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2. O homem concreto tropeça em sua circunstância

2.1. O homem

Para Zea, só um homem é possível: o homem concreto que dialoga com as circunstâncias, porque o homem é o homem e suas circunstâncias.

Zea não assume uma filosofia essencialista que preconiza ideias eternas, intemporais, ao contrário, sua filosofia é obra de um homem e, como homem, participa do que é a essência do homem. “A essência do humano, aquilo pelo qual o homem é homem, é a história. O homem é um ente histórico, ou seja, um ente cuja essência é a mudança” (ZEA, 1945, p. 25, tradução nossa). O homem histórico é relativo porque organiza sua vida a partir de certas situações vitais que o tornam concreto, com possibilidades e limitações, que vive e que morre em uma determinada circunstância.

A natureza do homem é a história que o obriga a reconstruir-se continuamente, tanto em resposta às circunstâncias como para modificá-las. O homem muda numa relação dialética12 com as circunstâncias. Esta essência mutável corresponde à necessidade de Zea de compreender porque há contradições na história da filosofia e porque as verdades tidas como eternas e absolutas, ao longo da história da filosofia, mudam. Ora, as verdades deixam de ser eternas e absolutas no momento em que as relacionamos com os homens e com as

12 Esta relação dialética refere-se à relação intrínseca e dependente entre o homem e sua circunstância, ou seja, sua situação concreta.

circunstâncias que favoreceram seu aparecimento e justificaram sua validade. As verdades se alteram com o correr do tempo histórico. A única verdade que permanece é a verdade que explica a mudança: o homem muda. Além disto, o homem, como um ser mutável, modifica continuamente as circunstâncias e isso faz mudar as concepções de mundo e o próprio mundo. O homem não existe fora da história, assim como as ideias não existem sem o homem e sem as circunstâncias. Este movimento da vida humana no mundo é o que constitui a história da humanidade.

Como ser histórico, o homem constrói sua vida ao conviver com seus semelhantes de modo a expressar sua individualidade através de suas ações. Zea entende que

o homem é convivência, convive com outros indivíduos que lhe são semelhantes. O que é próprio do homem, o que forma sua individualidade,

sua própria vida, é a forma como convive, a forma como aproveita a vida

dos demais, a forma como aproveita as experiências da história (ZEA, 1948, p.113, grifos do autor, tradução nossa).

Esse homem concreto, para Zea, tem uma dimensão psicológica ligada ao sentir, ao pensar, ao agir e tem uma dimensão social que está expressa na necessidade da convivência para que possa recorrer à história de outros homens e estes homens concretos “vivem e morrem em suas cidades e seus campos” (ZEA, 1948, p.113, tradução nossa). Não são homens transcendentais, descolados da realidade concreta, nem estão somente na esfera do pensamento. Como Zea mesmo fala, são homens de carne e osso.

Sendo o homem concreto este ser histórico, sua cultura, consequentemente, é histórica. Cada povo, em cada época, encontra respostas a seus problemas a partir desta realidade concreta que muda e que faz mudar o homem, fazendo surgir um novo homem,

trata-se de um Eu [o homem concreto] que existe e não um Eu que pensa; um Eu existente que faz parte de um mundo. Eu e mundo não podem separar-se, se completam. A história é parte essencial deste Eu existente no mundo (ZEA, 1948, p.197, tradução nossa).

O homem não é apenas um ser pensante, nem é apenas existência ou essência, é um homem em relação dialética com o mundo. Existe historicamente, o que significa dizer que o homem existe pelo que ele foi, pelo que é e pelo que pode vir a ser; esta tríplice dimensão do

histórico define o homem. Nesta tríplice dimensão também reside a diversidade de como os homens resolvem seus problemas e “nessa diversidade de formas de viver a história do homem concreto, isto é, do homem que faz parte de uma determinada sociedade ou grupo, do homem que tem recebido uma determinada educação em lugar de outra” (ZEA, 1976, p.17, tradução nossa) é que está a riqueza da possibilidade do homem ou de um grupo de homens de interpretar a própria história, acentuando mais o passado, ou subordinando-se ao presente, ou ainda colocando-se apenas no futuro, isto dentre outras tantas possibilidades de relação com o passado, o presente e o futuro. Mas, de fato, o homem vive simultaneamente as três dimensões temporais à medida que recorre ao passado para recuperar e interpretar as experiências vividas por outros homens, age no presente e constrói este presente de acordo com as exigências das circunstâncias, transformando-as ou adaptando-se a elas, e lança-se no futuro porque assim contribui para a cultura que outro homem receberá.

Zea propõe fazer uma análise do homem latino-americano em suas diversas nacionalidades e através da história das ideias e da cultura, ou seja, reconhecê-lo como homem concreto e situado no conjunto da humanidade. Neste sentido,

o latino-americano, em qualquer de suas expressões concretas, não é senão, pura e simplesmente, um homem concreto, em situação, como qualquer outro homem do mundo. É esta situação a que o determina e o concretiza, a que o faz ser um homem concreto e não uma abstração. (ZEA, 1976, p. 442, tradução nossa)

O homem se constitui na situação que o torna concreto e através da qual expressa essa concretude. A ação do homem no mundo é a expressão de sua concretude, ao mesmo tempo em que é a concretização da própria cultura. As circunstâncias condicionam a ação do homem, mas estas são também a própria expressão concreta do homem. Homem e situação concreta não existem isoladamente, portanto não são abstrações, mas uma relação intrínseca e dependente, dialética.

Essa ação do homem como diálogo com as circunstâncias é o que leva o homem a atribuir sentido a tudo que o rodeia. Tudo existe porque o homem dá sentido aos objetos de sua circunstância, inserindo-os no universo do que lhe é familiar. Sem o homem não há atribuição de sentido e, portanto, não há mundo. Este mundo circunstancial, concreto, é também um mundo de linguagem no qual a atribuição de sentido vai para além dos objetos, alcançando o outro, ou seja, o homem atribui sentido à existência de outro homem, o que

exige deste outro homem a atribuição de sentido ao primeiro. Nesta dialética de sentidos é que o homem se reconhece como tal e reconhece no outro o que há de semelhante, qual seja, a humanidade. Para Zea, o humano se dá nesta capacidade de compreensão que elimina as diferenças e permite a convivência.

Pensar o que é o homem nos remete à ideia de universalidade que este conceito carrega, mas o que é universal no homem é sua humanidade que, como já vimos, só tem concretude quando um homem reconhece no outro também um homem, situado e concreto. A compreensão do outro se opõe às ideias que embasam os totalitarismos, pois estes só têm lugar quando um homem não reconhece o outro como um homem concreto. A filosofia totalizante, essencialista, fixa e eterna que universaliza o homem, o faz para que se justifique a dominação, a opressão, a discriminação de homens e de povos que não correspondam a esta essência.

Segundo Zea,

a universalidade surge quando homens e povos são capazes de compreender as tábuas de ideias e valores de outros homens e povos. A universalidade bem entendida é a que torna possível a convivência entre homens e povos. Existe a universalidade através da qual um homem pode compreender outro homem, um povo compreende outros povos. A universalidade não se dá assim, simplesmente, é necessário alcançá-la compreendendo os outros e fazendo-se compreender. Assim, a universalidade entendida desta maneira vem a ser a melhor garantia de respeito para homens e povos. (ZEA, 1972, p. 110, tradução nossa)

A esta ideia de universalidade associa-se a ideia de compreensão por projeção, por reconhecer-se como homem e reconhecer no outro o que há de comum, sua humanidade, permite a convivência e supera, inclusive, as ideias de tolerância. Tolerar não é reconhecer no outro um outro homem, é apenas aceitar o que este homem tem de limitação. Nossa limitação está apenas em nossa situação concreta e não do que há de humano em nós. O respeito pelo outro passa obrigatoriamente pela compreensão e pela ideia de universalidade enquanto condição humana. Segundo Zea, “tolerar é suportar, como se tolera ou suporta uma medicina ou um tratamento; algo que não se quis aceitar, mas que é necessário” (ZEA, 1996, p. 48, tradução nossa). “A tolerância não incorpora o outro em sua diferença, simplesmente o tolera” (ZEA, 2000, p. 264, tradução nossa). Assim, ao analisarmos o pensamento de

Leopoldo Zea, superamos a ideia de tolerância ao adentrarmos o campo da compreensão porque “todo homem possui uma história, uma etnia, um sexo, um modo de conduzir-se, uma cultura, um passado, um horizonte nacional” (ZEA, 2000, p. 263, tradução nossa), um idioma e muitas outras circunstâncias que são expressão concreta do que há de humano em nós. “Tolerância é um termo euro-ocidental pelo qual se aceita piedosamente uma desigualdade” (ZEA, 1996, p. 49, tradução nossa), logo, tolerância não é compreensão e também não é garantia de paz.

Zea defende a ideia de que

os homens são gente concreta e, por sê-lo concreta, distinta entre si; mas não tão distintos que uns podem considerar-se mais homens do que outros. É este modo de ser concreto o que há de natural a todos os homens, sem distinção de raça ou cultura. É esta múltipla concretude a que os iguala entre si. (ZEA, 1996, p. 46, tradução nossa)

O que nos diferencia, unifica, já que o que é comum a todos os homens é justamente ser homem. “Simplesmente, há de afirmar e reconhecer a própria e concreta humanidade, e que, por ser concreta, se expressa diferentemente, mas não tanto que se possa negar a um homem seu ser homem a partir dessa mesma diferença” (ZEA, 2000, p. 263, tradução nossa). Para Zea, a melhor expressão de universalidade é a compreensão de que somos “contemporâneos de todos os homens” (ZEA, 1965, p.14, tradução nossa).

Essa diversidade que unifica e essa compreensão que universaliza nos levam à

solidariedade nos esforços que façamos todos os homens, todos os povos, pelo sucesso de algo tão concreto como esse mínimo de felicidade material e espiritual a que têm direito todos os homens e povos, sem discriminação social, política, econômica ou racial. (ZEA, 1965, p.14, tradução nossa)

O homem é um ser de razão, devendo colocá-la a serviço do que há de comum entre todos os homens, a sua humanidade. Desta maneira, o homem coloca a razão a serviço da compreensão do outro. Para Zea, só há o homem concreto

capaz de compreender e fazer-se compreender e, através desta compreensão, tornar patente a igualdade que entre si guardam todos os homens da terra,

sem discriminação alguma. Igualdade na inevitável desigualdade dos homens entre si como indivíduos concretos que são. Inevitável diversidade que, ao ser compreendida e respeitada, pode possibilitar a autêntica paz que há de prevalecer entre os homens. (ZEA, 1993a, p. 236, tradução nossa)