• Nenhum resultado encontrado

O intelectual negro e a ciência racialista na imprensa

Capítulo 5 A obra de Querino em questão: o ensaio, os periódicos, as narrativas

5.1 O intelectual negro e a ciência racialista na imprensa

Longe de uma história da recepção, assim como em relação ao texto de Prado, abordaremos as narrativas publicadas em periódicos acerca do ensaio A

Bahia de Outrora (1916), outras de suas publicações e à própria figura de

Querino. Com o intuito de indicar alguns aspectos da historicidade no interior da qual este livro foi escrito, publicado e lido, tematizaremos parte do que foi discutido na mídia impressa do início do século XX a partir do trabalho de Querino.

Encontramos uma quantidade considerável de textos mencionando Querino e várias de suas publicações, ainda que verificamos um número de ocorrências bastante reduzido em relação ao que foi rastreado a respeito de Prado e de seu ensaio Retrato do Brasil. Infelizmente encontramos apenas dois textos em periódicos que abordam exclusivamente o ensaio A Bahia de Outrora. O primeiro é o artigo da coluna Actualidades Literarias e Históricas, de João de Assis, na revista Bahia Illustrada.350 O segundo é o texto de Xavier Pinheiro, na coluna Belletrismo da revista O Malho.351 Mesmo assim, este livro e outros componentes da obra de Querino aparecem citados em muitas das vezes onde são tematizadas as culturas africanas e afro-brasileiras, as artes e a história baiana na imprensa da primeira metade do século XX.

Ainda que seja necessário um estudo mais pormenorizado para avaliar os motivos da escassez de críticas e debates sobre a obra de Querino em periódicos da época, é preciso considerar que parte disto se deve ao racismo e ao racialismo profundamente enraizados na cultura brasileira e, em especial neste caso, na primeira metade do século XX. As teorias racialistas se encontravam, inclusive, amplamente difundidas em parte dos estudos etnológicos e antropológicos como parte da ciência eurocêntrica e da época.352

350 ASSIS, 1921, p. 36. 351 PINHEIRO, 1924, p. 44. 352 SCHWARCZ, 1993.

Este recorte não era nada propício a um intelectual negro, com seu trabalho dedicado ao estudo e valorização da cultura africana e afro-brasileira no Brasil. Mais do que isso, a obra de Querino conferia foco especial a população de baixa renda e negra como sujeitos, protagonistas da história brasileira, o que pode ser visualizado em vários dos seus trabalhos, como A Bahia de Outrora (1916), A

raça africana e os seus costumes na Bahia (1916), O colono preto como fator da civilização brasileira (1916), Candomblé do caboclo (1919) e Homens de cor preta na história (1923).

No início do século XX brasileiro também havia certa hegemonia do trabalho de Nina Rodrigues entre a elite branca (o que pode ser evidenciado nos periódicos da época), a qual considerava que negras e negros e suas culturas seriam inferiores e subalternos em relação à caucasiana. É relevante mencionar que no início do ensaio A raça africana e seus costumes na Bahia (1916), apesar de indicar alguma importância ao trabalho de Rodrigues – que, segundo ele, teria iniciado os estudos da temática afro-brasileira -, Querino o critica caracterizando- o como o “malogrado professor Nina Rodrigues”.353 Carlos Reis aponta que

Vivaldo da Costa Lima acredita que a ideia de “logro”, aqui, seria a de um lamento ao fato de que Rodrigues, pela sua morte precoce, teria apenas iniciado sua contribuição a respeito da temática afro-brasileira.354 No entanto, parece mais

provável a conclusão da historiadora Maria das Graças de Andrade Leal que produziu uma rigorosa e belíssima biografia sócio-histórica de Querino. Para a pesquisadora, o adjetivo “malogrado”, ao qual Querino atribui a Rodrigues, estaria relacionado às teorias racialistas e racistas do médico legista.

Ao se referir a Nina Rodrigues na condição de malogrado, certamente, quis contestar a teoria racial que havia defendido em todo o seu teor ortodoxo. Foi o momento em que enfrentou o pensamento vigente e divulgou suas ideias de forma a afirmar e confirmar o valor do africano em detrimento do branco português.355

A esta hegemonia de Rodrigues, soma-se certo engessamento da ideia equivocada de uma convivência quase harmoniosa estre povos originários, africanos e afro-brasileiros e europeus no Brasil (posteriormente conhecido como mito da democracia racial), estabelecido através de muitos autores, especialmente

353 REIS, 2009, p.127. 354 REIS, 2009, p.128. 355 LEAL, 2009, p. 192.

de Gilberto Freyre. Em autores como Freyre há, por exemplo, uma assimetria na apresentação dos sujeitos negros e culturas africanas e afro-brasileiras, indicando o elemento branco como superior, em alguma medida, minimizando os problemas dos conflitos raciais. Querino apontou para estes confrontos e as resistências negras, indicando sempre as contribuições africanas e afro-brasileiras na formação social, econômica e cultural do Brasil. Através da escrita da história, seria possível constituir uma reflexão ético-política, apontando alguma perspectiva de inclusão e protagonismo, de questionamento do estatus quo e de potencialização de afro-brasileiros no interior da marginalização imposta a eles. Segundo Niyi Afolabi, importante pesquisador da temática afro-brasileira:

Ao contrário dos teóricos da cultura que se destacaram após sua morte (como os brasileiros Gilberto Freyre e o cubano Fernando Ortiz), Manuel Querino procurou preservar essências culturais africanas, consciências, práticas e sensibilidades, documentando sistematicamente o modo de vida afro-brasileiro em um contexto bastante rebaixador, racializado e hostil. Enquanto Freyre e Ortiz procuravam explicar a insignificância da raça no contexto mais amplo da identidade nacional, criando assim mais ambiguidades do que resolvendo problemas sociais, Querino engajou pragmaticamente em questões de polaridades e desigualdades raciais, enquanto expunha as contribuições africanas para apelar à necessidade de inclusão e confronto de um dilema em direção a soluções concretas nas relações raciais. Querino procurou empoderar os descendentes que, até hoje, foram submetidos aos horrores da escravidão e das suas consequências, insistindo em direitos dos trabalhadores, como acesso a oportunidades educacionais, acesso a participação política, organização e representação através do prisma dos valores derivados da África para desafiar a hegemonia branca e o status quo. Querino via na África uma possibilidade concreta de conceituar poder e orgulho como base para recuperar a sensação perdida do eu e do passado histórico dos afro- brasileiros (tradução nossa).356

356 “Unlike cultural theorists who came to prominence after his death (such as Brazilian Gilberto

Freyre and Cuban Fernando Ortiz), Manuel Querino sought to preserve African cultural essences, consciousness, practices, and sensibilities by systematically documenting the Afro-Brazilian way of life within a rather denigrating, racialized, and hostile context. While Freyre and Ortiz sought to explicate the insignificance of race in the larger context of national identity, hence creating more ambiguities than solving social problems, Querino pragmatically engaged issues of racial polarities and inequalities while exposing African contributions in order to appeal to a need for inclusion and confrontation of a dilemma towards concrete solutions in racial relations. Querino sought to empower descendants who to date, have been subjected to the horrors of enslavement and the aftermath by insisting on workers’ rights such as access to educational opportunities, access to political participation, organization, and representation through the prism of African derived values geared towards challenging the white hegemony and status quo. Querino saw in Africa a concrete possibility to conceptualize power and pride as the basis to recuperate lost sense of Afro- Brazilian self and historic past”. AFOLABI, 2013, p. 262.

Associada ao problema do racismo e da ciência racialista, outra questão pode ter contribuído para o pequeno número de textos analisando o ensaio de Querino. Seria o fato de que, segundo a seção de respostas às perguntas dos leitores da revista O Malho, não era possível encontrar o livro A Bahia de Outrora no Rio de Janeiro, ao menos em 1924: “Conforme o prometido averiguamos o que deseja: O livro “Bahia de Outr`ora” de Manuel Querino não existe no Rio, porém, pode dirigir-se ao editor Romualdo dos Santos – Livraria Catilina, Bahia”.357 É necessário ter em vista que a maior parte das editoras e gráficas responsáveis pela publicação de livros e de periódicos se encontravam sediadas no Rio de Janeiro. Além, claro, de que muitos daqueles que consumiam estes livros residiam na então capital do Brasil. No entanto, o ensaio se encontrava disponível para encomenda em algumas livrarias, e é preciso lembrar que este livro possuiu algum sucesso editorial, já que foi publicado em três edições ainda na primeira metade do século XX: 1916, 1922 e 1946 (reimpresso em 1955).358

A partir da plataforma hemeroteca disponibilizada na web, da Biblioteca Nacional, foram viabilizados para consulta oitocentos e noventa e dois acervos de vinte e oito localidades no Brasil. A plataforma permite recortes temporais no formato de décadas, deste modo, a pesquisa foi realizada entre as décadas de 1910-1919, 1920-1929 e 1930-1939. Utilizamos as categorias “Manuel Querino” e “A Bahia de Outr`ora” (grafia do título da primeira edição). A primeira categoria rendeu treze resultados entre as décadas de 1910-1919, onze entre 1920- 1929 e trinta entre 1930-1939. Já a segunda categoria, “A Bahia de Outr`ora”, produziu vinte e seis resultados entre 1910-1919, dezenove na década de 1920- 1929 e vinte e três no período de 1930-1939.

Apesar destes números percebemos que a maioria das menções não se referia ao ensaio em questão ou ao escritor baiano Manuel Querino. Ao fim, havia trinta e nove referências diretas ao autor, onze mencionando A Bahia de Outrora e duas analisando o livro. Além disso, também há alguns poucos anúncios de editoras acerca do lançamento de algum livro do autor e a sua disponibilidade para a venda. Para conferir variações e erros de grafia nos periódicos, também consultamos as categorias “Manoel Querino”, “Manoel Quirino”, “Manuel Quirino”, “Bahia de Outrora” e “A Bahia de Outrora”, mas os resultados

357 DE TUDO..., 1924, p. 6. 358 QUERINO, 1955, p. 7-8.

relevantes coincidiram com aqueles disponibilizados a partir da busca por “Manuel Querino” e “A Bahia de Outr`ora”.

Apesar da maior parte das publicações terem sido realizadas no Rio de Janeiro, há certa variedade no que tange à origem dos periódicos que mencionaram Querino e seu ensaio: A República (Florianópolis; uma ocorrência),

Bahia Illustrada (Rio de Janeiro; cinco ocorrências), O Malho, (Rio de Janeiro;

duas ocorrências), A União (Rio de Janeiro; uma ocorrência), Jornal do Brasil (Rio de Janeiro; cinco ocorrências), Illustração Brasileira (Rio de Janeiro; uma ocorrência), O Paiz (Rio de Janeiro; uma ocorrência), Diário da Manhã: órgão do partido constructor (Vitória; uma ocorrência), O Estado de Florianópolis (Florianópolis; uma ocorrência), Boletim de Ariel (Rio de Janeiro; dez ocorrências) Diario de Pernambuco (Recife; duas ocorrências), Correio

Paulistano (São Paulo; três ocorrências), A Voz do Mar (São Paulo; uma

ocorrência), Correio da Manhã (Rio de Janeiro; uma ocorrência), A Manhã (Rio de Janeiro; uma ocorrência), Para Todos (Rio de Janeiro; uma ocorrência),

Revista do Arquivo Municipal (São Paulo; uma ocorrência) e Anuario Brasileiro de Literatura (Rio de Janeiro; uma ocorrência). Infelizmente não foi possível

identificar nenhum destes periódicos como parte da Imprensa Negra.359

5.2 A Bahia de Outrora, seu autor e outras de suas publicações discutidas em