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O C INEMA E A T ELEVISÃO NOS ESTUDOS DE H ISTÓRIA A NTIGA

Em virtude dos inúmeros usos culturais, sociais e políticos que no último século o cinema e a TV têm feito do Mundo Antigo, em geral, e de Roma, em particular, alguns dos historiadores da Antiguidade e classicistas têm procurado entender as motivações e consequências dessas apropriações (CYRINO, 2005: 3). Apesar dos primeiros estudos preocupados com as recepções ou com os usos da Antiguidade no cinema e na televisão terem surgido há pouco mais de quarenta anos10

, ainda hoje são poucos os estudiosos do Mundo Antigo que veem com bons olhos esse tipo de pesquisa. Como mencionado por Borja Antela- Bernárdez e César Sierra Martín (2013: 13), muitos especialistas em História Antiga entendem esse campo de análise “como um mero divertimento, mas de modo algum como uma questão séria que merece uma real atenção e esforço”.

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O primeiro estudo feito a respeito da presença da Antiguidade no cinema que se tem conhecimento foi a tese

Influencias del mundo clásico en la historia de la cinematografía (1896-1970), defendida pelo historiador

espanhol Pedro Luis Cano Alonso em 1973 na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad de Barcelona (ESPAÑA, 2009: 13). A tese de Cano foi defendida dois anos após a publicação d‟ O filme: uma contra-análise

da sociedade?, famoso ensaio de Marc Ferro que defende o uso do cinema como documento da História, e é

anterior à primeira versão do conhecido livro do historiador norte-americano John Solomon, The Ancient World

Essas opiniões, advindas, em particular, do que podemos chamar de “historiadores tradicionais”, não impediram, no entanto, que os estudos de filmes e seriados televisivos se constituíssem aos poucos como uma nova possibilidade de investigação histórica relacionada às sociedades antigas. Tais trabalhos, de maneira significativa, têm trazido inúmeras e importantes contribuições aos Estudos Clássicos, acabaram por aproximar a História Antiga de disciplinas como a História da Arte, os Estudos Culturais, a Filosofia, e de pesquisas sobre a análise de linguagens, tanto verbal quanto cinematográfica, e possibilitaram que os historiadores da Antiguidade, ao elaborarem reflexões acerca das imagens construídas na contemporaneidade sobre esse período, percebessem que o Mundo Antigo não está isolado do presente (ANTELA-BERNÁRDEZ & MARTÍN, 2013: 12).

O surgimento de tais pesquisas, inseridas no mundo anglo-saxônico no campo dos Classical Receptions Studies, é importante ressaltar, deve-se às transformações ocorridas no interior da disciplina de História Antiga nas últimas décadas. Os estudos sobre a Antiguidade passaram, e pode-se dizer que ainda passam, por um momento de renovação, conhecendo hoje, como bem definiu Glaydson José da Silva (2007: 26), uma espécie de agitação teórica, ligada a problemáticas da teoria da História Contemporânea, que são marcadamente inovadoras. Diante disso, tem aumentado o número de pesquisas que olham para a Antiguidade não com o intuito de entender como tal evento aconteceu ou personagem viveu, mas, sim, estudar as interpretações e representações que as sociedades posteriores fizeram. Ainda, como explica Antonio Duplá (2011: 95), o estudo de uma tradição clássica canônica sobre determinados episódios e personagens aos poucos tem dado espaço para análises de como e porque esses episódios e personagens são selecionados em uma dada época de forma a contribuir para a confirmação de determinadas visões sobre as culturas, ideologias e sociedades do passado.

No Brasil, como apontam Pedro Paulo Funari e Marina Cavicchioli (2011: 112), o surgimento desses estudos deu-se no contexto de renovação da historiografia, em geral, e sobre a Antiguidade em particular. Deve-se, principalmente, à interação que a disciplina passou a ter, mais intensamente, com as outras Ciências Humanas e Sociais “em busca de interpretações que superassem as aporias teóricas e práticas do estudo das sociedades no presente e no passado”. Os autores ainda completam que o Brasil, cada vez mais atento à sua inserção nas discussões internacionais,

(…) não hesita, também, em mostrar como as especificidades brasileiras podem ser usadas, de maneira produtiva e fertilizadora, para contribuir nos debates nos ambientes hegemônicos. Os usos do passado

passaram a ocupar lugar de destaque, com a multiplicação de estudos historiográficos, por parte de estudiosos dos mais vários horizontes (CAVICCHIOLI & FUNARI, 2011: 112).

A pesquisa no âmbito dos usos do passado, por sua vez, como explica Renato Pinto (2011: 30), não se refere a um estudo no qual se pretenda que alguém na modernidade vá ao passado e o traga como foi ao seu mundo contemporâneo, mas busca a compreensão de como os conceitos e ideologias do passado são interpretados e representados no presente. Por meio de tais pressupostos, algumas das pesquisas brasileiras que buscam entender as ressignificações e os usos da Antiguidade no mundo contemporâneo têm contribuído para a recolocação de antigos problemas, provocado alterações epistemológicas profundas e aberto novos campos para os estudos culturais (GARRAFFONI, 2014: 40). Independentemente de estarem inseridas nos debates sobre usos do passado ou recepções, porém, esse tipo de pesquisa tem buscado enfatizar que não convém aos estudiosos da História pensar “o passado sem atentar para as condições contemporâneas de produção historiográfica” (FUNARI et al, 2017: 314). O passado, além de ser um país estrangeiro, é também um local que, por não podermos visitá-lo, só nos resta imaginá-lo por meio de construções feitas mediante os seus vestígios. Sendo assim, as formas como ele é descrito e/ou apresentado pela historiografia, e também por produções culturais como o cinema e a televisão, merecem atenção dos historiadores tanto quanto a documentação que permite tais elaborações.

Como resultado dessas reflexões, desde o início dos anos 2000 estudos preocupados com as relações entre Cinema, Televisão e História Antiga têm marcado presença nos programas de pós-graduação do Brasil. Podemos destacar, dentre os frutos dessas recentes pesquisas, obras como O príncipe do Egito: um filme e suas leituras na sala de aula (2012), de Raquel dos Santos Funari; Jesus no cinema: um balanço histórico e cinematográfico entre 1905-1927 (2013), de André Leonardo Chevitarese; Semiótica do espetáculo: um método para a História (2013), organizado por Claudia Beltrão Rosa e Ciro Flamarion S. Cardoso; Tempo e Magia: a História vista pelo cinema. Antiguidade (2014), de José Alberto Baldissera e Tiago de Oliveira Bruinelli; e Cinema e o Mundo Antigo. A Antiguidade através da sétima arte (2015), organizado por Cláudio U. Carlan, Pedro Paulo A. Funari e Raquel S. Funari.

Os citados trabalhos, alinhados às obras seminais de autores internacionais como Maria Wyke (1997), Óscar Lapeña (1999), Martin Winkler (2004), Monica Cyrino (2005), Rafael de España (2009), Alberto Prieto Arciniega (2010), Antonio Duplá (2011), entre outros, têm demonstrado que o estudo da presença da Antiguidade na Sétima Arte é tão válido

quanto as pesquisas tradicionais em História Antiga. E que tais estudos, longe de serem mero divertimento, têm permitido uma expansão na forma de entendimento das atuais interpretações feitas a respeito da Antiguidade. Como destaca Renata Garraffoni (2014: 40), é por meio dos estudos que seguem as perspectivas dos usos do passado, em especial, que se tornou possìvel uma “expansão nas formas de olhar os romanos, desnaturalizando visões de mundo eurocêntricas e democratizando o acesso a seu passado”. Compartilhando de tais pensamentos, e em diálogo com a ideia de recepção conforme apresentado anteriormente, a presente pesquisa espera então trazer uma nova contribuição a estas recentes formas de olhar o Mundo Antigo e suas leituras na contemporaneidade.