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5 ESPAÇO E IDENTIDADE EM JOSÉ

5.2 O conto da ilha desconhecida

5.2.1 O homem na busca de si mesmo

Desde as primeiras linhas, há um interesse em problematizar a questão da busca pela identidade. Nenhum dos personagens de fato é o que parece ser: o homem que queria um barco, o protagonista, aparentemente despretensioso até que

o desejo de encontrar a ilha desconhecida muda a sua rotina, desejo este que contagia a mulher da limpeza e a leva a grandes transgressões que rompem com a estabilidade e a previsibilidade de sua vida. Nesse contexto, espaços como o palácio do rei, o barco, que depois se transforma na própria ilha desconhecida, são centrais para a compreensão do conto, pois as relações estabelecidas e as experiências vividas nesses espaços são responsáveis pela constituição das identidades das personagens.

O conto fala de um homem que quer ir em busca da ilha desconhecida, pois quer saber quem será quando nela estiver. Assim, o encontro com a identidade pressupõe nesse momento um deslocamento espacial. Tem-se um sujeito que deseja entrar em contato com o objeto de desejo, a ilha desconhecida, que se encontra investida do valor da identidade. Para chegar à ilha, ele acredita que precisa de um barco, espaço decisivo para que a personagem alcance seu objetivo:

Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas [...] (SARAMAGO, 1998, p. 27).

Para chegar à ilha, ele acredita que precisa de um barco. É descrita então toda a burocracia que era necessária para fazer um pedido. Uma conversa que se inicia deixa à mostra um confronto entre duas maneiras de interpretar o mundo: uma mais racional, a do rei, e que se enquadra em toda aquela burocracia, e outra mais sonhadora, a do homem que quer um barco e que, aos olhos do rei, parece um pouco louco.

O rei afirma que as ilhas desconhecidas já se acabaram há muito tempo, que estão todas nos mapas, o que contesta o homem dizendo que no mapa só estão as conhecidas. Ao longo da discussão, há uma passagem interessante em que o rei diz que todos os barcos do reino pertencem a ele, ouvindo como resposta: ―Mais lhes pertencerá tu a eles do que eles a ti [...] tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar.‖ (SARAMAGO, 1998, p. 18). O homem que queria um

barco revela que a estabilidade do rei se sustenta, nesse contexto, pela posse dos barcos.

O homem consegue o que queria do rei e vai ao porto buscar sua embarcação. Ele quer encontrar algo que só existia nos tempos das grandes navegações. O encarregado de dar-lhe o barco sugere, então, que o homem fique com uma caravela reformada. Com isso, percebe-se um primeiro elemento que contribui para a compreensão do que é necessário para chegar à ilha desconhecida, afinal a caravela não é a embarcação mais prática ou rápida, mas talvez seja das mais bonitas e próximas dos seus sonhos.

Nesse momento surge a mulher da limpeza. Após sair pela porta das decisões, ela resolve acompanhar o homem em sua empreitada. Ela é a única que compartilha o sonho do homem, pois ambos acreditam na ilha desconhecida, mas a princípio entendem-na de maneira diferente. A mulher acredita que duas pessoas (ela e o homem) podem pilotar o barco e o homem acredita que precisa de uma tripulação.

A diferença entre os dois fica ainda mais clara quando ele afirma que ―é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós‖ (SARAMAGO, 1998, p. 41), e ela retruca com: ―Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa.‖ (SARAMAGO, 1998, p. 41). A diferença é sutil, mas merece ser comentada. Parece que a mulher interpreta o ―nós‖ proferido pelo homem como se referindo a ambos, assim seria necessário para o homem afastar-se dele e também da mulher da limpeza para encontrar a identidade. Para a mulher, no entanto, é preciso que cada um saia apenas de si mesmo, por isso diz ―nós próprios‖.

Sozinho, o homem resolve parar em um porto qualquer. As plantas começam a crescer por toda a caravela, transformando-a numa ilha flutuante. Ele então percebe que o que ele queria mesmo era que a mulher da limpeza estivesse lá e acorda abraçado a ela. Pintam então na caravela o nome ―Ilha Desconhecida‖. O sonho funciona como elemento revelador da verdade. Fica claro que o barco, como meio de transporte, não era necessário, assim como não eram a tripulação e o

piloto. Para chegar à ilha, o homem precisa desvencilhar-se de tudo isso com a ajuda da mulher da limpeza.

E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida [...] não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou há muito tempo. (SARAMAGO, 1998, p. 56-57)

Saramago apresenta tendências engajadas em seus textos, a partir de uma dinâmica literária influenciada por fatores históricos e sociais contemporâneos, os quais levam o sujeito a promover uma imersão no seu universo cultural, tendo como princípio a sua própria dinâmica comunicativa.

Espera-se que os escritores de literatura engajada não falem pelas minorias, nem substituam a fala dos grupos minoritários por seus discursos literários, mas que, sobretudo, criem estratégias particulares e contextualizadas para, através da estrutura ficcional, dar voz ao outro, possibilitar que este outro, tendo sua presença e criação justificadas pelo contexto ficcional, possa expressar-se a partir de suas próprias aspirações as quais emergem de espaços periféricos, de lugares de exclusão, e que tal processo possibilite a constituição de suas identidades.

Em várias passagens da obra, está expressa a questão que fundamenta o conto: a busca da identidade, tornando-se cada vez mais evidente, na indagação do homem que queria um barco, a reflexão sobre esta problemática: "Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, [...] não nos vemos se não nos saímos de nós" (SARAMAGO, 1998, p. 41). Assim, levar em consideração o outro também é o caminho para o autoconhecimento, só possível quando se assume a consciência de que esse outro é importante para o desvelamento de si mesmo.