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O S PROTOCOLOS DE MASCULINIDADE NA A NTIGUIDADE R OMANA

C APÍTULO III – Q UANDO ( NÃO ) HÁ INTERESSE PELA “R AINHA DA B ITÍNIA ”

3.2. O S PROTOCOLOS DE MASCULINIDADE NA A NTIGUIDADE R OMANA

Para uma discussão a respeito dos ideais de masculinidades vigentes na Antiguidade Romana, é preciso ter em mente, em primeiro lugar, que não havia entre os antigos romanos conceitos como os de “homossexualidade”, “bissexualidade” e “heterossexualidade” (HALPERIN, 1990; WILLIAMS, 2010; PUCCINE-DELBEY, 2007; BIANCHET, 2014). Nada que se assemelhe a essas classificações identitárias, que foram criadas apenas no século XIX, pode ser encontrado na Antiguidade Clássica (HALPERIN, 1990: 8). Deste modo, não estando revestido de uma dessas identidades sexuais, o homem romano devia encontrar-se com a sua masculinidade no fato de ser um uir ou não ser. Para tal, esperava-se desses romanos nascidos livres, isto é, dos ingenui, qualidades como uirilitas (virilidade, hombridade) 49

, uirtus (qualidade de um homem verdadeiro, vigor da maturidade, excelência moral, de caráter e mente), imperium (instância de domínio) e fortitudo (força, coragem, bravura). Ideologicamente, aqueles que não fossem detentores de tais atributos poderiam ser caracterizados como mollis (mole, suave) ou effeminatus (efeminado), e mesmo como um non uir (não homem) (CORBIN et al, 2013).

A atividade sexual do cidadão romano estava entre as práticas culturais que definiam a presença ou ausência de sua masculinidade. Contudo, diferente do que se pode encontrar em ideologias modernas e ocidentais de sexualidade, o sexo dos parceiros não produzia categorizações nem era objeto de restrições. Mediante as fontes textuais romanas produzidas entre os séculos II A.E.C. e II da E.C., pode-se argumentar que, para a sociedade romana do período, o que importava eram as posições ocupadas pelo uir durante os seus atos sexuais – esperava-se que ele fosse o agente ativo – e o status de seus (as) parceiros (as). Havia, pois, restrições com relação ao status social daqueles que eram penetrados, mas não ao

seu sexo. Como apontado pela máxima presente na comédia O Gorgulho, de Plauto (c. 230 – 180 A.E.C.), era permitido que o cidadão romano se deitasse com quem ele quisesse desde que ficasse “longe da mulher casada, da viúva, da virgem, e dos jovens e rapazes livres” (Plaut. Gorg. 37–8). Os escravos, prostitutos e não cidadãos de ambos os sexos poderiam ser, portanto, igualmente objetos das investidas sexuais e amorosas dos uiri.

Integrava, assim, o ideal de masculinidade romano que parece ter sido o dominante pelo menos ao longo dos dois últimos séculos da República e de todo o Principado, o pressuposto de que os cidadãos pudessem manter experiências sexuais com outros homens em certos contextos e configurações (WILLIAMS, 2010: 17). Não era esse tipo de relação em específico, chamada hoje de homoerotismo, que alterava o status de uir para o de effeminatus de um romano livre, mas sim o que ele praticava durante o coito, independente se o seu parceiro fosse outro homem ou uma mulher. Enquanto que o ato de penetrar, entendido como uma forma de domínio, era visto como sinal de uirilitas, ser penetrado, praticar a felação em um homem, e mesmo a cunilíngua em uma mulher, era sinônimo de efeminação e, no caso do uir, daquele que abdicara, por determinado tempo, de sua virilidade (THUILLIER, 2013: 83). Não havia, então, entre os romanos a ideia de que as pessoas pudessem ser gays, lésbicas, heterossexuais ou bissexuais (nem pessoas que se identificassem com uma dessas categorias), mas havia a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo que hoje chamamos de homoerotismo masculino; e essa prática constituía uma parcela importante dentre os protocolos/códigos da masculinidade daquele tempo.

A respeito desses protocolos, é por certo no estudo das ideologias de masculinidade do mundo romano desenvolvido por Craig A. Williams que podemos encontrar um dos mais significativos debates. Segundo esse historiador, três eram os protocolos ligados às práticas sexuais que deveriam ser seguidos pelos cidadãos romanos: 1. Ser o penetrador e não o penetrado; 2. Penetrar apenas sua esposa, escravos de ambos os sexos, prostitutos de ambos os sexos e não-cidadãos de ambos os sexos; 3. Os adolescentes, cujo corpo ainda é liso, devem ser os principais objetos de desejos dentre todas as pessoas do gênero masculino que estão “à disposição” do uir (WILLIAMS, 2010: 18).

O primeiro protocolo, que é considerado pela maior parte da historiografia atual como a diretriz principal do comportamento masculino romano50, tem uma relação “óbvia

com as estruturas sociais hierárquicas” presentes na sociedade romana (WILLIAMS, 2010:

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Para discussões historiográficas feitas em âmbito nacional que questionam a ideia de penetração como prática imprescindível da masculinidade romana ver, por exemplo: Feitosa, 2005; Feitosa, 2014; Funari, 2003; e Funari, 2014.

18). Constituindo um modelo priápico de masculinidade, esse paradigma condiz com a alegação feita pelo filósofo Sêneca de que era um crime “a passividade sexual para o homem livre, uma necessidade para o escravo e um dever para o liberto” (Sen. Contr. 4, 10). De acordo com esse ideal, que pode ser encontrado em diversas fontes textuais romanas, seria viril, portanto, o ingenuus que penetrava analmente os homens, penetrava vaginalmente as mulheres e fazia-se fazer uma felação (THUILLIER, 2013: 85). Porém, nem todos os homens e mulheres poderiam ser penetrados; e o segundo protocolo estabelece justamente o que fora apontado por Plauto: pessoas que, devido ao seu status social, não eram aceitáveis como parceiras sexuais dos homens romanos, como os ingenui jovens e adultos. A violação de ambas as regras poderia configurar stuprum51

, e, enquanto a primeira causaria danos à identidade masculina, a segunda poderia trazer consequências morais e legais aos indivíduos envolvidos (WILLIAMS, 2010: 19). O terceiro protocolo, por sua vez, não constitui uma restrição às práticas sexuais masculinas, mas, sim, uma tendência, presente nas fontes, de que os escravos adolescentes do sexo masculino, chamados de pueri, adulescentuli ou iuvenes, são os parceiros receptivos ideais (WILLIAMS, 2010: 19). Essa predileção pelos jovens não eliminava, e nem criticava, a possibilidade do uso de escravos e/ou prostitutos adultos, como os exoleti52

. Indicava, no entanto, certa exaltação à beleza do escravo imberbe e a existência de uma pederastia em Roma que se diferenciava da grega.

Os três protocolos, que constituíam ideais criados por e para as elites romanas, estabeleciam, portanto, a existência de amores lícitos e amores proibidos. A prática de amores censurados, como ser penetrado numa relação sexual, praticar a cunilíngua em uma mulher ou a felação em outro homem, poderia alterar a caracterização do cidadão romano de um uiriliter (“aquele que porta-se sexualmente como homem” 53

) para o de um cinaedus (“viado/bicha”

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), mollis (“mole”, “suave”) ou effeminatus (“efeminado”). Interessante destacar que as

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Pierre Grimal (1991: 118) explica que o stuprum “era a mácula provocada por relações carnais ilegìtimas, que maculavam o sangue de quem se submetesse, voluntariamente ou não, a amores nos quais desempenhasse um papel passivo”. Poderia recair sobre mulheres, caso estas cometessem adultério, e também sobre homens, caso estes renunciassem ao seu papel de uir em uma relação, isto é, se no ato sexual ocupasse o lugar atribuído àquele que é penetrado. Os escravos (as) e os prostitutos (as) estavam fora do alcance dessa marca (GRIMAL, 1991: 119; POMEROY, 1995: 160; PINTO, 2012: 123).

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Exoletus/exoleti significava “crescido/crescidos” e era utilizado na Antiguidade Romana como um contraponto ao adolescens (que pode ser traduzido por “crescendo”).

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Definição trazida por Thuillier (2013: 78).

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O termo cinaedus comporta outras traduções como a de “chupador” oferecida pelo classicista brasileiro João Angelo Oliva Neto (1996). Neste trabalho, porém, optei por utilizar uma das interpretações sugeridas pelo latinista Paulo Vasconcellos (1991), e traduzo o termo cinaedus para o de “viado/bicha”.

práticas atribuídas a um homem efeminado na Roma Antiga eram distintas daquilo que comumente hoje lhe é outorgado nas sociedades ocidentais. Um exemplo é a possibilidade de serem considerados efeminados tanto os homens que assumiam uma posição passiva na relação sexual (cinaedus/pathicus), quanto aqueles que faziam sexo oral em mulheres (cunnilinctor). Ambos, ainda que sua efeminação fosse apenas um rumor, poderiam ser vítimas de chacotas ou até mesmo de ruína política e social (PINTO, 2012: 117). Ainda, entre os amores proibidos estavam a submissão de uma mulher livre que não fosse a sua, de um romano livre ou de um jovem livre (CANTARELLA, 1991: 138). Relacionar-se com pessoas desse status social seria objeto de escândalo, de reprovação e poderia, segundo Thuillier (2013: 91), “levar a punições de diversas ordens” 55

.

Como apontam as recentes discussões historiográficas tributárias, sobretudo, dos pioneiros trabalhos de Kenneth Dover (1978) e Michel Foucault (1984), os gregos possuíam regras distintas das que vigoravam entre romanos acerca das relações pederásticas masculinas. De acordo com fontes textuais advindas dessas sociedades, em ambas as culturas os adolescentes constituíam objetos de desejos dos cidadãos adultos, porém, enquanto em Roma esperava-se que esse desejo fosse voltado apenas aos garotos escravos, na Grécia era aceito e até mesmo encorajado o cortejo do garoto livre (MANWELL, 2007: 118). Eva Cantarella (1991: 133) explica que relacionar-se com um jovem escravo, para os gregos, não tinha nenhum sentido, visto que a pederastia tinha uma função educativa e cultural que requeria, por definição, que o garoto fosse livre. Grosso modo, partia-se do pressuposto que era parte da educação dos néoi (jovens) a formação de sua virilidade, e que tal característica só poderia ser plenamente desenvolvida caso, durante a adolescência, o futuro cidadão ocupasse um papel tido como feminino junto aos varões adultos de sua sociedade (SARTRE, 2013).

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A documentação escrita dos antigos romanos que chegou até nós, em que há menções às suas práticas sexuais e aos protocolos de masculinidade, não deixa claro quais eram os possíveis tipos de punições que sofreriam os acusados de stuprum. O historiador brasileiro Renato Pinto (2012: 123), em diálogo com o norte-americano Craig Williams (2010), argumenta que durante a República não parece ter havido nenhuma lei que punia o

stuprum e que, “todo o processo de punição se daria no meio privado, pelos paterfamilias, sem a intervenção

direta do governo romano”. Williams e Pinto, entretanto, apontam que entre os estudiosos do tema há questionamentos frequentes acerca da natureza de uma lei mencionada por Cícero em 50 A.E.C (ad Familiares, VIII, 12) que se acredita ter sido utilizada para a coibição de atos sexuais impróprios: a lex Scantinia (aprovada em meados do século II A.E.C.). Eva Cantarella (1991: 149-50), por sua vez, acredita que a lei castigava, no caso de uma relação pederástica, o uir, e no caso de uma relação entre homens livres, apenas aquele que se deixava ser penetrado. Segundo a historiadora italiana, a penalidade pelo stuprum, de acordo com a lex

Scantinia, seria de dez mil sestércios (CANTARELLA, 1991: 152-3). A opinião de Cantarella não é

compartilhada por todos os estudiosos do tema, pois alguns argumentam que, por meio da documentação, é pouco provável inferir ao certo o que era a lei, e quais atos e como ela punia. Mais informações existem, no entanto, acerca de outra lei, aprovada no início do Principado: a lex Iulia de adulteris coercendis, de 18 A.E.C. Esta trouxe severas punições ao adultério feminino, o que demonstra que este, sobretudo, tratava-se de um

Esse ideal fazia parte de um rito de iniciação viril que, como apresenta Maurice Sartre, era composto por três fases: 1. Marginalização, em que individual ou coletivamente os adolescentes eram afastados da cidade; 2. Inversão, quando os adolescentes deveriam tornar- se objetos de desejo dos cidadãos masculinos, comportando-se ao inverso daquilo que se esperará deles como cidadãos; 3. Reintegração, fase em que finalmente os garotos, já ao final de sua adolescência, eram reintegrados à sociedade e considerados aptos a desempenharem os papéis de cidadãos (SARTRE, 2013: 37-9). A inversão presente nesse sistema educativo era, então, a base para as relações sexuais desiguais entre os erômenos (ἐρώμενος), jovens de 12 a 17 anos que ideologicamente assumiriam o papel de parceiros passivos, e os erastés (ἐραστής), cidadãos adultos que deveriam dominar a relação. Para além da permanência de hierarquias, havia ainda algumas regras que os protocolos de masculinidade gregos impunham a essa relação, como, por exemplo: os erômenos deveriam comportar-se com recato e não parecerem demasiado ansiosos para o contato com os erastés (MANWELL, 2007: 118; SARTRE, 2013: 53); essa ligação pederástica não poderia se tratar de coação nem de prostituição (SARTRE, 2013: 53); não deveria tratar-se de uma relação amorosa íntima, mas sim de uma conquista pública (SARTRE, 2013: 54); e com o término da adolescência deveria ser concluída, pois caso contrário tornar-se-ia uma perversão (SARTRE, 2013: 55).

Essas ideologias encontraram resistência entre os códigos de masculinidade romanos, que estabeleceram o garoto escravo como o objeto ideal para o desejo e o relacionamento pederástico. Isso não significa dizer que na prática não houvesse romanos que se sentiam atraídos ou que procuravam ter relações com os meninos livres, mas, sim, que, conforme estipulado pelo segundo protocolo apresentado acima, tais atitudes eram ideologicamente inaceitáveis. Por seu turno, os adolescentes livres que se deixassem ser penetrados por adultos, além de serem acusados de stuprum, por não respeitarem uma das principais diretivas da masculinidade romana, poderiam ser vítima de censuras e invectivas por toda a sua vida. A tradição literária nos deixou, por exemplo, relatos tanto de cidadãos que foram acusados de terem aceitado o papel receptivo quando adolescentes, quanto daqueles que eram famosos por cultivarem os pueri delicati, isto é, meninos escravos, em sua casa. Júlio César (Suet. Div Jul. 2), Marco Antônio (Cic. Phil. II, 3, 44-5) e o imperador Augusto (Suet. Aug. 68), por certo, estão entre os principais exemplos de ingenui que foram acusados de terem sido os parceiros sexuais passivos de outros homens durante suas respectivas juventudes. Já imperadores como o próprio Augusto (Suet. Aug. 83), mas também Tibério (Suet. Tib. 42-5), Domiciano (Díon Cássio, LXVII, 15.3) e Adriano (H.A. Hadr. 14) ficaram famosos por suas relações pederásticas com os seus jovens escravos.

Algumas das documentações provenientes de grupos populares, como os grafites de Pompeia, possibilitam o questionamento da ideia de que a masculinidade romana estivesse estritamente ligada à ação de penetrar (FUNARI, 2003; FEITOSA, 2005; FEITOSA, 2014). Nesses grupos, outros ideais de masculinidades podem ter se manifestado56 e, como apontado pela historiadora brasileira Lourdes Feitosa (2005: 100), não devemos considerar que a passividade sexual fosse “uma condição natural a todos os que não pertencessem às elites”. Podemos afirmar, no entanto, que práticas homoeróticas eram comuns em todos os estratos sociais de Roma. Nos documentos do período, tanto em textos filosóficos quanto literários e arqueológicos, não encontramos críticas às relações homoeróticas em si, mas aos cidadãos romanos que assumiam, de acordo com os ideais da época, o papel de passivo ou mantinham relações tidas como impróprias, como a pederastia grega. Assim, o “normal” para os romanos era que o cidadão mantivesse relações com pessoas de ambos os gêneros (seguindo, claro, as normas ideológicas acerca dessas relações). Inclusive, biógrafos antigos viram como diferentes, ou estranhos, aqueles homens que se relacionaram apenas com mulheres, como, de acordo com Suetônio, teria sido o caso do imperador Cláudio (Suet. Claud, 33.2). Essa é uma diferença entre a sociedade romana e a nossa que precisa ser levada em consideração e sublinhada quando estamos trabalhando com as suas recepções no mundo contemporâneo.

É importante destacar que o ato sexual, que perpassava os protocolos de masculinidade romanos elencados acima, não é a única prática definidora da masculinidade ou da efeminação encontradas na literatura escrita por e para a aristocracia romana. Não é porque penetra que é necessariamente viril. Ser penetrado, em contrapartida, é apenas uma entre muitas práticas consideradas como própria dos efeminados (WILLIAMS, 2010: 138). Em virtude disso, no primeiro volume da trilogia História da Virilidade, o historiador francês Jean-Paul Thuillier (2013: 94-112) enumera as características físicas e morais que completam o retrato ideal do romano viril: tez e corpos bronzeados (Figura 24); corpo de atleta; não depilação de certas partes do corpo; coragem para a guerra; propensão à prática de esportes;

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É tendo como intuito entender essas outras ideologias que trabalhos como o de Pedro Paulo A. Funari e Lourdes Conde Feitosa, em âmbito nacional, foram produzidos entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Por meio dos grafites encontrados nas paredes de Pompeia, Funari (2003) e Feitosa (2014) questionam a ideia de que a virilidade romana estaria estritamente ligada à ação de penetrar. De acordo com Feitosa (2014: 139), “embora a ética sexual fosse exigente, complexa e múltipla, não havia um único código regendo o comportamento sexual”. Nos grafites pompeianos, cuja escrita é atribuìda aos populares, é possìvel encontrarmos tanto discursos que reafirmam esse ideal aristocrático quanto aqueles que o contradizem, expondo de certa maneira, o conflito existente “entre o comportamento moral idealizado, que prescrevia a repugnância à passividade masculina, e aquele praticado e tolerado pelo amor” (FEITOSA, 2014: 149). Isso demonstra, de certa forma, como eram complexas e fluidas as práticas sexuais e as representações delas entre os diversos e heterogêneos grupos que compunham a sociedade romana.

autocontrole dos desejos sexuais e dos sentimentos; pudor na maneira de vestir-se; e o controle tanto de sua casa quanto da vida política romana. Por conseguinte, de nada adiantava ao cidadão romano ser exclusivamente o penetrador quando fechado entre quatro paredes, e no cotidiano portar-se, falar-se, pentear-se ou depilar-se ao estilo então atribuído como próprio do feminino57.

Figura 24. Assim como os gregos, os romanos pensavam que a palidez era sinal e consequência de efeminação. Havia, pois, um ideal de tonalidade bronzeada ligada à masculinidade que podemos constatar nesta e em outras imagens advindas de Pompeia. Neste afresco, a diferença entre a cor da

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Sugestões sobre como o homem romano deveria portar-se em seu cotidiano podem ser encontradas nos escritos de Públio Ovídio Naso (c. 43 A.E.C. – 17 E.C.). Em A Arte de Amar, por exemplo, o poeta dá o seguinte conselho aos cidadãos romanos viris: “não te deleite em enrolar teus cabelos com ferros, nem a tirar os pelos das pernas com pedrapomes. A limpeza agrada: bronzeia teu corpo pelos exercìcios do Campo de Marte” (1, 42.44).

pele do personagem masculino (bronzeada) e da feminina (esbranquiçada) é marcante. [Afresco

mostrado Perseu e Andrômeda, Pompeia, Casa de Dioscuri (VI, 9, 6).

A. 128cm, L. 106cm. Nápoles, MANN]

Desta feita, o descontrole tanto das práticas sexuais quanto das atividades cotidianas gerava suspeitas, e era tido como indício de desvio da norma masculina. O fato de regras existirem, no entanto, não significa que o cidadão romano se circunscrevia somente ao que lhe era recomendado (PINTO, 2012: 119). Conforme indicado por Clarke (1998: 26), é impossível que todos os romanos, fossem eles membros da aristocracia ou das classes populares, aceitassem o que a cultura da época queria incutir-lhes. Assim como no mundo contemporâneo há pessoas que resistem e não seguem a ideologia dominante de uma sexualidade heteronormativa, por certo, entre os membros da sociedade romana, havia aqueles que também não seguiam todas as regras sexuais e de gênero que lhes eram impostas por essa moral que era, acima de tudo, uma moral masculina aristocrática. A existência de tais regras/protocolos/códigos pode justamente ser lida como evidência de que a realidade do quotidiano de grande parte dos habitantes do mundo romano, fossem eles livres, escravos, homens, mulheres, adolescentes, cidadãos ou não cidadãos, poderia ser bem diferente do que apresentava a ideologia. Basta uma leitura da biografia dos doze primeiros Césares de Suetônio, escrita em torno de 119 e 122 da E.C., para constatarmos exemplos discursivos significativos de desrespeito às regras de uma “sexualidade” ativa. Também por meio da análise dos grafites de Pompeia e das imagens encontradas em diversos lugares que um dia pertenceram a Roma é possível demonstrar os hiatos que existiam entre aquilo que era idealizado e aquilo que era praticado.