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3.1. UMA CIDADE, UM PROJETO, UM PERSONAGEM

3.1.3. PEREIRA PASSOS: um personagem, uma trajetória

“O Doutor Passos é um homem que não dorme. Não dorme, em se

tratando de actividade a empregar. Claro está que S. Ex. com toda sua energia e outras muitas qualidades boas que o distinguem não está livre das necessidades phísicas a que estão infelizmente jungidos todos os homens, mesmo os que não tem qualidade alguma. Assim S. Ex. dorme como qualquer munícipe.

Hontem fatigado de muito trabalho S. Ex. adormeceu ao zum-zum confuso de vozes que vinham de salas próximas.

Adormeceu. Mal, porém as pálpebras lhe cerraram, S. Ex. começou a sonhar. A cidade, velha e imunda de hoje havia desapparecido.

Em seu logar uma lindíssima cidade moderna se estendia, cheia de extraordinários palácios, de enormes avenidas, de verdejantes parques. De repente porém de toda parte surgiram pesados carrinhos de mão, num grande barulho de ferro sobre a calçada, rigorosamente empurrados por homens athléticos. E os cem, os duzentos, os quinhentos mil carrinhos avançaram em sua direção desordenadamente. Quis fugir, não pode, escorregou e caiu. E quando se quis erguer, não o conseguiu: rodas ligeiras o apanharam pelo braço e passaram-lhe por cima do tronco.

Que dor. Ui! Ui! Com a dor despertou Ora bolas!

Tinha sido isto: recostara-se de mau jeito comprimindo um braço. S. Ex. esfregou a manga da sobrecasaca e fechou os olhos de novo. Tornou a sonhar.

Desta vez o Rio de Janeiro, transformado em uma capital superior a Buenos Aires, estava em festa: ia ser inaugurada a estátua de seu Haussmann. Mas de súbito, algumas centenas, depois milhares de vaccas ferozes com campainhas ao pescoço sacudindo terrivelmente as adadas e retorcidas pontas appareceram enchendo as ruas...” (DEL BRENNA, 1985).3

A sátira acima transcrita retrata um pouco do contexto em que se desenvolveu, fortaleceu, polemizou e enfraqueceu o projeto gestado por Pereira Passos no Plano

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do governo Rodrigues Alves. Tal projeto traduzia o programa político da elite republicana, atendendo aos interesses do capitalismo emergente, mas ao mesmo tempo foi marcado pela forte personalidade de seu mentor. À sua competência técnica e sólida formação profissional agregaram-se a sua tenacidade, perspicácia política e firmeza de propósitos. Porém, uma das marcas indeléveis de seu mandato sobressaiu-se através do forte toque autoritário, com a assunção de um papel muito além das funções de prefeito da cidade, personificando o personagem “ditador do Rio de Janeiro” no teatro da República.

É importante resgatar, mesmo que brevemente, a história de vida deste personagem tão contraditório na história social do Rio de Janeiro, buscar conhecer um pouco de sua origem familiar, de sua formação básica e profissional, bem como sua entrada na vida política e sua experiência no exterior.

Os primeiros passos de Francisco Pereira Passos foram numa grande fazenda de café no interior da província do Rio de Janeiro, onde nasceu em 29 de agosto de 1836 e viveu até completar 14 anos. Seu berço, uma família abastada e aristocrática; seu pai, Antônio Pereira Passos, Barão de Mangaratiba, um proprietário de muitas fazendas de café na região. Portanto, suas raízes são, sem dúvida, a elite cafeeira (BENCHIMOL, 1990).

Realizou seus primeiros estudos na própria fazenda. Em 1850, a família mandou-o à Corte para estudar no Colégio S. Pedro de Alcântara, onde completou seus estudos preparatórios para ingressar na Escola Militar em Março de 1852. Graduou-se como Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas em dezembro de 1856, o que lhe concedeu o direito de obter o diploma de engenheiro civil.

Sua relação com o universo urbano, o mundo das cidades, intensificou-se através da atividade diplomática que desenvolveu entre 1857 e 1860 em Paris. Lá, passou a freqüentar a École de Ponts et Chaussées, onde conviveu com engenheiros e se dedicou aos estudos de arquitetura, hidráulica, construção de portos, canais e

estradas de ferro, direito administrativo e economia política. Paralelamente ao conhecimento teórico, buscou acompanhar obras importantes que se desenvolviam na França, em especial, as grandes obras de remodelação da capital francesa empreendidas por Georges Eugéne Haussmann, cuja influência permanecerá ao longo da vida profissional e política de Pereira Passos. Não é sem razão que recebeu a alcunha de Haussmann tropical por parte de BENCHIMOL (1990).

Tais experiências influenciaram sobremaneira a vida profissional de Passos ao retornar ao Brasil. Por mais de uma década seus trabalhos estiveram ligados às obras ferroviárias, um setor em plena expansão em vários estados brasileiros, como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Dentre as estradas de ferro projetadas e construídas por ele estão a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (São Paulo Railway), a Estrada de Ferro Bahia-São Francisco. Uma de suas inovações foi ter introduzido no Brasil o sistema de “cremalheira”, utilizado posteriormente em trechos ferroviários íngremes como da ferrovia até Petrópolis e da ferrovia Paranaguá-Curitiba na Serra da Graciosa.

Em 1874, após ter retornado de outra estada na Europa, foi nomeado engenheiro do Ministério do Império, sendo responsável por todas as obras de engenharia no país, além de integrar a Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, como já comentado anteriormente, até 1876. Os próximos quatro anos foram marcados por sua direção na mais importante ferrovia do país, a Estrada de Ferro Dom Pedro II, desenvolvendo obras de repercussão para a vida da capital, mas, principalmente, para o sistema de transporte de mercadorias. Estas obras assinadas por Pereira Passos já esboçavam aspectos do discurso higienista dominante, que mais tarde se manifestariam em sua obra.

Mais uma vez na França. Corria o ano de 1880. Estudou na Sorbonne e no Colège de France. Visitou fábricas, companhias ferroviárias e de navegação, usinas siderúrgicas e obras públicas. Porém, cabe ressaltar que, além de estender suas visitas fora dos limites da França, conhecendo cidades da Bélgica e da Holanda,

Pereira Passos esteve em companhia do Conselheiro Belisário de Sousa, que mais tarde tornar-se-ia um aliado no Congresso para aprovar os projetos de seu interesse.

No retorno ao Brasil, após ter iniciado a construção da ferrovia Paranaguá- Curitiba, projetou e construiu a primeira estrada de ferro turística da Corte, a Estrada de Ferro do Corcovado, inaugurada em 1892. Logo em seguida, assumiu a direção da Companhia de Carris de São Cristóvão, uma das mais importantes empresas de transportes urbanos da época, onde permaneceu por seis anos. Data deste período seu interesse por um projeto de uma grande avenida no centro do Rio de Janeiro, na época assinado pelo arquiteto italiano Giuseppe Fogliani. Conforme BENCHIMOL (1990), embora tenha conseguido no Congresso a concessão para a construção de tal avenida, Passos não viu este projeto se concretizar. Entretanto, tudo indica que, tais idéias não foram abandonadas, apenas aguardaram o momento mais propício para retornarem em cena.

Sua mentalidade empreendedora mais uma vez manifestou-se. Com base na experiência adquirida nos projetos ferroviários, resolveu fundar uma serraria, que, mais tarde, tornar-se-ia a grande fornecedora de madeira para a construção da maioria dos palácios do Rio de Janeiro da virada do século (ibidem, 1990).

Malas prontas, era hora de partir outra vez. Desta vez, para além de Paris, ultrapassando as fronteiras da França e da Europa, conhecer novos lugares, observar outros projetos e obras. Às vésperas da República, em outubro de 1889, partiu para uma grande turnê pelo mundo que durou dois anos.

Ao regressar, Pereira Passos trabalhou em mais uma obra notória até os dias atuais, os bondes de Santa Teresa. Neles empregou o sistema elétrico por cabos aéreos que acabara de conhecer nos Estados Unidos da América.

Na mesma época, foi mais uma vez requisitado para assumir a direção da Estrada de Ferro D. Pedro II, cargo que ocupou até 1899. Neste período, promoveu

várias obras de melhoramentos e expansão de estações e armazéns. Porém, a marca de sua administração foi a

drástica política de redução de gastos, com a demissão de centenas de funcionários, utilizando métodos qualificados por seus adversários como ilícitos e ditatoriais. ... O decreto que concedeu sua exoneração criticava-o por não haver observado os preceitos que regulavam a contabilidade pública, mas elogiava seu zelo e rigor, mencionando, como um de seus serviços mais relevantes, a eliminação de pessoal supérfluo em número de 3.889 empregados (...) implantando a ordem e a disciplina em todos os serviços.. (BENCHIMOL, 1990, p.203).

Ao sair da E. F. D. Pedro II, Pereira Passos manteve-se afastado por três anos da vida pública, dedicando-se, exclusivamente, à administração de sua serraria. O governo Rodrigues Alves marcou seu retorno ao cenário público, desta vez, para escrever um dos mais importantes, conhecidos e controvertidos capítulos da história da cidade do Rio de Janeiro e da jovem República.