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3.1. UMA CIDADE, UM PROJETO, UM PERSONAGEM

3.1.2. O início do século XX como marco do urbanismo no Brasil

Migrar para a cidade, habitar na urbis, viver no centro urbano. Embora possa parecer um fenômeno recente, emergente no século XIX com a industrialização, na verdade, a vida urbana faz parte da própria evolução histórica da sociedade. O fenômeno da constituição de aglomerados urbanos remonta a idade pré-clássica e clássica, destacando-se grandes experiências no Egito Antigo, na Grécia Antiga. Cabe um destaque especial para a cidade de Roma que já no primeiro século d.C., era uma cidade com mais de um milhão de habitantes, constituindo-se numa das

primeiras metrópoles da história, respeitada como centro de poder e difusor de valores e costumes da época.

Segundo ROSEN (1994), deve-se aos romanos muitos dos métodos e tecnologias produzidas para o desenvolvimento da vida na urbe. A preocupação com diversos aspectos da ocupação do espaço urbano, como o suprimento de água em quantidade e qualidade suficientes, o afastamento dos dejetos, o calçamento das vias, revela que, já naquela época, os romanos reconheciam a necessidade de se construir em lugares salubres e adequá-los com um conjunto de condições indispensáveis à vida saudável.

Datam deste tempo, por exemplo, as grandes obras dos aquedutos que abasteceram Roma por muito tempo e que se difundiram pelas terras ocupadas pelo Império Romano. Um dos poucos registros sobre a experiência romana, o livro De Aquis Urbis Romae (Os aquedutos da cidade de Roma) preparado pelo comissário de água de Roma Sexto Júlio Frontino, descreve o sistema de aquedutos e o suprimento d’água através de canalizações, principalmente, aos banhos públicos e fontes.

Mas esta preocupação não se restringiu ao abastecimento de água. Na Roma antiga já havia a preocupação com a drenagem de pântanos e esgotos. Com os etruscos, os romanos aprenderam a construir sistemas de esgoto com uma rede de canos, sob as ruas, para eliminar a água da superfície e a dos esgotos. O grande esgoto de Roma construído no século VI a.C., a cloaca máxima, servia para drenar o solo encharcado dos pântanos da cidade para o Tevere, rio que atravessava a cidade; mais tarde, foi adaptada para esgoto (SCLIAR, 1987). Muitas das antigas ruas, ruelas e caminhos já possuíam calçamento de pedra, produtos de projetos pensados para atender à necessidade de circulação de mercadorias, animais e meios que transportavam a corte.

Entretanto, cabe destacar que apesar do nível de desenvolvimento urbano alcançado na sociedade e nas cidades romanas, este não era acessível a todos, pois nem sempre era permitido às massas populares usufruírem os benefícios desta infraestrutura.

Mesmo não sendo uma questão recente, a preocupação com a melhoria da vida nas cidades evidenciou-se de modo peculiar a partir da segunda metade do século XIX, em virtude da aceitação e valorização da idéia da existência de “problemas urbanos” passíveis de intervenção. Esta concepção, de acordo com os urbanistas, nasceu a partir da necessidade do enfrentamento da problemática que emergia nas grandes cidades do mundo industrial. Contribuíram para a constituição dos primórdios do urbanismo os reformadores de moradias, os primeiros urbanistas, além dos filantropos e assistentes sociais, especialmente, com o intuito de mudar a cidade e a sociedade, constituindo uma nova ordem social (TOPALOV, 1996).

No Brasil não foi diferente. O processo de urbanização marcado pelas precárias condições de vida nas cidades, ao mesmo tempo em que se colocou como uma realidade imperativa de intervenção pela ressonância negativa que os ecos da precariedade alcançavam no mundo externo, marcou a história da sociedade brasileira como um dos processos de maior expressão do pensamento racista e segregador e a postura iníqua e elitista da classe política brasileira. Internamente, a elite política buscava produzir planos de remodelação, saneamento e embelezamento da cidade, apoiada por intelectuais oriundos da medicina e do urbanismo/engenharia, que se aliaram com a finalidade de transformar a imagem da sociedade brasileira, mudando a fisionomia da cidade.

Contudo, o processo de transformação da imagem da cidade se desenvolveu marcado pelo enredo já escrito e pactuado entre as lideranças do mundo político e econômico. As regras impostas para a execução da ópera – Rio moderno –, mais tarde imortalizada através da música “Cidade Maravilhosa”, expressaram claramente o pensamento hegemônico da época, uma cidade moderna, bela e limpa,

à altura das grandes capitais como Paris, Londres e Buenos Aires, e uma sociedade culta, educada e refinada nos costumes e comportamento à semelhança da burguesia européia.

Assim, é que no início do século XX, criadas as condições políticas e econômicas necessárias, entrou em cena o grande projeto de obras da República: o Plano de Melhoramentos, Saneamento e Embelezamento do Rio de Janeiro. Este plano, construído como um dos pilares do arcabouço político concebido pelos republicanos, inseriu-se num projeto cujos objetivos iam muito além das transformações arquitetônicas da capital federal, superavam os limites do campo das obras, buscando intervir na própria sociedade em diferentes dimensões: econômica, ética, social e política. Assim, como características singulares deste período podemos salientar a intenção de reduzir um problema de âmbito nacional, pois se repetia em todos os centros urbanos do país, ao espaço da “sala de visitas”, a capital federal, além de intervir diretamente na dinâmica social.

Portanto, ao revermos a história do processo de urbanização brasileira no início do século XX, percebemos as marcas das experiências conduzidas na confluência da saúde e do urbanismo como campos de conhecimento e estratégias de intervenção favoráveis aos objetivos e desejos da nova elite republicana. Como marco fundamental deste processo, o projeto político do governo republicano, que empreendeu esforços para colocar o país no cenário internacional do emergente capitalismo.

Como já mencionado anteriormente, as condições impositivas para o desencadeamento do processo de modernização do Rio foram construídas no governo de Campos Salles, antecessor de Rodrigues Alves, que promoveu um verdadeiro saneamento financeiro repercutindo numa relativa estabilização dos preços e conseqüente melhoria das condições de vida da população, ao mesmo tempo em que conseguiu sanear as contas do próprio governo. Deste modo, Campos Salles proporcionou ao seu sucessor as condições econômicas favoráveis à

implementação do projeto político reformista, uma vez que já estavam dadas as condições políticas e sociais básicas para desencadear tal processo.

A reforma urbana do Rio de Janeiro, como projeto político gestado desde a emergência da República brasileira no bojo do processo de expansão capitalista no mundo, se consolidou definitivamente ao assumir o governo o Presidente Rodrigues Alves, em 1902. Durante os quatro anos de seu mandato, Rodrigues Alves e seu grupo de trabalho perseguiram obstinadamente a conclusão de seu projeto. A composição desta “grandiosa ópera” previu pelo menos três grandes atos, encenados quase que simultaneamente: as obras de modernização do porto, a reforma urbana e a construção da Avenida Central, além do plano de saneamento para libertar a cidade das epidemias. Para a regência, como diz DEL BRENNA (1985), várias personalidades marcantes da elite foram convocadas, dentre as quais se destacaram o engenheiro Lauro Muller, o Prefeito Pereira Passos, o engenheiro Paulo de Frontin e o Diretor de Saúde Pública Oswaldo Cruz.

Lauro Muller protagonizou o longo e complicado processo de modernização do porto, cujas obras foram concluídas mais de dez anos depois de seu início. A Pereira Passos coube o papel de reformador da capital federal, aquele que deveria transformar a fisionomia da cidade através das obras de remodelação viária, saneamento e embelezamento de sua área central. Paulo de Frontin, presidente do Clube de Engenharia, foi nomeado Chefe da Comissão Construtora da Avenida Central, a espinha dorsal de toda reforma urbana da capital federal. Já Oswaldo Cruz, no conjunto do projeto político saneador, cumpriu a função de exterminador das epidemias, para as quais desenvolveu estratégias específicas, muitas delas levadas a cabo por meios coercitivos e até policiais.

Ao olhar da sociedade, tal projeto de reformas aparentava ter por objetivo o controle das epidemias de moléstias infecciosas que vinham dizimando muita gente, inclusive afetando a economia e prejudicando a imagem do país no exterior. Porém, a realidade era outra. O verdadeiro pano de fundo, o real cenário que moveu o

governo em direção à reforma urbana do Rio de Janeiro foi a necessidade de criar e “exibir ao mundo desenvolvido a imagem de uma nação próspera, civilizada, ordeira e dotada de instituições e de um Estado consolidado e estável” (SEVCENKO, 1984, p.60). Cabe salientar, portanto, que na ótica de seus protagonistas, tais propósitos não eram incompatíveis, ao contrário, se complementavam.

Em 15 de novembro de 1902, ao assumir a Presidência da República, Rodrigues Alves reafirmou em seu discurso inaugural a intencionalidade de priorizar as obras de saneamento e melhoramentos do Rio de Janeiro declarando:

Aos interesses da immigração dos quaes depende em máxima parte o nosso desenvolvimento econômico, prende-se a necessidade de saneamento desta capital, trabalho sem duvida dificil porque se filia a um conjunto de providencias, a maior parte das quaes de execução dispendiosa e demorada. É preciso que os poderes da República, a quem incumbe tão importante serviço, façam dele a sua mais seria e constante preoccupação, aproveitando todos os elementos de que puderem dispor, para que se inicie o caminho. A Capital da República não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo (DEL BRENNA, 1985,

p.19).

Nos primeiros 45 dias de seu mandato, o Presidente preparou o roteiro legal para a nomeação do Prefeito da Capital Federal governar o município com plenos poderes e conduzir as obras de melhoramento com “mão de ferro”. O Conselho Municipal foi fechado e suas funções foram suspensas por seis meses a partir da Lei nº 939, que reorganizou o Distrito Federal e em seu texto diz que “durante esse período o Prefeito administrará e governará o Districto Federal com plenitude de poderes, excepto o de crear e elevar impostos” (ibidem, 1985, p.20).

No dia seguinte à publicação desta Lei, o engenheiro Francisco Pereira Passos subiu ao palco como prefeito do Rio de Janeiro, tomando posse, prestigiado pelo Clube de Engenharia, tendo sua indicação uma repercussão positiva na imprensa, que ressaltou suas qualidades de administrador técnico sem ligações a interesses

políticos. Assim, Pereira Passos iniciou sua administração com “carta branca” do governo, sustentação da categoria profissional e apoio de parte da imprensa.

Entretanto, antes de conhecermos o roteiro produzido por Passos para a ópera que regeria durante sua administração na capital federal, é importante desvendarmos um pouco esse personagem, sua origem familiar, sua história acadêmica. Mas, sem dúvida, será em sua trajetória profissional que encontraremos os aspectos mais relevantes, bem como as bases fundamentais que compuseram o personagem Pereira Passos, o Haussmann tropical2.

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