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O TRABALHO DO INTÉRPRETE DE LIBRAS EM UM AMBIENTE

UNIDADES DE ANÁLISE

2) O Intérprete de Libras na função de professor de Matemática

Ao retomarmos nossa unidade de análise 1, na qual discutimos uma quase inexistência de interlocuções entre alunos surdos e os demais ouvintes em sala de aula, somos levados a pensar sobre as consequências diretas desse estado de coisas para a atuação do Intérprete de Libras. O Intérprete, como observado em nossa pesquisa, assume outras atividades além das que lhe deveriam ser atribuídas, como conferir a realização de exercícios nos cadernos de todos os alunos e auxiliar na organização de eventos. Nosso destaque aqui vai, porém, para a discussão sobre até que ponto o Intérprete pode assumir as funções do professor de Matemática, bem como quais seriam as consequências deste fato.

Quadros (2004) nos alerta para a dificuldade de determinação dos papéis de professores e intérpretes quando ambos estão em atuação num mesmo ambiente. Também observamos uma confusão sobre as atribuições do Intérprete, o que acarreta, na maioria das vezes, uma sobrecarga em sua atuação, por precisar assumir o papel de tutoriar o ensino e a aprendizagem dos surdos, não como intermediador de comunicação, mas como responsável direto pelo sucesso na escolarização dos alunos acompanhados, sem uma intervenção maior do professor, que deveria ser mais atuante em relação às questões educacionais dos surdos inclusos em suas aulas.

Os questionamentos feitos pelas alunas surdas em nossa investigação foram, quase todos, respondidos pela Intérprete, ocasionando uma dificuldade temporal para o seu trabalho de interpretação. Além disso, as retomadas de conteúdos não compreendidos pelas alunas também eram feitas pela Intérprete, que assumia o papel de educadora, o que, por outro lado,

dificultava a possibilidade de simultaneidade entre a fala da professora, que não aguardava um tempo suficiente para a interpretação ser concluída.

A título de exemplo, com relação a um exercício específico em uma das aulas, a Intérprete de Libras solicitou-me auxílio sobre como ela deveria explicar a expressão algébrica N0,8q (em que N representava uma nota fictícia em uma avaliação, e q o número de questões corretas). Eu tinha ideia sobre como fazer, porém, tive dificuldades em como interpretar em Libras, ficando impossibilitado de contribuir para o esclarecimento das dúvidas da ILS. A Intérprete não chamou a professora para perguntar sobre uma estratégia de explicação. Ela passou a escrever nos cadernos das alunas surdas uma explicação pessoal, de acordo com o seu entendimento do que havia ouvido das explicações da professora. Notei um equívoco no texto da Intérprete de Libras, que apresentava o valor 0,8, da expressão algébrica mencionada neste mesmo parágrafo, como se referindo ao número de questões corretas, ou seja, ela trocou um valor constante (0,8 era o valor para cada questão acertada) por uma variável (número de questões corretas).

Professores ouvintes, ao trabalharem temas matemáticos com alunos também ouvintes, passam pela difícil tarefa de interpretar os entes matemáticos, transpondo a apresentação desses temas originária dos manuais didáticos - dotados de conceitos matemáticos de difícil compreensão - para uma linguagem mais acessível e mais bem compreendida pelos alunos. Tal tarefa apresenta uma complexidade ainda maior quando da intermediação do ILS, ou seja, trata-se de uma interpretação da interpretação, com um enfoque numa outra preocupação, que é a de adaptar a Libras para a compreensão dos alunos surdos.

Em outra atividade observada, quando se discutia uma equação do 1º grau representada em uma figura de balança em equilíbrio, as opiniões de Ta e De eram divergentes, considerando que Ta dizia que poderiam ser retirados pesos iguais de lados diferentes e que, com isso, a balança iria continuar em equilíbrio. Já De, mesmo com a representação de equilíbrio do desenho, achava que não havia uma igualdade entre os dois ―pratos‖ da balança e suas massas. Nessa situação, observei a dificuldade da Intérprete em lidar com as ideias iniciais das alunas surdas, numa busca de estratégias que as levassem a perceber as incoerências de sua ideia em relação ao exercício.

Figura 4: Foto da resolução do exercício no caderno de De.

No caso dos Intérpretes de Libras, eles não possuem formação voltada para a exploração didática das concepções prévias dos alunos surdos, o que seria bem-vindo nas aulas de Matemática, assim como nas outras disciplinas, como apregoado por autores como Mortimer (2000) e Santos (1991). Para os alunos surdos a questão se agrava, visto que eles, sendo filhos de pais ouvintes (na maioria dos casos), entram para a vida escolar com uma defasagem de conhecimentos cotidianos, criada pela comunicação inadequada no ambiente familiar, conforme apregoado por Kritzer (2009).

Lacerda (2009) destaca o fato de que:

[...] as crianças ouvintes partilham uma língua comum com a professora e trazem consigo experiências culturais, em geral, próximas àquelas apresentadas por ela, o que facilita sua construção de conhecimento. [...] esses conteúdos, além de serem mais distantes para os alunos surdos pela privação linguística a que frequentemente estão submetidos, só são acessados após a versão para Libras pela intérprete, que busca produzir enunciados que façam sentido para os alunos surdos, simultaneamente, em uma tarefa trabalhosa e exaustiva (p.70).

Por outro lado, o ambiente escolar tem características atípicas da interpretação em outros locais, como em palestras. Na escola se espera, acima de tudo, ensino e aprendizagem. Para Lacerda (2006):

[...] no contexto escolar, [...] é impossível desempenhar um papel estritamente de intérprete. O intérprete participa das atividades, procurando dar acesso aos conhecimentos [...], com sugestões, exemplos e muitas outras formas de interação inerentes ao contato cotidiano com o aluno surdo em sala de aula (p.174).

Lacerda (2006) nos leva a pensar que, se quisermos uma inclusão real dos alunos surdos, a formação dos Intérpretes deve contemplar mais efetivamente o ambiente escolar, considerando a multiplicidade de situações, a necessidade de diálogos, o convívio com linguagens diferentes etc. Famularo (1999) corrobora nossa reflexão acerca da inserção do Intérprete de Libras no contexto escolar, ao afirmar que, esses profissionais são ―protagonistas de una inscripción simbólica en el espacio social‖ (p.259), onde se vive a complexidade das relações humanas e as discussões de temas variados, necessários para a formação dos alunos.

Uma das possibilidades para uma melhor definição dos papéis entre Intérprete de Libras e professores é indicada por Lacerda (2009) como uma interação maior no processo de discussão das práticas pedagógicas a serem estabelecidas nas salas de aula inclusivas. Tal interação maior propicia outras vantagens, sendo destacado o fato de que, com isso, os professores irão adquirir um conhecimento maior acerca da surdez, dos surdos, das possibilidades de ensino e aprendizagem mais adequados. Destacamos também a necessidade de uma reorganização dos currículos escolares, que busque realmente considerar a presença de alunos com necessidades educativas diferentes daquelas já consagradas. Com isso, os surdos não seriam mais tratados como alunos exclusivamente dos intérpretes, mas também do professor e da escola.

3) O uso de mídias e outros materiais no ensino de Matemática para surdos sem