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O INERTE EM CONTRAPONTO COM A SEGURANÇA

No documento stefanesoarespereira (páginas 85-88)

Da mesma forma que os conceitos de território, espaço e lugar se transformaram quando comparados às definições clássicas e/ou tradicionais, também o sentido do Ser Negro se modificou no olhar dos escritores e escritoras negras. O território, o espaço e o lugar foram (e certamente para alguns ainda são) entendidos como propriedades fixas. Essa estabilidade pode ser encontrada na forma como o negro é visto por meio de práticas relacionais. Gaston

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“Theorizing black experience in the United States is a difficult task. Socialized within white supremacist educational systems and by a racist mass media, many black people are convinced that our lives are not complex , and are therefore unworthy of sophisticated critical analysis and reflection […] a fundamental task of black critical thinkers has been the struggle to break with the hegemonic modes of seeing, thinking and being that block our capacity to see ourselves oppositionally, to imagine, describe, and invent ourselves in ways that are liberatory” (Tradução nossa).

Bachelard, na obra A poética do espaço (1996, p. 216), ao discutir, no capítulo IX, a dialética do exterior e do interior, ressalta acerca do exercício de fixar o ser: “Queremos fixar o ser e, ao fixá-lo, queremos transcender todas as situações para dar uma situação de todas as situações. Confrontamos então o ser do homem com o ser do mundo, como se tocássemos facilmente as primitividades”.

Ao “transcender todas as situações” com o intuito de concluir um estado de todas as outras circunstâncias, estabilizamos uma ideia que transporta as experiências a apenas um fim que, quando trágico, pode ser nomeado como o “não-lugar” do sujeito. Dessa forma, o insucesso de Ponciá na cidade deve-se à “falta de lugar” (termo utilizado pela própria autora Evaristo em entrevista à Revista Raça)90 da mulher negra na sociedade brasileira, uma vez que, além do ambiente urbano, o campo também não lhe proporcionara aprimoramento social, qualidade e mudança nas condições rotineiras da vida. Por outro lado, a derrota de Florens reside na rejeição de duas pessoas a quem a personagem muito amava.

Os prefixos assinalam como as palavras ilustram os sentimentos dos seres na passagem seguinte, após a segunda maior desilusão da vida de Florens: “Está vendo? Você está certo. A “minha mãe” também. Eu virei fúria, mas também sou Flornes. Completa. Imperdoada. Imperdoável. Sem piedade, meu amor. Nenhuma. Ouviu? Escrava. Livre. Me rendo” (MORRISON, 2009, p. 159)91. Florens não pode perdoar à sua mãe e ao seu amado, assim como este não pode perdoar-lhe. Essa dificuldade de permanência do amor coloca a personagem em um não-lugar que, embora se distinga de Ponciá, visto que esta personagem demonstra maior desejo de crescimento, procurando a alfabetização como “busca” de uma vida melhor, não deixa de afirmar a opressão dominante para com a mulher negra.

Por vezes, ao contrário, em vez de unir-se, as palavras desmembram-se intimamente, desligam-se. Prefixos e sufixos – principalmente os prefixos – separam-se: querem pensar sozinhos (BACHELARD, 1996, p. 217), e, assim o “não-lugar” visível na história narrada, em Evaristo e Morrison, transforma-se em lugar, no nosso estudo: o lugar do negro/o lugar da mulher negra.

É importante notar que conceitos como o espaço, o lugar e “homeland” (“home” = casa, lar, lugar [de origem] + “land” = terra) determinam a maneira como o exterior influencia na configuração do ser, da posição do sujeito perante a sociedade. Essa relação de subsistência acontece porque “o exterior e o interior são ambos íntimos; estão sempre prontos

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Ver capítulo III. 91

“See? You are correct. A minha mãe too. I am become wilderness but I am also Florens. In full. Unforgiven. Unforgiving. No ruth, my love. None. Hear me? Slave. Free. I last.” (Tradução nossa).

a inverter-se, a trocar sua hostilidade” (BACHELARD, 1996, p. 221). Por isso, porventura “home” tenha recebido uma valorização abrangente em termos conceptuais. Por envolver condições tanto físicas e espaciais quanto sócio-habituais, “home” não pode ser considerado apenas a casa, ou o lar, mas também o lugar92 em que um indivíduo se sente fortemente abraçado pelo contexto circundante, o qual pode variar, alterando-se continuamente com o tempo e com as experiências individuais.

Segundo Terkenli (1995, p. 325), em geral, as pessoas se sentem “at home” consigo mesmas porque estão familiarizadas com suas ações passadas e com suas atividades presentes, sentimentos, preocupações, tendências e intenções, ancoradas no “self” e espacialmente expressas através de geografias espaciais. As pessoas constroem suas geografias de “home” na interface entre o “self” e o mundo delas. Nessa relação, modela-se a ideia de “home” 93

. O espaço, portanto, que se organiza através das múltiplas relações sociais, permeia os interiores e os exteriores da casa, do campo, da fazenda, da cidade, ou seja, os espaços presentes em um território; define os lugares por meio das regras construídas integralmente pelo poder. Esses lugares são simbólicos, representam a subjetividade e a particularidade da conjuntura espacial, das multiterritorialidades, transformando-se em “home”.

A correlação entre a matéria, ou seja, o território como espaço geográfico, a terra e o “self”, o sentimento emotivo, da maneira como os acontecimentos do espaço são recebidos na psique, faz com que “home” esteja intimamente ligado ao lugar de origem, a terra natal (“homeland”). Embora o termo “home” seja constantemente criticado como consequência da relação com a definição clássica de diáspora como movimento forçado, exílio, além da lástima de perda resultante da impossibilidade de retornar, esse julgamento deve-se à limitação do que se compreende por “home”, uma vez que esse conceito é permanentemente associado à “homeland” África.

Ao estreitar o valimento de “home” equiparando à “homeland”, conclui-se ser o sentimento de mágoa e dor pelo distanciamento (retomando a relação entre “home” e “away” utilizada em Diaspora & hybridity), a verdadeira ânsia dos povos diaspóricos, um aniquilamento traumático. Não podemos, entretanto, reduzir a diáspora somente à travessia “atlântica” dos africanos. O próprio conceito engloba outras complexidades, desde a composição étnica e cultural, até a “absorção” político-econômica e o poder simbólico em

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Ver página capítulo II. O conceito “home” segundo Terkenli (1995, p. 325). 93

“People feel at home with themselves as a rule, because they are familiar with both their past actions and their ongoing activities, feelings, preoccupations, tendencies, and intentions, which are anchored in the self and spatially expressed through personal geographies. People construct their geographies of home at the interface between their self and their world. It is at this interface that the idea of home takes shape” (Tradução nossa).

construção no Novo Mundo, sintetizando a herança histórica dos fatos vivenciados. Todo esse movimento foi passado e mesmo compartilhado pelos descendentes dos negros da África, os quais nasceram na América, em uma nova “homeland”.

No documento stefanesoarespereira (páginas 85-88)