301. Veja-se ainda, do mesmo autor, “Nietzsche's Relation to Historical Methods and Nineteenth- Century German Historiography”, History and Theory, Vol. 46, No. 2, 2007, pp. 156 e ss.

que todas as coisas humanas, inclusive os pensamentos humanos, são relativos ou radicalmente históricos.260 A ideia de que a verdade é fatal para Nietzsche tornar-se-á evidente com a sua discussão da “soberania do Devir” e, sobretudo, da doutrina de que “Deus está morto”.261

Como diz o próprio Nietzsche, existem certas doutrinas que são “verdadeiras, mas fatais”.262

Contra a precisão de compromisso que é imposta pela vida descobriu-se que as coisas não têm um sentido último, que todo o sentido é uma criação humana e que apenas existe “fluxo e mudança”.263

“Deus morreu da sua pena pela humanidade” porque com a descoberta historicista, digamos assim, nasceu todo um novo homem – os epigoni.264 Como salienta Dannhauser, Deus está morto porque é uma questão de “honra pessoal” morrer.265

Deus morreu de pena pela humanidade porque este é o tempo do fim da história e da vinda do “último homem”, de um homem, optimista, que acredita que “inventou a felicidade”, que está desprovido de dignidade e grandeza, que não se consegue comprometer a nada e que acha que não há mais nada para fazer.266 Deus morreu porque o homem descobriu que o próprio Deus é uma criação humana.267

Neste sentido, argumenta Leo Strauss, o compromisso só será possível para aqueles homens que “limitam o seu horizonte”, ou seja, que preferem “voluntariamente

260Esta ideia, a ideia de que a verdade é fatal, reflecte-se, segundo Strauss, na tese de que “Deus está

morto” – SPPP, p. 177. Quando ao acordo alargado entre o historicismo e Hegel, por um lado, e Nietzsche, por outro, veja-se HPP, p. 832.

261Cf. SPPP, p. 177.

262Untimely Meditations, op. cit., pp. 112-113. Veja-se Jenseits von Gut und Böse (1886), tradução

portuguesa: Para Além do Bem e do Mal, trad. Hermann Pfluger, Guimarães Editores, Lisboa, 1958, p. 14 ou §4, acerca da vantagem da falsidade dos juízos para a própria vida.

263

Nietzsche, sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen (1885) tradução inglesa: Thus Spoke

Zarathustra: a Book for All and None, trad. Adrian Del Caro, Cambridge University Press, 2006, p. 43.

Compare-se com Die fröhliche Wissenschaft (1882), na tradução portuguesa Gaia Ciência, § 125. Cf.

SPPP, p. 185.

264Thus Spoke Zarathustra, op. cit., p. 69. 265HPP, pp. 838-840.

266Para a descrição do último homem de Nietzsche veja-se Ibid., pp. 9 e ss. Compare-se com SPPP, pp.

32-33. Cf. ainda OT, p. 208. Veja-se ainda HPP, p. 832 e p. 889, onde se percebe que Heidegger e Nietzsche concordam que o reconhecimento do relativismo histórico de todos os padrões conduzem ao abandono das aspirações mais nobres e, por outro lado, conduzem a um “hedonismo banal”.

uma ilusão” ou mito “vital” a uma “verdade fatal”.268

Por outras palavras, o compromisso só pode ser alcançado com o sacrifício da sabedoria. Mas para os homens de “probidade intelectual”, para aqueles que procuram honrar a verdade pela verdade, é impossível preferir uma ilusão ou mito à verdade. É impossível preferir a ilusão à verdade ao saber-se desde logo que a ilusão é uma ilusão.269 Logo, de acordo com o Nietzsche de Strauss, para “prevenir o perigo para a vida” deve ser encontrada outra solução. Uma forma de tornar a verdade fatal numa coisa vital.270

Essa solução consistirá, segundo o Nietzsche de Strauss, na compreensão da “limitação essencial” da “história objectiva” ou do “conhecimento objectivo em geral”.271

Para começar pelo caso da história objectiva, ou seja, pela ideia de que é possível compreender cientificamente a história – como sustenta por exemplo Collingwood –, a história objectiva invalida a noção de filosofia e ciência, ou seja, rouba a “validade objectiva” dos “princípios do pensamento e acção”. Para mais, a história objectiva não permite, como Strauss acaba por imputar a Nietzsche, a compreensão objectiva do pensamento do passado.272 Isso acontecerá porque, ao mostrar que todos os pensamentos e acções do homem são essencialmente históricos, o historiador não se consegue “comprometer” ou “dedicar” aos princípios do pensamento do passado.

É preciso, no entanto, afirmar que aquilo que Strauss chama de interpretação histórica ou objectiva, Nietzsche chama de ciência histórica; e a ciência histórica, isto é, o puro desejo de conhecer, é contrário ao desejo de “servir a vida”.273

Para Nietzsche não existe sequer o historiador objectivo ou interpretação objectiva, existe apenas o

268RCPR, p. 25. Veja-se ainda Ken Gemes, “Nietzsche's Critique of Truth”, Philosophy and

Phenomenological Research, Vol. 52, No. 1, 1992, pp. 53-54.

269

HPP, p. 833. Os mitos são úteis enquanto forem considerados verdadeiros, como já vimos com a

análise do convencionalismo filosófico no segundo capítulo deste trabalho. Neste ponto Strauss e Nietzsche concordam.

270DNH, p. 26. Cf. SPPP, p. 180. Sobre este assunto veja-se, por exemplo, Thus Spoke Zarathustra, op.

cit., p. 43 e ss. Como é que o homem pode recuperar da “doença da história?” – eis a grande questão. cf. Untimely Meditations, op. cit., p. 120. Antes de ser encontrada uma solução, o homem que sabe que todo

o horizonte é uma criação humana vive no “deserto”. Cf. Thus Spoke Zarathustra, op. cit., p. 154.

271O itálico é nosso. Compare-se RCPR, p. 25 com OCPH, p. 563 e ss. 272Veja-se pelo menos SPPP, p. 186.

historiador nobre e o historiador pobre, por um lado, e interpretações nobres ou pobres. Aliás, o historicismo corresponderia a uma forma de interpretação histórica pobre, porque não serve a vida.274

Quanto ao caso particular do “conhecimento objectivo”, a ideia de que todo o pensamento humano é comprometido ou histórico, tese historicista com a qual Nietzsche concorda, revela, segundo Strauss, a noção de que o pensamento do passado estava iludido: deduzia que os seus valores tinham um “suporte objectivo” quando na verdade não passavam de “criações humanas”275; deviam a sua “(…) existência a um projecto humano livre que formou o horizonte dentro do qual a cultura se tornou possível”.276

É aqui que Nietzsche parece afastar-se decisivamente do historicismo teórico. A descoberta de que Deus está morto, por estar associada à observação de que Deus é uma criação humana, corresponde à descoberta do verdadeiro carácter da criatividade humana. Ora, se o homem era homem porque projectava horizontes de forma inconsciente, ao projectar horizontes de forma consciente, este homem pode ser mais do que homem. O tempo do último homem está intimamente ligado ao tempo do sobre-homem ou super-homem.277 Como parece então ser impossível prescindir da intuição historicista,278 o homem tem de fazer hoje de “forma consciente” aquilo que fez de “forma inconsciente” no passado, viz., submeter-se aos seus “actos criativos”.279 Este novo projecto implica por isso a “reavaliação de todos os valores”, ou seja, a sua “rejeição”, dado que todos dependem de algo inexistente – a “validade objectiva”.280

274Considere-se as implicações de Ibid., p. 832 e p. 834.

275Sobre este aspecto, i.e., sobre o facto de todo o significado e toda a ordem se originar nos “actos

criativos do homem”, veja-se SPPP, p. 177.

276

RCPR, p. 25.

277HPP, pp. 842 e ss. Sobre a questão da relação do último homem com o super-homem veja-se, William

Salter, “Nietzsche's Superman”, The Journal of Philosophy, Vol. 12, No. 16, 1915, p. 425.

278Veja-se Morgenröte. Gedanken über die moralischen Vorurteile (1881), tradução inglesa The Dawn, §

540. Veja-se também Para Além do Bem e do Mal, op. cit., § 213.

279Karl Löwith and Leo Strauss, “Correspondence”, op. cit., p. 183.

280Poderá ser dito que o niilismo é o protesto contra a vinda do último homem – cf. HPP, p. 842. Por essa

razão, pressupõe que é preciso destruir os valores antes de criar novos valores. Acerca deste aspecto do niilismo considere-se o pequeno ensaio de Strauss intitulado “German Nihilism”. Sobre a questão da inexistência de objectividade científica, é preciso reter que, para Nietzsche, a realidade, i.e., a inexistência de um significado intrínseco das coisas, reflecte a ideia de que a própria realidade é um

Mais, a criação consciente de um horizonte, ao contrário das criações dos grandes homens do passado, que eram inconscientes ou pressupunham a verdade absoluta das suas doutrinas, não será, pergunta Dannhauser, “o horizonte mais glorioso jamais criado pelo homem?”.281

A própria “percepção” da “origem” de todos os pensamentos e princípios humanos, a saber, os “actos criativos” ou a “vontade de poder”, “(...) torna possível uma nova criação que pressupõe esta percepção e que está de acordo com ela”, ou seja, que a aceita. Desta forma, i.e., assumindo que todas as coisas humanas procedem da “vontade de poder” e que carecem de uma “validade objectiva”, o homem pode criar um “mito” de forma consciente, isto é, pode criar um mito (poesia) de acordo com a verdade (filosofia) ou fundir o mito na verdade (poeta-filósofo).282 O mesmo é dizer que a verdade, ou a ideia de que todos os pensamentos humanos são relativos, é, em si mesma, “subjectiva” e “trans-teorética”. Procede de um “sol”, de uma vontade criadora e, enquanto tal, não pode ser percepcionada de forma descomprometida ou “desapegada”.283

Numa das suas lições, Strauss diz que, para Nietzsche, a verdade é fatal e que o mito é vital. Neste sentido, Nietzsche opõe-se a Platão na explicação daquilo que é. Segundo Nietzsche, a mente impura cria valores perecíveis e a mente pura não existe.284 Segundo o Platão de Nietzsche, a mente pura percepciona valores imperecíveis. Ao negar a mente pura, Nietzsche nega a existência de valores imperecíveis. Mas, para negar a existência de valores imperecíveis, Nietzsche tem de pressupor a verdade da sua produto da vontade de poder. O erro da filosofia contemplativa consiste na assunção de que existe uma “vontade de verdade” e que a verdade pode ser descoberta pelo pensamento, mas na realidade o pensamento não é mais do que uma tentativa arbitrária e pessoal de interpretar o mundo. A razão é, por isso, inseparável da personalidade do homem – razão pela qual Nietzsche insiste em analisar a psicologia dos filósofos. Por detrás da vontade de verdade reside uma coisa ainda mais básica, a vontade de poder – o núcleo da vida. Toda a vida é vontade de poder. O homem distingue-se da besta, não na vontade de poder, mas no facto de a sua natureza ser criadora de horizontes – cf. HPP, pp. 843-844. Sobre a relação entre a doutrina da vontade de poder de Nietzsche e a sua política, digamos assim, veja-se Mark Warren, “Nietzsche and Political Philosophy”, Political Theory, Vol. 13, No. 2, 1985, pp. 183 e ss.

281RCPR, p. 26. Cf. SPPP, pp. 185-186. Veja-se ainda HPP, p. 834. 282

É por esta razão que em Nietzsche as separações ou dualismos corpo/alma, razão/instinto, essência/desejo, filosofia/poesia, etc., perdem o seu significado tradicional.

283RCPR, p. 26. Sobre este assunto veja-se Ken Gemes, op. cit., p. 52 e ss. 284Cf. Prefácio de Para Além do Bem e do Mal.

asserção. Dito de outra forma, Nietzsche pressupõe a utilidade, e verdade, da asserção de que a verdade é fatal, de que não existem valores imperecíveis e, por outro lado, de que apenas existem valores perecíveis ou valores enquanto criações humanas. Por esta razão, conclui Strauss, Nietzsche não consegue escapar às “garras de Platão” (metafísica?).285 Ken Gemes menciona a mesma ideia da seguinte forma:

Negar a existência de verdade é prima facie paradoxal. Tal negação convida à questão 'é verdade que não existe verdade?'. Responder 'Sim' é reivindicar que existe pelo menos uma verdade, nomeadamente que não existe verdade. Responder 'Não' é negar que não existe verdade e assim comprometermo-nos à reivindicação de que existe alguma verdade.”286

Como não existe mente pura, o próprio estatuto ou carácter da reivindicação de verdade de Nietzsche é ambíguo – reclama ser ao mesmo tempo objectivo e subjectivo ou, talvez seja preferível dizer, rompe com a lógica da objectividade/subjectividade.287

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