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A VISÃO DO CONTINENTE AFRICANO COMO O “HOME” DO NEGRO

No documento stefanesoarespereira (páginas 83-85)

Comecemos com a relação entre o conceito de diáspora e “home” proposto em Diaspora & hybridity (2003)87 e as narrativas relativas à vida de Ponciá e Florens. A princípio, os grupos diaspóricos caracterizam-se pela dispersão e separação de uma “homeland”, ou seja, uma terra natal. Neste estudo, entendemos por terra natal não necessariamente a “mãe África” (termo constantemente debatido entre os estudiosos da área, presente em obras literárias como Homem Invisível (1952), do estadunidense Ralph Ellison), o continente de origem dos africanos escravizados, mas a terra, ou seja, o território em que o negro nasce. Se um indivíduo nasce em Cabo Verde, esta é a sua terra natal, por exemplo.

Isso significa que discordamos duplamente da asseveração de África como terra natal, na medida em que, embora encontremos para o verbete “terra natal” as definições “lugar de origem; pátria, torrão, gleba” (FERREIRA, 2004, p. 1940), crê-se demasiadamente generalizado considerar o continente africano como um “lugar de origem”. Afirmar isso seria contrapor-se ao que Massey propõe como lugar, pois a particularidade do lugar é definida a partir da especificidade das relações socioespaciais. Em outras palavras, considerar a África como o lugar de origem de um sujeito significaria negar as diferenças étnicas do continente, como se também fosse politicamente homogêneo. Não se escuta, por exemplo, um brasileiro dizer que a América é sua terra natal, exceto em contextos específicos, a fim de enfatizar a parte do mundo de onde um indivíduo se origina. Embora seja possível atualmente ouvir, informalmente ou mesmo em monólogos planejados (como transmissão televisiva de jornais), que um sujeito é americano, esse posicionamento é deturpado, pois fixa uma nação não como dominadora do continente, mas como dominante (é o poder simbólico cingindo não as diferenças de classes, mas a união de vários grupos que compartilham uma supervalorização territorial de sua nação, tentando “envenenar” outras nações). É um comportamento do transnacionalismo propagando a nacionalidade e o nacionalismo “americano” nos próprios

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territórios nacionais como categoria de identificação diferenciada. Por isso, preferimos vincular o “lugar de origem” à pátria ou ao território de nascimento.

Em segundo lugar porque defender a África como terra natal do negro é delimitar sua origem exclusiva, e, para isso, teríamos que negar os movimentos da Middle Passage (ao cruzar o Atlântico, participando coagidamente das trocas culturais), e outras formas de travessia. Clifford (1994, p. 307) questiona o posicionamento político utilizado com expressões como “Mãe África”, afirmando que “uma das formas mais violentas de articulações de pureza e exclusão racial originam-se de populações diaspóricas. No entanto, estes discursos são geralmente recursos utilizados pelos (relativamente) fracos”88.

Dessa forma estaríamos propondo o inverso, fixando o lugar para lugares além, dentro de um só corte territorial (o continente), e não transnacionalista, isto é, como fluxo (in)voluntário de pessoas de nações-estados diferentes. Apesar das particularidades de cada indivíduo diaspórico, da experiência individual, essas vivências multiterritoriais se intercalam “transnacionalmente” através dos espaços simbólicos e gendrados, os quais distribuem o grau de poder e estabelecem os lugares “apropriados” a cada gênero.

Vendo a terra natal do negro como a África, nós negros estaríamos autoidentificando- nos como sujeitos “fora-do-lugar” ou em “não-lugares”, como se nascer no Brasil, por exemplo, fosse principiar-se em um lugar inadequado, devido ao histórico colonial do país, o qual permanece “manchado” por divisões de classes e uma democracia miticamente igualitária. Esse “não-lugar” inexiste dentro da concepção de “place” proposta pelas geógrafas Massey (1993) e Mcdowell (1999). O lugar se define por meio das práticas socioespaciais, sendo pensado como uma “representação”, uma imagem visivelmente construída e “duplamente determinada” (BOURDIEU, 2007, p. 13) pelos diversos agentes sociais. Além dos negros, outros grupos ocupam lugares peculiares resultantes das relações espaciais exercidas pelas sociedades. Afirmando como lugar/terra natal do negro a África, apoiamos a continuidade de um rancor imensurável pelos acontecimentos do passado e culpamos todos os outros grupos pela nossa falta de lugar no mundo.

Neste estudo, entendemos “homeland” (terra natal) como o território “nacional” em que um negro nasce, sendo esse o seu lugar de origem. Concordamos com o que bell hooks afirma na contracapa da obra Black looks, race and represenation (1992): “É somente no ato e na prática de amor à negritude que nós somos capazes de alcançar e abraçar o mundo sem amargura destrutiva e contínua cólera destrutiva”. Como hooks, não lutamos pelo retorno a

88“[...] some of the most violent articulations of purity and racial exclusivism come from diaspora populations. But such discourses are usually weapons of the (relatively) weak” (Tradução nossa).

um passado remoto, mas por uma transformação da visibilidade do negro, por uma redefinição da imagem do negro e, principalmente, da imagem da mulher negra que perpassa a subjetividade das escritoras e, consequentemente, as obras literárias. Esse “lugar” contraproducente presente nas narrativas como reinscrição da realidade deve ser debatido e revisto.

Na obra supracitada a feminista negra bell hooks comenta sobre a invisibilidade do povo negro estadunidense quanto à reflexão da raça e da repercussão em massa de como o negro é representado e de como essas imagens se mantém reafirmando o posicionamento excludente, opressor, o lugar não-dominante do negro:

Teorizar a experiência negra nos Estados Unidos é uma tarefa difícil. Socializar-se dentro de sistemas educacionais de supremacia branca e por meios de comunicação de massa, muitas pessoas negras estão convencidas de que as nossas vidas não são complexas, e são, portanto, indignas de análise e reflexão crítica sofisticada [...] a tarefa fundamental de pensadores críticos negros tem sido lutar pela ruptura das formas hegemônicas de ver, pensar e ser que bloqueiam nossa capacidade de ver nós mesmos opostamente, de imaginar, descrever, e inventar nós mesmos de maneira que são libertadoras (HOOKS, 1992, p. 2)89.

Assim como hooks, Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), argumenta sobre a existência de um “racismo assimilacionista” no país, em que a negritude é dissolvida com o intuito de demonstrar uma falsa harmonização social. Para o autor, o aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é o fato de ele propor uma imagem de maior sociabilidade, quando, na realidade, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, dissimulando as condições de alarmante violência a que é submetido (RIBEIRO, 1995, p. 226).

No documento stefanesoarespereira (páginas 83-85)