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O RISO NA CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO ROMANCE L’HOMME QUI RIT, DE VICTOR HUGO -DANIELA BATISTA E SILVA

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ Ŕ UFPI

PROGRAMA DE BOLSA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA Ŕ PIBIC/UFPI

O RISO NA CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO ROMANCE

L’HOMME QUI

RIT, DE VICTOR HUGO

DANIELA BATISTA E SILVA

(2)

2 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

2 SOBRE O ROMANCE FRANCÊS NO SÉCULO XIX ... 4

2.1 Sobre Victor Hugo ... 6

2.2 O romance L’Homme qui rit e o contexto de criação da obra.. ... 7

3 BREVE ESTUDO DA NARRATIVA EM L’HOMME QUI RIT... 8

3.1Temas ... 9 3.2Narrativa ... 10 3.3Tempo ... 12 3.4Espaço ... 13 3.5Personagens ... 16 3.6 Linguagem ... 22

4.O RISO NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DE L’HOMME QUI RIT ... 25

4.1 O escárnio dos aristocratas e a zombaria do povo ... 27

4.2 O ricto e morte de Gwynplain ... 29

4.3 O ideal revolucionário no riso de Gwynplaine ... 32

CONCLUSÃO ... 33

ANEXO ... 35

REFERÊNCIAS ... 37

(3)

3 1. INTRODUÇÃO

O escritor francês Victor Hugo (1802-1885) foi um homem de intensa vida política. Durante os anos em que esteve o exílio escreveu algumas de suas grandes obras, não só literárias como também críticas. Muitos dos seus ideais políticos e muitos dos seus combates aí se fazem presentes.

Pretende-se verificar nesta pesquisa a existência de uma possível reflexão crítica de Hugo no interior do texto, quanto à construção romanesca praticada em sua época, assim como a existência de uma nova proposta do fazer poético, distante das categorizações do gênero romanesco que circulavam em meados do século XIX.

Para tal, propõe-se contextualizar a situação do romance francês no século XIX, analisar o contexto de criação do romance de Hugo e empreender um estudo da narrativa em L’Homme qui rit. Quer-se também investigar a presença dos ideais políticos do autor através da representação do fenômeno do riso no texto e de inovações existentes nos aspectos constitutivos e caracterizadores da produção do romance.

Como Victor Hugo alude à grande Revolução Francesa e ao sofrimento do povo em sua obra, é possível supor que o riso esteja presente em L’Homme qui rit como elemento fundamental para tecer a crítica que ele teria pretendido fazer à aristocracia.

É importante dizer que esta pesquisa tem por fim dar continuidade aos estudos acerca do riso que foram realizados em nossa pesquisa anterior: “Os diferentes risos na

obra “L’Homme qui rit” de Victor Hugo: um estudo do discurso crítico presente na escritura”.

(4)

4 2. SOBRE O ROMANCE FRANCÊS NO SÉCULO XIX

Segundo D‟Onofrio (2004), a palavra romance deriva, etimologicamente, da expressão latina romanice loqui, “falar românico”, ou seja, falar em um dos vários dialetos europeus que se formaram a partir da língua da antiga Roma.

Naquela época, as histórias eram transmitidas oralmente antes de serem escritas. Assim, a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental. Esta forma cultural viveu à margem da literatura oficial durante a época do classicismo, pois as teorias poéticas desse tempo preocupavam-se apenas, ou preferencialmente, com os textos versificados.

Com o declínio da poesia épica, no início do século XVIII, a ficção em prosa assume o papel da epopéia como forma de expressar a totalidade da vida e adquire estatuto de gênero literário.

Considerado por D‟Onofrio (2004) como filho bastardo da epopéia, o romance tornou-se a melhor forma literária de exprimir os anseios da burguesia, que surgia como resultado das revoluções comercial e industrial, que faziam cair os absolutismos cultural e político.

O século XIX abrigou diversas tendências estéticas literárias como, por exemplo, o Realismo, o Naturalismo, o Romantismo, o Parnasianismo ou o Simbolismo. Tais tendências se sucediam e coexistiam, uma vez que não há como precisar delimitações para o surgimento de uma nova forma de escritura e não há o fim repentino e total de outra. As características muitas vezes se mesclam, se aperfeiçoam e se influenciam. Há ainda o fato de uma mesma obra abrigar tendências de diferentes movimentos estéticos.

Na França, o gênero romanesco só ganhou destaque a partir dos anos cinqüenta, pois a primeira metade do século foi dominada pelo gênero teatral, que recebeu um forte impulso e sofreu muitas transformações.

Os contextos sócio-cultural, econômico e político do século XIX nos revelam uma profusão da produção romanesca dotada de complexidade, à imagem de uma época na qual a sociedade estava em profunda mutação. Houve muitas descobertas e um progresso significativo nos campos científico, das ciências humanas, no plano econômico bem como no desenvolvimento de novas tecnologias. No campo das letras, um capital importante foi destinado à editoração e à imprensa de forma geral, o que propiciou a propagação do gênero romanesco por meio de publicações em folhetins, facilitando assim a circulação das obras entre o crescente público. Isto era benéfico, pois favorecia gostos diversificados do público.

(5)

5 Em meio a tantas modificações, se consolidou o romance, que assumia diversas formas, não sendo possível uma classificação fixa para cada produção. Os romances apresentavam características e gêneros tradicionais, como o teatro, e diferentes modos de expressão e registros da língua. Mesmo assim, tentou-se construir classificações para os romances produzidos no período.

Ainda hoje existem problemas quando se trata de classificar determinado romance, visto que um romance compõe-se de maneira pluriforme e heterogênea. Segundo Lukács (2000), a composição do romance é uma fusão paradoxal de componentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade constantemente revogada. Outra teoria que segue o mesmo princípio é a de Bakhtin (1988). Para ele o romance, tomado em conjunto, caracteriza-se como um fenômeno plurilíngüe e plurivocal. Segundo Bakhtin, este gênero engloba uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. Acrescenta ele que:

“é graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra seus temas, todo seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo.”1

Assim, no caso de Hugo em L’Homme qui rit, poderíamos pensar que uma diferente linguagem seria apresentada pelo discurso risível existente na escritura, como uma segunda linguagem utilizada pelo escritor para empreender sua construção narrativa. Retomando o contexto romanesco no século XIX, dentre os muitos tipos de produções, os romances eram considerados como: noir ou gótico, de intrigas ou romanesco, sentimental, histórico, psicológico ou de análise. O romance de aventura se subdividia em policial, exótico, de ficção científica ou de antecipação. Havia ainda o romance para jovens e o romance de modos, dentre outros.

Já no fim do século, o romance entra novamente em crise, questiona seu conteúdo e sua forma, o que abre novas possibilidades e vias a serem trilhadas pelo Nouveau

Roman, que surgiria em meados do século XX.

A predominância pelo uso do gênero romanesco foi bastante acentuada na segunda metade do século XIX, o que favoreceu o romance a ocupar o estatuto de forma artística mais apta para exprimir as perplexidades da realidade em que vivemos. Foi nesse turbilhão de mudanças e acontecimentos que Victor Hugo compôs suas obras, o

1

(6)

6 que se pode perceber no romance ora estudado, L’Homme qui rit. Verificaremos, então,

de que forma o fenômeno do riso se manifesta na crítica social presente no texto.

2.1 Sobre Victor Hugo

Victor Hugo, que viveu e atuou durante quase todo o século XIX, foi um artista múltiplo que escreveu tanto poesia, como romance e teatro. Escreveu tratado de teoria literária e filosofia, assim como artigos e documentos políticos e sobre a história, além de atuar como artista plástico e homem político. Sua vasta produção literária revela seu engajamento social, político e artístico, seus ideais de progresso e liberdade para diversas instâncias da sociedade. Lutou e defendeu, por meio das letras, a liberdade, a abolição da escravatura, a igualdade de direitos para as mulheres que não tinham voz ativa na sociedade patriarcal, assim como lutou contra a pena de morte e contra as descriminações de forma geral.

Ele era a favor de uma prática literária igualmente livre, afim de que os artistas pudessem se exprimir e abandonar definitivamente os preceitos clássicos usados até então. Como literato, Hugo almejava retratar a totalidade do mundo e do ser humano, e para tanto, construiu obras em que se notam a união entre o abstrato o concreto, o humano, o divino e o bestial, em diversos temas ou áreas do conhecimento.

A linguagem utilizada por Hugo é desmedida. Revela sua visão sobre o mundo por meio de hipérboles, oximoros, antíteses. Suas obras exprimem sua estética da polifonia, da reunião de gêneros e sistemas de representação, o abandono das regras clássicas, a coexistência do grotesco e do sublime, enfim, a liberdade na arte.

Os romances hugoanos são: Bug-Jargal (1818), Han d'Islande (1823), Le Dernier

Jour d'un condamné (1829), Notre-Dame de Paris (1831), Claude Gueux (1834), Les Misérables (1862), Les Travailleurs de la mer (1866), L'Homme qui rit (1869), Quatrevingt-treize (1874)2. Os quatro últimos foram escritos no período em que esteve exilado na Bélgica e nas ilhas inglesas Jersey e Guernesey, durante os anos 1851 a 1870.

2

Em português: Bug-Jargal; Han da Islândia; O último dia de um condenado; Nossa senhora de

(7)

7 2.2 Sobre o romance L’Homme qui rit e o contexto de criação da obra

Romance escrito durante o longo exílio de Victor Hugo, entre 1866 e 1868, em Bruxelas e Guernesey, e publicado em 1869, na França. Em L’Homme qui rit, Hugo critica a política francesa. O romance parte de um projeto literário maior guiado pelos temas aristocracia, monarquia e revolução. Segundo Hugo, ele poderia ser intitulado de aristocracia:3

Ce roman, cette histoire, ce drame, L’Homme

qui rit, s‟il était ce que l‟auteur l‟a voulu faire, et

s‟il valait la peine d‟être étudié, présenterait, à ceux qui aiment à méditer sur l‟horizon mystérieux d‟un livre, plus d‟un point de vue. Au point de vue historique et politique, pour n‟indiquer que celui-là, son vrai titre serait

L’Aristocracie.4

Como já mencionado acima, a obra foi criada no momento em que Victor Hugo esteve exilado. Dentro da narrativa Hugo trata da aristocracia inglesa do século XVII, que serviria como pretexto para que ele exprimisse sua indignação frente ao sistema político francês da época: o imperialismo de Napoleão III após o golpe deste contra a República.

O fenômeno do riso constitui-se em tema central da obra e através dele, Hugo revela os absurdos do sistema político-aristocrático inglês, retrata a situação do povo subjugado pelo poder e a iminência de uma revolução.

Em 1969, quando o romance é publicado, a recepção não é das melhores. Sobre o repúdio e queixas em relação à L’Homme qui rit, Hugo escreve o seguinte:

Le succès s‟en va. Est-ce moi qui ai tort vis-à-vis de mon temps ? Est-ce mon temps qui a tort vis-à-vis de moi ? Question que l‟avenir peut seul résoudre. Si je croyais avoir tort, je me tairais, et ce me serait agréable.(...) Cet insuccès se compose de deux

3

O projeto desta trilogia, segundo B. Leuilliot, é citado por Hugo em uma correspondência à Auguste Vacquerie, de 27.01.1869. Nela o autor diz que a trilogia começará com L’Aristocratie (posteriormente intilulado L’Homme qui rit) no qual Hugo retratou a antiga Inglaterra. A antiga França seria retratada em

Monarchie, a monarquia. Para concluir o projeto foi escrito Quatrevingt-Treize (1874), Noventa e três, que

fala da revolução. O romance Monarchie jamais foi escrito. B. Leuilliot, por exemplo, cita nas notas do romance L’Homme qui rit, que Quatrevingt-treize visava ser uma “arqueologia” da Revolução Francesa, chamada por Hugo de “ revolução verdadeira ”, se comparada à revolução inglesa de 1688.

4

HUGO, Victor. L’Homme qui rit. 2002 in:Textes de Hugo autour de L’Homme qui rit. p.840.Tradução livre : Este romance, esta história, este drama, O homem que ri, se ele fosse aquilo que o autor desejou fazer e se ele valesse a pena de ser estudado, eu o apresentaria àqueles que gostam de meditar sobre o horizonte misterioso de um livro, com mais de um ponto de vista. No ponto de vista histórico e político, para indicar apenas este, seu verdadeiro título seria Aristocracia.

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8 éléments : l‟un, mon éditeur ; l‟autre : moi. Mon éditeur. Ŕ Spécultation absurde, délais inexpicables, perte du bon moment, publication morcelée, retards comme pour attendre le moment d‟engouffrer le livre dans le brouhaha des élections. Moi. Ŕ J‟ai voulu abuser du roman, j‟ai voulu en faire une épopée. J‟ai voulu forcer le lecteur à penser à chaque ligne. De là une sorte de colère du public contre moi. 5

Naquela época Hugo era republicano e no exílio declarou que só voltaria à França quando nesta se instaurasse a liberdade: a volta da república, que se deu em 1870. Em 1871 Hugo volta à França e é eleito como deputado.

3. BREVE ESTUDO DA NARRATIVA EM L’HOMME QUI RIT

Para que se perceba como se dá a participação do fenômeno do riso na construção literária do romance faz-se necessário estudar os elementos da narrativa. Utilizaremos Massaud (2002) como apoio teórico para nossas análises.

A obra hugoana é dividida da seguinte maneira:  Prefácio

Primeira parte: La mer et la Nuit (O mar e a noite) o Dois capítulos preliminares

Neles o autor apresenta o personagem Ursus e os personagens nomeados de comprachicos.

o Três (3) livros

Nestes capítulos que seguem, aborda-se:

- O abandono do garoto Gwynplaine no istmo de Portland, a saga desta criançã no frio e na neve, durante a noite, até encontrar abrigo;

- A tripulação de comprachicos em fuga, no Navio Matutina.

- O autor também discorre sobre o mar, elemento da natureza muito recorrente em outras de suas obras.

5

HUGO, Victor. L’Homme qui rit. 2002. Retirado de “Textes de Hugo autour de L’Homme qui rit” Ŕ Textos de Hugo sobre O homem que ri Ŕ p. 843-44. Tradução livre: O sucesso vai-se. Sou eu que estou em desacordo com meu tempo? É meu tempo que está em desacordo comigo? Questão que o futuro apenas pode resolver. Se acreditasse que não tenho razão, calar-me-ia, e isto me seria agradável. (...) Este fracasso compõe-se de dois elementos: um, o meu editor; o outro: eu. O meu editor. Ŕ Especulação absurda, prazos inexplicáveis, perda do bom momento, publicação parcelada, atrasos em espera do momento de precipitar o livro no zunzun das eleições. Eu. - Quis abusar do romance, eu quis fazer uma epopéia. Quis forçar o leitor a pensar à cada linha. Disto resultou uma espécie de cólera do público contra mim.

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9  Segunda parte: Par ordre du roi (Por ordem do rei)

o Nove (9) subpartes chamadas livros

Nos livros da segunda parte, são abordados os seguintes temas: - Apresentação dos personagens principais Ŕ lordes Clancharlie e

David Dirry-Moir, duquesa Josiane, rainha Anne, Barkilpedro. - Os países Escócia, Inglaterra e Irlanda;

- Os clubles ingleses de divertimento dos nobres, local nos quais estes se divertiam maltratando pessoas de camadas sociais inferiores às suas;

- Apresentação de Gwynplaine e Dea, a convivência entre eles, e o trabalho realizado na Green-Box;

- A encenação da peça Caos Vaincu, de Ursus; - A intimação de Gwynplaine por oficiais da justiça;

- Revelação da verdadeira identidade de Gwynplaine e sua entrada na câmara dos lordes para que lhe restituíssem o que lhe era de direito; - A sedução entre Josiane e Gwynplaine;

- Reunião da Assembléia na qual haverá a investidura de Gwynplaine e seu discurso proferido contra os nobres e a favor do povo, por meio da explicação de seu ricto.

 Conclusão

Na conclusão temos a partida de Ursus, Hommo e Dea para a Bélgica, em virtude de Ursus ter sido exilado. Logo no início da viagem se dá a morte de Dea e em seguida, o suicídio de Gwynplaine.

3.1 Temas

A narrativa se passa na Inglaterra do século XVII. Victor Hugo “mostra” a sociedade inglesa da época e utiliza alguns personagens históricos para figurarem seus personagens ficcionais, cujas trajetórias ele reinventou.

Em uma só obra, Hugo trata sobre ciências, como a política e a filosofia. Trata também de temas como a liberdade, a tirania, o servilismo e a metafísica. A história narrada tem como pano de fundo a vida de Gwynplaine e apresenta-nos um panorama da sociedade da época, com ênfase na política que era regida pela aristocracia.

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10 Dentre os temas já mencionados, ainda podemos citar a situação da mulher em busca de emancipação social através da personagem Josiane. Hugo trata indiretamente do preconceito em relação aos considerados diferentes e coloca o povo, assim como a luta por seus direitos, em evidência.

Os temas políticos e econômicos referem-se ao sistema social à época da queda da República dos tempos de Cromwell, à restauração da monarquia, dos reinados de Charles I e Jacques II e ao exílio, ao qual eram submetidos aqueles que se opunham aos interesses nacionais, que implicava na opulência dos nobres em detrimento da miserabilidade da camada popular.

Além disso, há ainda a prática dos comprachicos e seus mandantes. A palavra

comprachicos é de origem espanhola e significa „compra pequenos‟, ou seja,

compradores de crianças. O termo designa, pois, homens que faziam comércio de crianças. Na narrativa estudada, os membros deste grupo eram homens de diversas nacionalidades. Falavam cada qual o idioma de seu país, de modo que a comunicação entre eles era marcada pela mistura de línguas, produzindo uma outra entendida entre eles.

Este grupo constituía uma indústria que fabricava monstros, pois trabalhavam a matéria dos corpos de suas vítimas, de modo a transfigurá-los. Esta indústria horrenda possuía suas leis, juramento e até mesmo fórmulas.

Segundo Hugo, esta prática era um sintoma que revelava todo um estado social, secular, preexistente, imemorial. Com os comprachicos, o escritor traz à luz um olhar acerca de costumes feudais inescrupulosos, compreendidos em quase toda a história humana, segundo ele, tendo acontecido inclusive na China.

3.2 Narrativa

Por ser uma narrativa longa, envolvendo grande número de personagens e conflitos, a obra é classificada como romance. Segundo o próprio autor, pode ser considerado como um romance histórico e filosófico. Para ele, o romance, tal como ele o compreendia, e tal qual ele o tinha feito, era de um lado drama e de outro, história6.

A narração é feita em terceira pessoa e é do tipo onisciente. Segundo Massaud

6

Correspondência à Auguste Vacquerie escrita em Hauteville House, em 27 de janeiro de 1869.

Disponível em: http://fr.wikisource.org/wiki/Correspondance_-_Tome_III_1869: « Le roman, tel que je le comprends, tel que je tâche de le faire, est d‟un côté drame et de l‟autre histoire. »

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11 Moisés (2002) é onisciente por contar ou mostrar a história, não apenas através do que o narrador observa externamente, como também é capaz de nos dizer o que os personagens sentem e pensam:

Gwynplaine souffrait beaucoup. Pour La première fois de sa vie, il n‟était pas content de lui. Intime douleur mêlée à sa vanité satisfaite. Que faire? Le jour vint. Il entendit Ursus se lever, et on n‟ouvrit pas les paupières. Aucune trève cependant. Il songeait à cette lettre. Tous les mots lui revenaient dans une sorte de chaos. 7

O narrador também pode ser chamado de narrador-testemunha, já que geralmente não são os personagens que contam os episódios dos quais participaram.

Há muito mais falas do narrador do que dos personagens. Os diálogos existentes entre eles não são muitos se comparados com a intensa fala do narrador. Este descreve espaços, cenários, objetos, personagens tanto fisicamente como interiormente, tudo isto de forma muito detalhada. É ele que conta os episódios propriamente ditos. Além disso, mescla fatos históricos, embora saibamos que se tratam de fatos que constituem uma ficção.

Há longos trechos descritivos e narrativos no romance, como mostram respectivamente os exemplos a seguir:

On était dans une ruette exiguë. Pas de maisons, si ce n‟est à l‟entrée deux ou trois masures. Cette ruette était composée de deux murs, l‟un à gauche, bas; l‟autre à droite, haut. La muraille haute était noire et maçonnée à la saxonne, avec des crénaux, des scorpions et des carrés de grosses grilles sur des soupiraux étroits. Aucune fenêtre ; ça et là seulement des fentes, qui étaient d‟anciennes embrasures de pierriers et d‟archegayes.8

Un philosophe est un espion. Ursus, guetteur de rêves, étudiait son élève. Nos monologues ont sur notre front une vague réverbération distincte au regard du physionomiste.

7

HUGO, Victor. L’Homme qui rit. 1869. p. 607. As traduções que se seguem desta obra foram

retiradas do livro traduzido para o português: O homem que ri, de 1935.Tradução p. 749: “Gwynplaine padecia muito. Achava-se descontente de si pela primeira vez na vida; era uma dor íntima, que se lhe confundia com a vaidade satisfeita. Que havia de fazer ? Entretanto amanheceu. Gwynplaine sentiu Ursus levantar-se e não abriu as pálpebras ; contudo não tinha a mínima trégua ; não podia esquecer-se da carta. As palavras dela acudiam-lhe todas ao espìrito numa espécie de caos.”

8

HUGO, Victor. Op. Cit. p. 617. Tradução p.498: “Tinha chegado a uma ruazinha muito exígua, na qual, além de dois ou três pardieiros que havia à entrada, não se viam casas. Êste beco orlado por dois muros, um à esquerda, abaixo, outro à direita, alto. O muro alto era negro, e feito de modo saxónio, com esteiras, escorpiões e quadrados de grossas grades em frestas pequenas. Não tinha nem uma janela ; o que se lhe via num ou noutro ponto eram enormes fendas. No sopé do muro notava-se, qual buraco na base de uma ratoeira, um postigozinho sobremodo baixo.”

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12 C‟est pourquoi ce qui se passait en Gwynplaine n‟échappait

point à Ursus. Un jour, que Gwynplaine méditait, Ursus, le tirant par son capingot, s‟écria : - Tu me fais l‟effet d‟un observateur, imbécile ! 9

Para expressar a indignação do autor diante do contexto social da época, o riso aparece nos diferentes discursos, a favor da liberdade do povo, da mulher, da criação poética, do direito de reivindicação política, do outro. Assim sendo, o riso na obra não é utilizado como fazem os comediantes, com fins apenas de divertimento, mas como meio de crítica para questionar a ideologia dominante.

No romance estudado, o poeta apresenta uma construção narrativa na qual o mundo é invertido, existe confusão de valores morais, sociais e políticos, que refletem sua própria época. Seu combate pelo bem estar do homem é o combate do bufão de corte que ri, mas cujo riso, apesar de sua deformidade, é expressão de uma mudança e a promessa de uma verdade.

Longe de se deter a um conceito de riso exclusivo, o exame do fenômeno em

L’Homme qui rit mostra-nos um caráter pluriforme do uso do riso. Isto foi percebido em

nossa pesquisa anterior, na qual se constatou que existem formas diferentes de riso - não só na obra, mas na vida humana - e que cada tipo de riso teria uma função ou significados diferenciados, segundo as circunstâncias nas quais foram produzidos. Cada tipo de riso repertoriado aponta para um ou mais significados do riso.

3.3 Tempo

Segundo Massaud (2002), o tempo constitui um dos aspectos fundamentais da prosa de ficção. Ele afirma que é para o tempo que vão confluir todos os elementos integrantes da massa ficcional, desde o enredo até a linguagem empregada. Para ele, o fim último de todo escritor é criar o tempo.

Em L’homme qui rit Hugo reconstrói um tempo anterior ao seu ao criar um romance narrado no século XVII. Existe um passado reconstruído, como a maioria de suas obras.

Há duas classificações para o tempo: uma na qual ele é cronológico ou histórico e

9 HUGO, Victor. Op. Cit. p. 559. Tradução p. 382: “Um filósofo é um espião. Ursus, como espreitador

de devaneios, observava e estudava o seu discípulo. Os nossos monólogos produzem-nos na fronte vaga reverberação, distinta para os olhos de fisionomista. Eis porque não escapava a Ursus nada que Gwynplaine pensava. Um dia que Gwynplaine estava a meditar, puxou-lhe Ursus pelo capingot, e exclamou : - Produzes-me o efeito de um observador, imbecil !”

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13 outra em que é psicológico ou metafísico. O primeiro tipo corresponde a marcações temporais como horas, dias, meses, ciclos, etc. O segundo tipo desobedeceria ao calendário e fluiria dentro dos personagens num eterno presente, sem começo, meio e fim.

Como mencionamos anteriormente, o tempo da narrativa se passa no século XVII. Por haver referências a datas, horas, passagens de meses e anos, assim como outras marcas temporais, o tempo é caracterizado então como cronológico:

“ L‟enfant était à cette heure un homme. Quinze ans s‟étaient écoulés. On était en 1705. Gwynplaine touchait à ses vingt-cinq ans.”10

“ De 1689 à 1704 une trasfiguration avait eu lieu. Il arrivait parfois, en cette année 1704, qu‟à la nuit tombante, dans telle ou telle petite ville du litoral, un vaste et lourd fourgon, traîné par deux chevaux robustes, faisait son entrée.”11

Entretanto pode-se falar da existência de um tempo psicológico, pois o tempo na narrativa transcorre segundo a imaginação do narrador. Ele altera a ordem natural dos acontecimentos, decidindo o que contar em primeiro ou segundo lugar.

Verificamos, por exemplo, que o narrador inicia o livro no tempo presente da narrativa, depois volta ao passado e conta-nos sobre o abandono da criança numa volta no tempo, mas sem esta ser um flash-back. Apenas começa a narrar como se os acontecimentos do passado estivessem acontecendo ao mesmo tempo em que ocorrem os fatos citados no início do livro, ou seja, no presente da narrativa. Em seguida, ele volta a narrar o tempo presente e no momento em que vai apresentar Gwynplaine, o leitor percebe que este era a referida criança, e que o tempo transcorreu cerca de dezessete anos.

Grande parte dos acontecimentos do passado é narrada não como uma memória, mas como se estes fossem vividos no presente. Não há como precisar a duração dos fatos no romance, haja vista que são narradas cenas que se passam no passado e no presente, alternadamente. Por isso, a narrativa seria não-linear.

10 HUGO, Victor. Op. Cit. p. 534. Tradução p.336 : “A criança de então era agora um homem. Tinham

decorrido anos; estava-se em 1705. Gwynplaine contava quasi vinte e cinco anos.” 11

HUGO, Victor. Op. Cit. p.547. Tradução p 360: “De 1968 a 1704 aspirava-se à verdadeira transfiguração. Acontecia, às vezes, naquele ano de 1704, entrar, ao anoitecer, em tal ou tal povoação do litoral, vasta e pesada carroça. [sic]”

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14 3.4 Espaço

A narrativa se passa na Inglaterra e, em grande parte, nas cidades. Inicialmente alguns personagens estão numa região chamada Southwark e posteriormente se deslocam para Londres. Todos os ambientes são descritos por Hugo com grande riqueza de detalhes. Relacionaremos, a seguir, os locais onde se passam as cenas, aqueles mais recorrentes na narrativa, assim como os principais acontecimentos, na ordem cronológica em que aparecem. Assinalaremos também a manifestação ou não do fenômeno do riso nesses lugares:

 A casa de Ursus Ŕ é uma casa ambulante, uma espécie de trailler onde Ursus morava com seu lobo Homo e, posteriormente, acolheu e educou Gwynplaine e Dea. Neste local eles se apresentavam ao público durante as feiras. Encenavam ali as peças escritas por Ursus.  Na Green-Box como é chamada, a nova casa ambulante de Ursus e

trailler de apresentações do grupo, tem-se a manifestação do mau humor de Ursus, de seus risos de cinismo em relação aos seres humanos. Há ainda os sorrisos e risos de contentamento trocados por Dea e Gwynplaine.

 O istmo de Portland Ŕ local do abandono de Gwynplaine e da desventura vivida pelo personagem até encontrar abrigo.

 Neste local da narrativa, o único riso existente é o riso contido nas mandíbulas das caveiras que Gwynplaine encontra pelo caminho. Não há personagens que riem durante a errância da criança: é um momento de aflição.

 Navio Matutina Ŕ embarcação na qual estão os comprachicos em fuga. No navio temos os risos dos comprachicos em fuga, como expressão de pavor e ironia diante do iminente naufrágio. Há também risos de contentamento durante os momentos nos quais acreditavam estarem salvos do perigo da tempestade ou dos obstáculos encontrados em alto-mar.

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15  O mar Ŕ por onde escapam os comprachicos em sua fuga e onde se dará o posterior naufrágio de sua embarcação. Também é o local de onde emergirá a garrafa contendo o pergaminho com as informações acerca da grande revelação da narrativa: a nobre origem de Gwynplaine e a herança que lhe é de direito.

 Não há risos neste ambiente, o que ocorre são os risos dos personagens dentro do Navio Matutina, que está em alto mar.

 Os clubes Ŕ locais nos quais ocorriam as atrocidades, as vilanias e os divertimentos sádicos e grotescos dos aristocratas contra as minorias e outras alteridades da sociedade.

 Nos clubes há manifestação de risos que expressam humor negro, de risos grotescos, sádicos, de zombaria e prazer advindos dos maltratos cometidos pelos lordes contra os diversos tipos de minorias sociais: mulheres, pobres, negros, etc..

 As feiras Ŕ espaços nos quais ocorrem as apresentações dos saltimbancos e artistas.

 Nelas há a manifestação dos risos provocados pela visão de Gwynplaine nas apresentações teatrais: risos de ridicularização por sua feiúra, de espanto, de temor.

 O Tarrinzeau-field Ŕ local em Londres onde aconteciam apresentações de feiras e espetáculos populares.

 Tanto nas feiras, como no Tarrinzeau-field e na Green-Box temos os risos do povo de zombaria e temor diante da face monstruosa Gwynplaine.

 A prisão de Southwark Ŕ onde Hardquanonne é torturado e confirma, antes de morrer, Gwynplaine como herdeiro do lorde Clancharlie.  Na prisão, há os risos mórbidos de Hardquanonne ao reconhecer

Gwynplaine como seu paciente, minutos antes de vir a falecer.

(16)

16 sendo que Corleone-Logde pertencia a Gwynplaine.

 Os aposentos da duquesa Josiane Ŕ lugar onde ocorrem as cenas de sedução entre Josiane e Gwynplaine. Palco das conversas da duquesa com Barkilphedro e lorde David. Neste cômodo existem os risos de escárnio, deboche, e ironia de Josiane, tanto em relação ao seu desprezo por Barkilphedro, bem como diante da horrenda face de Gwynplaine.

 A câmara dos Lordes Ŕ lugar onde acontece a investidura de Gwynplaine no posto de par da Inglaterra, assim como as assembléias dos lordes. Na câmara dos lordes temos risos irônicos diante do discurso proferido por Gwynplaine e de seu ricto. Este é um dos locais mais importantes da obra, pois nele o herói revela os significados de seu ricto.

 O barco no qual Ursus e Dea, juntamente com o lobo, parte em direção à Bélgica. É onde se dá o falecimento de Dea e o suicídio de Gwynplaine.

Em todos estes locais mencionados ocorrem situações nas quais os personagens riem. Em cada ambiente citado ocorre a expressão de um ou mais tipos de riso, como mencionamos. Assim, acredita-se que Hugo, ao criar situações risíveis em cada local, teria pretendido dizer que o fenômeno do riso assume facetas distintas nos diferentes setores da sociedade. Temos o riso da aristocracia e o do povo, o do homem e o do monstro. O riso se manifesta nos questionamentos existenciais do homem, nas relações de poder, nos relacionamentos entre as pessoas, no divertimento ou ainda nas atitudes mais pérfidas e inescrupulosas de um indivíduo.

3.5 Personagens

Trataremos aqui de determinados personagens que consideramos mais significativos para os objetivos desta pesquisa, no sentido de revelar os ideais políticos do

(17)

17 autor .

O herói do romance, Gwynplaine, diferentemente do herói dos antigos romances de cavalaria, é um homem comum que enfrentará os problemas da dura realidade cotidiana.

Pode-se dizer que Gwynplaine é um tipo de anti herói, pois, apesar de ser nobre, sua verdadeira identidade lhe é ignorada. Devido a sua aparência defeituosa, ele vive marginalizado junto à massa popular. Ao mesmo tempo, figura como o redentor, sendo chamado pelo narrador algumas vezes de Prometeu12. Luta, através de seu discurso na câmara dos lordes, para que a situação do povo inglês se modifique.

A feiúra que possui contrasta então com seu nobre caráter. Ele representa os excluídos e nos faz questionar as injustiças que recaem sobre os diferentes. Gwynplaine é um outro que a população escarnece e discrimina.

Seu ricto funciona como máscara de contentamento que esconde a mais profunda tristeza. É um riso grotesco, já que é horrível e, por sua deformidade ser monstruosa, desperta temor, subversão e nojo. É também cômico, uma vez que despertava hilariedade; é irônico e denunciador por ser, na verdade, símbolo de uma cruel escravidão e do sofrimento popular.

A duquesa Josiane é uma personagem complexa, uma mulher à frente de seu tempo, culta, conhecedora de outros idiomas, bonita e jovem. Ela é herdeira bastarda do rei Jacques II, por quem fora educada e inserida entre os nobres. Mulher que parece não se submeter aos desígnios que lhe são impostos, ela tem homens que a cortejam, mas é noiva de lorde David, apesar de não pretender comprometer-se em matrimônio com nenhum deles. Possui atração pelo monstro Gwynplaine e, ao saber que deveria casar-se com ele, rejeita-o. Ignora-o, pois não quer ligação alguma com um homem escolhido pela irmã, a rainha Anne, de maneira oficializada ou imposta.

Ela deseja sua liberdade, antes de tudo. É uma personagem que pode simbolizar a luta da mulher por direitos e liberdade, que não lhe eram outorgados à época da escrita do romance e que era um dos combates caros a Hugo.

O riso desta personagem é um riso, sobretudo de desdém. Josiane, em sua estranha relação com Barkilphedro, trata-o com escárnio e zombaria, humilhando-o e menosprezando o cargo tão almejado por ele. Em tal cargo, a função que ele exerceria seria, segundo ela, a de nada fazer - “ne rien faire” - e o salário oferecido seria

12

Prometeu é um herói mitológico que se rebelou contra Zeus para se colocar a favor dos homens, dando lhes o fogo que roubara dos céus. Assim este herói simboliza a humanidade e é tido como rebelde mas também como trágico, pois fora condenado a ficar preso e acorrentado numa montanha, como castigo pelo delito cometido.

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18 insignificante.

Logo, algo irrisório.

“-Quelle idée as-tu de demander un emploi ? Tu n „es bon à rien. - C‟est pour cela.

Josiane se mit à rire.

-Dans des fonctions auxquelles tu n‟es pas propre, laquelle désires-tu ?

- Celle de déboucher de bouteilles de l‟Océan. Le rire de Josiane redoubla.”13

Ela ri de Barkilphedro por julgar-se superior a ele e por pensar que ele é um homem sem serventia a qualquer tipo de trabalho. Este riso escarnecedor expressaria a superioridade que ela presume ter em relação ao seu serviçal, em função da posição social nobre que possui.

Outra passagem indica a sua relação desdenhosa em relação a Barkilphedro e ajuda-nos a perceber que seu riso pode significar escárnio:

Josiane avait cette plénitude de sécurité que donne l‟orgueil ignorant, fait du mépris de tout. La faculté féminine de dédaigner est extraordinaire. Un dédain inconscient, involontaire et confiant, c‟était là Josiane. Barkilphedro était pour elle à peu près une chose. On l‟eût bien étonnée si on lui eût dit que Barkilphedro, cela existait. Elle allait, venait et riait devant cet homme qui la contemplait obliquement. 14

Barkilphedro é um irlandês que fora criado pelo duque de York. Ele tentara ser homem de igreja, religioso, mas fracassara. Contudo, ele ganha status dentro da corte por ser um grande alcoviteiro para a rainha, para Josiane e lorde David, após Jacques II ter perdido o poder. Assim ele se insere entre os aristocratas. Por não ser naturalmente deste grupo social, tem desejo de vingança por tudo que os outros são e ele não é. Seu alvo será a duquesa Josiane, de quem deseja vingar-se já que ela o despreza por um lado e por outro, lhe tem confiança.

Ele é um personagem também complexo e importante nas intrigas da trama. É por meio dele que a grande revelação da história é feita: a descoberta da verdadeira

13 HUGO, Victor Hugo. Op. Cit.p. 503. Tradução p.279: “Que idéia é essa de pedir um emprêgo? Tu não

serves para nada. Por isso mesmo. Josiane desatou a rir. Ŕ das funções para que não serves, qual é a que desejas? Ŕ A de abrir garrafas no oceano. Josiane redobrou de riso.”

14 HUGO, Victor, Op. Cit. p.514. Tradução pp.301-02: “Josiane tinha a plenitude de segurança que provém

do orgulho ignorante composto do desprezo de tudo. A faculdade feminina de desdenhar é extraordinária. Josiane era a personificação do desdém inconsciente, involuntário e repleto de confiança. Barkilphedro era para ela, pouco mais ou menos, uma coisa. Causar-lhe-iam desusado pasmo se lhe dissessem que Barkilphedro existia. Josiane andava de um lado para outro, ria diante daquele homem que a contemplava obliquamente.”

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19 identidade de Gwynplaine, como lorde herdeiro de Clancharlie.

Trata-se de um personagem que surpreende o leitor, pois sempre possui cartas na manga, artimanhas para planejar e atingir seus intentos. Os demais personagens não suspeitam de sua maldade e não imaginam o que ele é capaz de fazer para conseguir aquilo que deseja. Barkilphedro tem uma riqueza: ser malicioso. A maldade para ele é uma fonte de opulência. Seu poder provém de seu mau caráter.

Este personagem não pratica maldades explicitamente. É um tipo de ser humano que nos faz refletir sobre o julgamento que podemos proceder em relação às pessoas, pois existem maldades que as aparências escondem. Nem sempre o que se mostra bom, de fato o é. As solicitudes de Barkilphedro visavam a realização de sua vingança. Barkilphedro era discreto, secreto, concreto. Guardava tudo em si e aprofundava o próprio ódio” 15

, além de ser invejoso :

“La cour abonde en impertinents, en désœuvrés, en riches fainéants affamés de commérages, en chercheurs d‟aiguilles dans les bottes de foin, en faiseurs de misères, en

moqueurs moqués, en niais spirituels, qui ont besoin de la conversation d‟un envieux.” 16

A face de Barkilphedro sorria, mas seu interior odiava, pois na verdade, por trás de seus obséquios e presteza, não passava de um homem risonho, hipócrita e mal. “Il grelottait content, dans l‟espoir du froid d‟autrui. Être méchant, c‟est une opulance” 17

. Por rir e fazer rir, Barkilphedro pode ser considerado como uma espécie de bufão. Um bufão e também um homem mau e vingativo que fazia rir e ria das maldades cometidas, dos sofrimentos que provocava. Seu verdadeiro riso, que “escondia” dos reis e nobres, poderia ser considerado, portanto, como um riso de bufonaria. Ele sorria na superfície, nas vistas de todos e por trás, escarnecia-os. Seu escárnio era diabólico. Seu riso era de um diabo-bufão.

Segundo Propp, aquele que é feito de bobo é odioso ao povo pela posição social que ocupa. O que, na Literatura pode ser comprovado através do uso dos bufãos pelos românticos. O narrador de L’Homme qui rit assim caracteriza Barkilphedro :

“ Il était aimé de ceux qu‟il amusait et haï des autres; mais il se

15 HUGO, Victor. O homem que ri, 1935 Ŕ Do original: p.289 p.508: ““Barkilphedro était discret, secret,

concret. Il gardait tout, et se creusait de sa haine”. 16

HUGO, Victor. Op. Cit. p. 508. Tradução p. 289 : “A corte abunda em atrevidos, em ociosos, em ricos, vadios e famintos de mexericos, em indivíduos que passam a vida a procurar agulhas em palheiros, em produtores de misérias, em escarnecedores escarnecidos, e em néscios que necessitam da conversação de um invejoso.”

17

(20)

20 sentait dédaigné par ceux qui le haïssaient, et méprisé par ceux

qui l‟aimait. Il se contentait.”18

O povo constitui-se em personagem, fato recorrente em Victor Hugo, que destaca esta parte da sociedade em suas obras, contrapondo-a com a classe detentora de poder, a quem tece suas críticas de cunho político e social. A trama de L’Homme qui rit também funciona como um dispositivo do autor para “acordar” o povo de sua “cegueira”, metaforizada na personagem Dea, revelando a tragédia que é a vida da população, cheia de desgraças, injustiças e desfavorecimentos.

Baudelaire diz que o cômico está naquele que ri e não no objeto de que se ri. Bergson afirma que “rimos todas as vezes que nossa atenção é desviada para o fìsico de uma pessoa, quando o que estava em questão era o moral” 19

. Pode-se dizer que isso acontecia com o povo ao rir de Gwynplaine. Ao rir dele, o povo ria de si mesmo.

Os comprachicos eram uma filiação nômade que tinha por finalidade fazer o comércio de crianças para serem transformadas em monstros. Os comprachicos transformavam a vida das crianças em calvário, sem que elas tivessem qualquer poder de decisão ou escolhas sobre suas vidas. Impunham a elas sofrimento e escravidão, aprisionando-as no mundo de proibições e rejeições que teriam ao longo da vida, devido a condição monstruosa esculpida em seus corpos. Suas vítimas são então proibidas de gozarem a vida como pessoas “normais”.

Os comprachicos são personagens secundários importantes, uma vez que é com eles que se dá a execução da cirurgia que deforma o rosto de Gwynplaine. A ordem real é posta em prática pela ação destes malfeitores, cuja presença no romance vem acentuar crueldade do poder tirânico e aquilo que um ser humano é capaz de fazer em prol de seu próprio benefício e seus interesses. Durante a fuga da Inglaterra, após ultrapassarem obstáculos e dificuldades da viagem, alguns homens do bando de comprachicos, sentindo-se salvos, estavam brutalmente alegres:

“ On se sauvait, on s‟échapait, on était brutalement gai. Un riait, l‟autre chantait. Ce rire était sec, mais libre; ce chant était bas, mais insouciant. ”20

18

HUGO, Victor. Op.Cit. p.508 Tradução p.288: “Aqueles a quem Barkilphedro divertia eram-lhe afeiçoados; o s demais odiavam-no; mas ele sentia-se desdenhado pelos que o odiavam e desprezado pelos que lhe tinham afeição.Continha-se porém.”

19

BERGSON, Henri. O riso. p. 85

20 HUGO, Victor Hugo. Op. Cit. p. 402. Tradução p. 98: “ Safavam-se escapavam-se, iam brutalmente

(21)

21 Em outra passagem, depreende-se que :

“Les fugitifs, ravis, riaient.”21

Este riso dos fugitivos significaria, por um lado, o seu contentamento, mas, por outro, sinalizaria a morte iminente. Em Victor Hugo o riso é também anunciador de morte. Outros risos proviram do chefe do grupo:

“Le patron de la barque, qui tenait la barre, éclata de rire”.22 “Pendant qu‟on l‟attachait, il riait. Il cria à la mer. ”23

Os risos do chefe significariam o prenúncio e a revelação do destino que lhes aguardava: a morte. Ele riria por prever o fim trágico que a urca teria: o naufrágio.

Outra associação de riso e morte que existe na obra pode ser observada com os risos do personagem Hardquanonne. Na prisão, face a face com sua “vìtima-paciente”, Hardquannnone reconhece o jovem homem que ri e o amaldiçoa para sempre:

“Et, terrible, il éclata de rire. - C‟est lui. répeta-t-il.”24 “Maintenant, ris à jamais”. 25

Primeiramente, Hardquanonne vê, reconhece Gwynplaine e dá uma gargalhada mórbida de prazer por ver que sua “obra de arte” permanece intacta. Em seguida, ele desata a rir, num riso que se assemelha a um soluço. Em seguida, falece. O médico que os acompanhava diagnostica o óbito:

“Il est mort. Et ajouta: Il a ri, cela l‟a tué”26

21

HUGO, Victor Hugo. Op. Cit. p. 416 Tradução p. 122: “ Os fugitivos, deveras encantados, não poupavam o riso.”

22

HUGO, Victor Hugo. Op. Cit. p.421. Tradução p. 131:”O patrão do barco, que estava no leem, desatou a rir.”

23

HUGO, Victor Hugo. Op. Cit. p. 423.Tradução p. 135: “e quando amarravam ria-se e gritava dirigindo-se ao mar. “

24 HUGO, Victor Hugo. Op. Cit. p.632. Tradução p.526: “E, medonho, desatou a rir, repetindo: - É ele! 25 HUGO, Victor. Op. Cit.p. 639. Tradução p.535:-Agora ri-te eternamente.”

26

HUGO, Victor. Op. Cit.p.640. Tradução p. 537: “- Está morto. E acrescentou: - Riu-se, e o riso matou-o.

(22)

22 É através dos risos dos comprachicos e de Hardquanonne que constatamos a existência de uma relação entre o riso e a morte. Que significação teria esse riso solto à beira da morte? O quê se pode perceber com esse riso do comprachico Hardquanonne? A relação ente morte e riso significaria o caráter de castigo que o riso tem contra os erros cometidos, como propõem alguns teóricos como Bergson. A morte pelo riso seria usada por Victor Hugo para castigar aquele que praticou maldades, sendo merecedor, portanto, de uma punição à altura do seu crime de imprimir o riso eterno no rosto humano.

3.6 Linguagem

A linguagem utilizada por Hugo é complexa com grande número de metáforas e com a predominância do discurso direto. As descrições são sempre longas e bem detalhadas. Pode-se notar certo estilo marcado por antíteses.

Existem diversas utilizações de frases inteiras, expressões ou palavras em outras línguas como a inglesa, a espanhola e a latina, em ocorrências quantitativas equivalentes. Seguem alguns exemplos, respectivamente em inglês, espanhol, latim.

“Il y avait le She romps Club. ” 27

“- Que lenguas habla ? - Todas.

- Que cosas sabe ? - Qual païs ? - Ningun, y todos. - Qual Dios ? - Dios. - Como le llamas ? - El Tonto.

- Como dices que llamas ? ” 28

“Bucca fissa usque ad aures, genzivis denudatis, nasoque murdridato, masca eris, et ridebis semper.”29

“ Ar nathair ata ar neamh. ”30

27

HUGO, Victor. Op. Cit. p,493. Não há tradução das frases referentes às notas 28 a 31 para língua portuguesa na tradução utilizada de 1935. As mesmas, quando traduzidas, estão na língua francesa. Acrescentamos ainda que não é relevante ou adequado que se traduzam alguns trechos e outros não, visto que não é o conteúdo da frase o ponto em questão, e sim sua forma; além disso, não traduziríamos ia aqui a frase galês, por exemplo, por desconhecimento de tal língua. Chamamos a atenção apenas para que se perceba, com os exemplos dados, o uso de outros idiomas pelo autor.

28

HUGO, Victor. Op. Cit. p.406

29

HUGO, Victor. Op. Cit. p. 470

30

(23)

23 A utilização de outros idiomas além do francês vai aparecer para intitular alguns capítulos, para lugares, pessoas, etc. Há nomes construídos a partir de morfemas de idiomas diferentes. O próprio nome Gwynplaine e o nome Barkilphedro são motivos de pesquisa e discussões pois não se sabe ao certo suas origens. Especula-se sobre as motivações a partir das quais Hugo teria criado tais nomes e os empregado neste romance.

A linguagem utilizada por Hugo também é marcada por um vocabulário concernente ao fenômeno do risível. Percebe-se que há um jogo de risos permeando a narrativa. Como afirma Lukács (2000), o romance

por assim dizer, é o único gênero que, ao narrar uma história, diz simultaneamente também como o faz. Passo a passo, a sutura de sentido que une fragmentos num todo coeso é ela mesma ingrediente ficcional. A marcha e o procedimento do romance põem deliberadamente a descoberto a própria dinâmica artística como o centro da narrativa. 31

Portanto, observar os vocábulos que se referem ao riso na obra permite-nos refletir um pouco mais sobre o motivo do riso na construção literária de tal romance. O riso na obra pode ser lido como um tipo de linguagem a ser decodificada, e que mostrará uma faceta do pensamento do autor, tanto sobre as intenções da escritura quanto sobre o próprio ato de rir.

Segundo Friedmann (2002), a leitura da obra de Hugo sob a ótica do riso mostra-nos uma perspectiva que destaca uma filosofia, uma moral, uma estética, de um estado de espírito que, com suas discordâncias e contradições, concerne à totalidade da consciência humana. Ou seja, ler a obra do ponto de vista do riso seria ampliar os horizontes sobre as ações e pensamentos humanos, haja vista o riso nos permite ir além do que está posto.

Através do fenômeno do riso o leitor desvela o que está escamoteado e as intenções dos indivíduos e grupos sociais e sob seus papéis dentro da trama. O riso permite então refletir sobre o homem.

Segundo o pesquisador, o riso de Hugo diz não, e freqüentemente ele faz mal. Mas é também o riso daquilo que sabe, talvez não menos, daquilo que toda lucidez, confessa, às vezes, não saber32. Friedmann (2002) cita um trecho de poema de Hugo:

31

LUKÁCS,Geroge. Op. Cit. p. 222

32

(24)

24 « Vas, chante ce qu‟on n‟ose pas écrire.

Ris, et qu‟on devine, ô chanson, Derrière le masque du rire

Le visage de la raison. (Chansons de rues et des bois, Seuil II, 236) »33

Lembra-se que estes versos citados acima possuem semelhança com os versos cantados por Dea na peça de Ursus, Cahos Vaincu. Neste texto teatral, a personagem canta:

“Reza, chora. Do verbo nasce a razão.

Ŕ O canto cria a luz. Noite, vá embora! A aurora canta hallali.

É preciso ir ao céu, - E ri, tu que choras.

Quebra o jugo (dominação-escravidão)! - Deixa, monstro, tua negra carapaça.

Oh! Vens! Ama! Ŕ Tu és alma, - Eu sou coração. ”34

Como exemplo do que afirma Friedmann, temos o personagem central Gwynplaine, que é um dos bufãos criado por Hugo. O bufão é um ser horrendo, de feiúra repugnante. O bufão de corte é um fato misto. Eram seres que diziam o que desejavam sem qualquer tipo de censura. E o que diziam, era considerado como verdade. Essa verdade lúcida dos bufões trazia à luz toda uma afronta ao poder. Eram porta-vozes da ironia que traz outros lados da(s) realidade(s), ou seja, sempre os dois lados de uma “moeda”, “um feixe de paradoxos”35

.

A eles era dado o direito de falar o que desejassem criticar e rir de quem quer que fosse, principalmente de seus donos, os reis. Faziam gargalhar o tédio real por meio de suas deformidades físicas, que provocavam riso.

Podemos ver que estes versos do poema de Hugo, citados por Friedemann assemelham-se ao papel denunciador e portador de verdade, assim como o ricto de Gwynplaine. Este traz uma verdade que, por vezes, desconhece o porquê de seu

et souvant, il fait mal... mais c‟est aussi le rire de celui qui sait, et peut-être pas moins, de celui qui en toute lucidité, avoue parfois qu‟il ne sait pas.

33

HUGO, apud Friedmann 2002. p.191. Tradução livre: Vá, cante isto que não se ousa escrever. Ria e que se adivinhe, oh canção, por trás da máscara do riso, a face da razão.

34

HUGO, Victor. Op. Cit.p. 552-53: “Ora, llora! De palavra Nace razon, Da luz El son. Noche quita te de alli. El Alba canta hallali. Es menester a cielos ir. Y tu que llorabas reir. Gebra barzon! Dexa, monstro, A tu

negro Caparazon. O vem! Ama! Eres alma. Soy corazon.

35

(25)

25 sofrimento. Em seu discurso na câmara dos lordes, anuncia a todos o que até e então não se havia pronunciado: a tirania aristocrática que oprimia a população. Gwynplaine, portanto, como diz Friedemann, por trás de seu ricto medonho e escancarado, trouxe a razão em defesa do povo.

4. O RISO NA CONSTRUÇÃO POETICA DE L’HOMME QUI RIT

Em nossa pesquisa “Os diferentes risos na obra “L’Homme qui rit” de Victor Hugo:

um estudo do discurso crítico presente na escritura”. foi estudada especificamente a

forma como ocorria a manifestação do riso na obra, enquanto expressão de escárnio, ironia, humor, humor negro, sátira e grotesco. No atual trabalho, utilizaremos alguns conceitos lá mencionados, quando formos tratar, a seguir, de analisar o escárnio dos aristocratas, a zombaria do povo e o ricto de Gwynplaine.

Pelas pesquisas realizadas, compreendemos que escárnio é designativo de zombaria, desprezo, desdém, mofa ou gozação, o que ofende e expõe ao ridículo. Para Houaiss (2002), escárnio significa o que é feito ou dito com intenção de provocar riso ou hilariedade acerca de alguém ou algo e também uma atitude ou manifestação ostensiva de desdém, de menosprezo, por vezes indignada.

O escárnio ocorre quando objetiva-se ridicularizar e desprezar. O ridículo, aqui, ultrapassa sua conotação daquilo que é motivo de gozação e riso, adquirindo ainda valoração de insignificância. Da mesma forma Hugo utiliza o riso com esta significação. Em sua obra ora estudada, os personagens ridicularizados são marginalizados, tratados por vezes como animais ou objetos, como acontecia nos clubes criados pela aristocracia inglesa ou mesmo com Gwynplaine, o saltimbanco mísero.

Já a zombaria significa o ato de ridicularizar, de fazer chacota de alguma pessoa. O riso de zombaria, para Propp (1992), é muito recorrente na literatura. Ele diz que a zombaria é o tipo de riso mais ligado à comicidade. Esta é associada ao desnudamento de defeitos manifestos ou secretos daquilo ou daquele que suscita o riso. O riso de

(26)

26 zombaria nasce do desmascaramento de defeitos da vida interior e espiritual do homem. Estes se referem ao âmbito dos princípios morais, dos impulsos da vontade e das operações intelectuais. Os defeitos estão escondidos e precisam ser desmascarados.

O uso feito por Hugo também segue esta concepção de Propp, uma vez que podemos observar que existe uma relevância significativa de alguns risos presente no texto que nos mostram o desmascaramento de defeitos morais dos personagens.

Podemos perceber, então, que Hugo expõe por meio do riso e da zombaria a vilania dos nobres, revelando assim seus sentimentos vis e seu caráter maldoso, embora o riso direcionado ao personagem central ocorra por se fazer zombaria de sua condição física.

Concluímos também na pesquisa anterior, que o riso não simboliza apenas contentamento. Muito pelo contrário. Não são alegrias que encontramos em L’Homme que

rit. O discurso risível que permeia a escritura reflete as críticas de Hugo, sobretudo em

relação à aristocracia inglesa do século XVII, que atuava com tirania, oprimindo a população.

Com a expressão do riso, Hugo revela a face do povo “desfigurado” pelo sofrimento, que vivia em situação marginal e miserável. O ricto esculpido na face de Gwynplaine pode ser compreendido como metáfora do sofrimento popular.

O ricto é um tipo de riso que se caracteriza por uma grande abertura na boca, uma contração labial ou facial que dá ao rosto o aspecto de riso forçado, como o ricto imprimindo no rosto de Gwynplaine. De acordo com Friedemann (1998), “le motif du rictus courant “ jusqu‟aux oreilles”, comme dit Baudelaire, apparaît également chez d‟autres écrivains au dix-neuvième siècle”36

. Como exemplo, ele cita os personagens Melmoth de Maturin, Maldoror de Lautréament e Aegus de Edgar Poe.

Retomando as teorias sobre o riso, evidenciamos que no estudo de Henri Bergson (1983) sobre o riso, a ação de rir de alguém é entendida como o meio pelo qual um ou mais indivíduos punirão o outro, visando que ele corrija seu comportamento distraído (e por isso, risível), que o leva a agir de maneira não aceita socialmente. Segundo Bergson, são risíveis os atos ou gestos, as palavras, as situações e o próprio caráter do homem. O riso tem uma função e um significado social, visto que se realiza pelos homens e na sociedade.

Constatamos, então, que na obra estudada há dois grandes tipos de riso: primeiramente, o riso de escárnio dos aristocratas contra o povo. Os nobres riem e

36

FRIEDEMANN, Jöe, Rictus romantiques.2002, p.139.Tradução livre: O motivo do riso que vai até as orelhas, como disse Baudelaire, aparece igualmente em obras de outros escritores do século XIX.

(27)

27 escarnecem do povo mísero, das mulheres, dos negros e das condições sociais inferiores às suas. O segundo riso é o riso de zombaria e de catarse do povo, que funciona, momentaneamente, como esquecimento da realidade para a populaça, quando vêm assistir Gwynplaine em sua representação teatral.

4.1 O escárnio dos aristocratas e a zombaria do povo

A classe aristocrata no romance tinha por diversão e prazer de prejudicar e cometer atrocidades contra os menos favorecidos. Os lordes, por exemplo, reuniam-se em clubes nos quais praticavam delitos e riam do que lá se passava, demonstrando um lado sádico e perverso:

Sous Jacques II, un jeune lord millionaire qui avait mis le feu la nuit à une chaumière fit rire Londres aux éclats et fut proclamé Roi du fun. Les pauvres diables de la chaumière s‟étaient sauvés en chemise. Les membres du Fun Club, tous de la plus haute aristocracie, couraient Londres à l‟heure où les bourgeois dorment, arrachaient les gonds des volets, coupaient les tuyaux de pompes, défonçaient les citernes, décrochaient les enseignes, saccageaient les cultures, éteignaient les réverbères, sciaient les poutres d‟étai des maisons, cassaient les carreaux des fenêtres, surtout dans les quartiers indigents. C‟étaient les riches qui faisaient cela aux misérables.37

Esses risos diante de tais situações eram maldosos e grotescos, pois além de escarnecer a mísera população, ainda infligia-lhes muitos sofrimentos, fossem eles agressões de ordem física ou moral:

37

HUGO, Victor. Op.Cit. p. 493. Tradução pp.261-62: “No tempo de Jacques II, houve um lorde jovem milionário, que de noite incendiou uma cabana, e que fazendo isso rir muito em Londres, foi proclamado “Rei do fun”. A pobre gente da cabana salvara-se em camisa. Os membros do Fun Club, todos da mais alta aristocracia, percorriam Londres à hora em que os burgueses dormem, arrancavam os gonzos dos postigos, cortavam os tubos das bombas, arrombavam as cisternas, dependuravam as tabuletas, serravam as vigas que escoravam as casas, e quebravam os vidros das janelas, principalmente nos bairros indigentes. Eram os ricos que faziam isto aos mìseros.”

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28 Quoique beau, il était du Club des Laids. Ce club était dédié à la

difformité. On y prenait l‟engagement de se battre, non pour une belle femme, mais pour un homme laid.38

Le plus distingué des clubs était présidé par un empereur qui portait un croissant sur le front et qui s‟appelait « le grand Mohock ». Le mohock dépassait le fun, faire le mal pour le mal, tel était le programme. Le Mohock Club avait ce but gandiose : nuire.39

Já o riso do povo era suscitado por Gwynplaine: fosse em cena, como ator, ou estampado no rosto do simples “cidadão” Gwynplaine, que assustava os outros cidadãos e ao mesmo tempo provocava-lhes o riso. Todos queriam ver o homem que ri. Após sua apresentação, ria-se por toda a parte, ria-se em torno do próprio riso do homem que ri. Todo o povo ria:

le meurt-de-faim rit, le mendiant rit, le forçat rit, la prostituée rit, l‟orphelin, pour gagner sa vie, rit, l‟esclave rit, le soldat rit, le peuple rit ; la societé humaine est faite de telle façon que toutes les perditions, toutes les indigences, toutes les catastrophes, toutes les fièvres, tous les ulcères, toutes les agonies, se résolvent au-dessus du gouffre en une épouvantable grimace de joie. ” 40

O riso popular seria então um riso de estranhamento ao ver a face de Gwynplaine e sua enorme boca com um riso escancarado e estático. Com zombaria, o povo o tornava motivo de chacota e gozação. Riam de seu ricto, de sua feiúra, de sua monstruosidade, de sua desgraça. Ele próprio declara :

“Quand tu entends tout le monde rire, c‟est de moi qu‟on rit, parce que je suis horrible ”41

Ao assistir Gwynplaine em suas apresentações, o povo expressaria, através de seu

38

Victor Hugo. L’Homme qui rit. p. 492. Tradução p. 259: “Apesar de ser belo, pertencia ao clube dos feios. Este clube era dedicado à deformidade. Todos ali aceitavam o compromisso de se bater, não por uma mulher formosa, mas por um homem feio.”

39 HUGO, Victor. Op.Cit. p.494. Tradução p.262: “O mais distinto dos clubes era presidido por um

imperador, que tinha por distintivo um crescente na testa, e que se denominava “grão Mohock”. O Mohock ultrapassava o fim[sic]. O programa era praticar o mal pelo mal. O Mohock Club tinha um fim grandioso Ŕ prejudicar.”

40

HUGO, Victor. Op. Cit. p.759. Tradução p.756: O esfaimado ri, o mendigo ri, o forçado ri, o órfão para ganhar sua vida ri, o escravo ri, o soldado ri; a sociedade humana é formada de tal modo que todas as perdições, todas as indigências, todas as catástrofes, todas as febres, todas as úlceras, todas as agonias se resolvem acima da voragem em espantoso esgar.

41

HUGO, Victor. Op.Cit. p.545. Tradução p. 356: Quando ouve rir a multidão, prossegue Gwynplaine, é de mim que ela se ri, porque sou horrendo.

(29)

29 riso, uma fuga momentânea da realidade, uma espécie de catarse popular, que funcionaria como esquecimento das agruras pelas quais passava.

“Il se trompait. Il pouvait beaucoup pour les malhereux. Il les faisait rire. Et, nous l‟avons dit, faire rire, c‟est faire oublier.”42

Segundo Barreto (2008), o povo se esqueceria, pelo riso catártico, da exploração, do servilismo, da indigência, da fome, da guerra, do desemprego, da ignorância e da ignomínia, que o soterravam.

Baudelaire diz que o cômico está naquele que ri e não no objeto de que se ri. Bergson afirma que “rimos todas às vezes que nossa atenção é desviada para o fìsico de uma pessoa, quando o que estava em questão era o moral” 43

. Pode-se dizer que isso acontecia com o povo ao rir de Gwynplaine. Ao rir dele, o povo ria de si mesmo.

4.2 O ricto e a morte de Gwynplaine

Gwyplaine é escravo de seu próprio riso. Sua máscara exibe um ricto fixo, mas que esconde o enorme desespero e o sofrimento que sente pela violência que lhe foi impingida. Ninguém podia olhá-lo sem rir ou se assustar. Rindo, Gwynplaine fazia rir. Na verdade ele não ria, seu rosto deformado é que ria sem parar. Ele não podia expressar qualquer que fosse o sentimento, pois seu rosto só tinha uma única expressão: o ricto.

O discurso proferido por Gwynplaine na câmara dos lordes tinha por objetivo revelar a todos a opressão sob a qual o povo vivia e, principalmente, mostrar aos aristocratas no que seu abuso de poderes havia transforma do a sociedade inglesa. Nesta ocasião ele revela a todos que o seu riso não é obra da natureza, nem de Deus. E sim o produto da cólera de um rei tirânico, da ganância de poder, da violência e da tortura. Um gigantesco riso feito à força, expressando o ódio e exprimindo a desolação universal:

Ŕ Ce que je viens faire ici? Je viens être terrible. Je suis um monstre, dites-vous. Non, je suis le peuple. Je suis une exception. Non, je suis tout le monde. L‟exception, c‟est vous. Vous êtes la chimère, et je suis la realité. Je suis l‟Homme. Je suis l‟effrayant Homme qui Rit. Qui rit de quoi? De vous. De lui. De tout. Qu‟est-ce que son rire? Votre crime, et son súplice. Ce crime, il vous le jette à la face; ce supplice, il vous le crache au

42

HUGO, Victor. Op.Cit. p. 558. Tradução p.382: Enganava-se; a favor dos desgraçados podia muito: fazia-os rir. E, como dissemfazia-os fazer rir é fazer esquecer.

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