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Em meio aos grandes tipos de riso que aparecem na obra, o escárnio e a zombaria, figura o riso ricto do personagem Gwynplaine, personificando assim a escravidão do povo, subjugado pela aristocracia da época. A impossibilidade de acordo entre essas duas camadas populares, às quais a figura de Gwynplaine tem pertencimentos, clamaria por uma revolução, para a instauração da liberdade social, com direitos e deveres equiparados.

Segundo Noetinger (1999), podemos perceber a existência dinamicidade artística de Hugo em L’Homme qui rit, obra por ele considerada uma amostra da originalidade do autor no interior de sua própria estética. A face de Gwynplaine transfigurada em máscara seria um tipo de arquétipo de dissimulação da construção romanesca de Hugo neste romance: por meio do ricto de Gwynplaine e seu discurso a favor do povo, Hugo parece ter abordado temas de suas lutas e ideais sociais, e compôs, portanto, uma obra literário- filosófica e política que permite ser lida e estudada sob vários ângulos, inclusive pelo viés escolhido para esta pesquisa - o fenômeno do riso e sua importância na criação do autor.

Hugo parece ter realizado neste romance um modo de escritura-máscara, uma escritura exagerada da própria escritura hugoana, na qual teríamos a história de Gwynplaine como metáfora dessa forma do autor escrever. O grande ricto de Gwynplaine

32 seria o grande riso de Hugo em ironia e crítica para com o sistema político vigente em seu tempo, na França, e para com as injustiças cometidas contra o povo, bem como as censuras e imposições existentes no campo literário.

Sem a face de Gwynplaine, risonha e monstruosa, Hugo não teria jamais estado tão próximo desta verdade estética que ele reivindicava, quarenta anos antes, no Prefácio de Cromwell (1827)48: o sublime com o grotesco, o risível com o trágico. Assim, sendo, o ricto de Gwynplaine seria uma metáfora para abordar os ideias hugoanos de mudança e revolução nas artes e na sociedade de forma geral, visando à liberdade nestes campos.

CONCLUSÃO

O romance estudado é uma obra que permanece atual, principalmente se pensarmos que ainda hoje há resquícios de feudalização e de opressão popular em diversas partes do globo. No ocidente, muito mudou após a Revolução Francesa, mas ainda há muito a evoluir em relação aos sistemas de governo e ao exercício da liberdade. Acreditamos que Hugo era desejoso não somente de liberdade no sentido empregado aqui até o momento, mas também de uma maneira metafísica e existencial.

Com a manifestação do riso tanto em locais de apresentações populares e teatrais, como acontece na narrativa, assim como em outras ambientações sociais, Hugo teria exposto que o riso não se expressa apenas na encenação de um texto teatral (ou seja, na literatura), por exemplo, e não apenas de forma cômica, mas muitas vezes de forma grotesca, maldosa, com intuito de criticar e desvelar defeitos.

Assim sendo, não são apenas alegrias que encontramos em L’Homme que rit visto que o discurso risível que permeia a escritura reflete as críticas de Hugo sobretudo em relação à tirania existente na época. Hugo discute, implicitamente, questões filosóficas, o ser humano, seus sentimentos e condutas, as escolhas que faz na vida para o alcance da liberdade e felicidade Ŕ que vêm a ser a aspiração de todo ser humano. Segundo ele, todos os homens são naturalmente bons e maus; o que Hugo já discutia no Prefácio de Cromwell (1827). Para ele, odiar era tão forte quanto amar. Entretanto, caberia a cada um, mesmo nas piores condições, lutar por algo melhor. Exemplo disso

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Em Préface de Cromwell, Hugo reivindicava sobre a liberdade na criação literária, que, segundo ele, deveria se libertar da estética clássica vigente, e constituir-se também com a presença da estética grotesca, pois tanto na vida como na arte, nada é completamente belo e sublime. Há na Natureza aquilo que é feio, o grotesco, disforme, tanto em contraposição como em complementaridade da complexidade e totalidade [existentes] do universo e no interior do próprio ser humano. O mundo possui ambiguidades e a obra literária não poderia deixar de tê-las também.

33 são suas críticas ao poder em muitas de suas obras.

Gwynplaine, em meio a tantas adversidades vividas, lutou não apenas por si, mas principalmente pelos oprimidos. Para quê lhe serviria o poder autorizado por suas origens aristocráticas sem liberdade? Esta pergunta se transformou no dilema de Gwynplaine ao retomar a condição de par da Inglaterra: teria o que não tinha antes e perderia o que conquistara na vida - seus amigos e o amor de Dea. Recuperando seus direitos e assumindo sua nobrecondição, Gwynplaine estaria insatisfeito, pois caso continuasse no poder, contrariaria seus ideais, aprisionar-se-ia ainda mais, pois se tornaria escravo do poder que possuía e daquilo que se praticava na corte, o que não condizia com seus valores enquanto cidadão.

Ao morrer, Gwynpaline põe fim a sua existência e escravidão, tanto quanto monstro e homem mísero, como enquanto lorde pertencente ao atroz meio aristocrata. Ao mesmo tempo, deu um passo para outro tipo de libertação, que Hugo parece sugerir a libertação da alma. Sua morte adviria da necessidade de apagá-lo como prova viva das atrocidades de um tempo e de um governo que não cabiam mais na história da humanidade. É o chamamento da Revolução.

Pensar na complexidade da obra e associá-la ao fenômeno do riso faz destacar a relevância deste ato humano para revelações e questionamentos sobre a humanidade. O autor teria buscado no riso, um elemento propício para falar sobre a Inglaterra, sendo seu propósito específico evocar a necessidade de extinguir todo e qualquer nepotismo social. É sabido que ele declarou em uma de suas correspondências, que L’Homme qui rit reflete sua profunda simpatia pela liberdade e progresso ingleses e é também a prova de seu amor por este país. Sentia-se em casa estando exilado na Inglaterra, assim como quando estava na França. No prefácio, Hugo afirma que tudo é grande na Inglaterra, mesmo o que não é bom.

Relembrando a teoria de Bakhtin sobre o emprego do riso para abrir caminhos e se falar mais à vontade sobre temas que nos provocam estarrecimentos, temas importantes e grandiosos, concluímos que, para escrever sobre as atrocidades da aristocracia inglesa no século XVII e a possível alusão à Revolução Francesa no século XVIII, Hugo utilizou o riso como forma de tornar mais aguda a sua reflexão. Através do riso, ele teria libertado sua escrita, extravasando, assim, seu potencial criador como artista.

34 6. ANEXO : Lettre au directeur du daily telegraph. Hauteville-House, 26 avril, 1869.

Je m‟empresse, monsieur, de répondre à votre lettre. Vous voulez bien attribuer à la publication de L‟homme qui rit une importance qui vous fait souhaiter quelques lignes de moi, spécialement pour l‟Angleterre .J‟ai peu de chose à ajouter à la préface de L‟homme qui rit . Ce n‟est pas un livre anglais ; c‟est un livre humain. Il est anglais cependant en ce sens qu‟un certain côté, presque inconnu, de l‟histoire d‟Angleterre y est mis à nu et exposé en pleine lumière, ce qui semblera à l‟Angleterre brusque peut-être, mais, à coup sûr, instructif.

Le reste des mœurs espagnoles et papistes, personnifiés dans la duchesse Josiane, étonnera certainement la modestie anglaise actuelle, mais c‟est au stuartisme et au catholicisme qu‟il faut s‟en prendre.

Je ne suis, moi, qu‟historien et philosophe ; je ne sais pas l‟anglais ; pourtant, en m‟en référant au jugement unanime, je désire que la traduction publiée ressemble à la traduction de mon livre William Shakespeare , qui est excellente, et non à la traduction des Misérables , qui est détestable et à refaire.

L‟homme qui rit, je le répète, est surtout un livre humain. L‟ancienne aristocratie anglaise y est peinte avec impartialité, et l‟historien de L‟homme qui rit a tenu compte de tout ce qu‟il y a eu de vraie grandeur dans la domination souvent patriotique des lordes. Le roman, tel que je le comprends, tel que je tâche de le faire, est d‟un côté drame et de l‟autre histoire. Ce que l‟Angleterre verra dans ce livre, L‟homme qui rit, c‟est ma profonde sympathie pour son progrès et pour sa liberté. Les vieilles jalousies de races n‟existent pas pour moi ; je suis de toutes les races. Étant homme j‟ai le monde pour cité, et je suis chez moi en Angleterre, de même qu‟un anglais est chez lui en France.

Effaçons le mot hospitalité, tout charmant qu‟il est, et remplaçons-le par le mot droit, " sévère, mais juste ". J‟aime l‟Angleterre, et mon livre le lui prouve. Vous voulez que je le lui dise, c‟est fait. Publiez ma lettre si vous le jugez à propos. Recevez, monsieur, la nouvelle assurance de ma cordialité.

Victor Hugo.

Tradução livre: Carta de Victor Hugo ao diretor do jornal “Daily Telegraph” Hauteville-House, 26 de abril de 1869.

Disponho-me, senhor, a responder sua carta. O senhor quer atribuir à publicação de O homem que ri uma importância que vos faz esperar algumas linhas escritas por

35 mim, especialmente para a Inglaterra. Tenho pouca coisa a acrescentar ao prefácio de O

homem que ri. Este não é um livro inglês; é um livro humano. Ele é inglês, portanto, no

sentido de que um certo lado, quase desconhecido, da história da Inglaterra, é desnudado e exposto em plena luz, o que parecerá brusco talvez para a Inglaterra, mas seguramente, instrutivo.

O resto dos hábitos espanhóis e papistas, personificados na duquesa Josiane, assustará certamente a modéstia inglesa atual, mas é ao stuartismo e ao catolicismo que é necessário se ater.

Eu não sou nada além de historiador e filósofo; eu não sei inglês; portanto, ao me referir ao julgamento unânime, desejo que a tradução publicada se assemelhe a do meu livro William Shakespeare, que é excelente, e não à tradução feita de “Os Miseráveis”, que é detestável e a ser refeita.

O homem que ri, eu repito, é sobretudo um livro humano. Nele, a antiga

aristocracia inglesa é pintada com imparcialidade e o historiador de O homem que ri levou em consideração tudo aquilo que existiu de verdadeiramente grandioso na dominação geralmente patriótica dos lordes. O romance, tal como o compreendo, tal qual me esforço para fazê-lo é, de um lado drama e de outra história. O que a Inglaterra verá neste livro, O

homem que ri, é minha profunda simpatia por seu progresso e sua liberdade. As velhas

invejas de raças não existem para mim; eu sou de todas as raças. Sendo homem eu tenho o mundo como cidade e me sinto em casa na Inglaterra, assim como um inglês sente-se em sua casa na França.

Apaguemos a palavra hospitalidade, charmosa como ela é e a substituamos pela palavra direito, “severa, mas justa”. Eu amo a Inglaterra e o meu livro é prova disso. O senhor quer que eu lhe diga, está feito. Publique minha carta se julgá-la a propósito. Receba senhor, a renovação de minha cordialidade.

36 7.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

De Victor Hugo:

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37 MASSAUD, Moisés. A análise literária. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

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Outras :

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NOETINGER, Elise. « La sinistre beauté du masque. Étude de L'Homme qui rit de Victor Hugo ». French Studies, 1999 LIII: 405-416; doi:10.1093/fs/LIII.4.405 Disponível em : http://fs.oxfordjournals.org/content/volLIII/issue4/index.dtl Acesso em:abril de 2008.

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