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No mundo barroco, o labirinto tem conotação existencial. O ser humano, de condição instável, peregrina no labirinto do mundo. Na poética walyana esta atitude pode desdobrar-se em mais de uma direção. Waly “cidadão do mundo”, nômade por distinção, conhecia bem as muitas veredas, o “mistério do mundo misturado”. Saindo do sertão de Jequié, “partindo para as súbitas, inéditas paisagens”, abraçando todos os lugares como aponta no poema “Cântico dos cânticos de Salomão” (1985): SENEGAL MADAGASCAR HONG KONG MÁLAGA RIO DE JANEIRO VALPARAÍSO WALY SALUT AU MUNDE!

São muitas as veredas que se bifurcam na poesia walyana para depois se reencontrarem, mais além, em muitas encruzilhadas em que o homem vai buscar o sentido de sua existência. Um labirinto rizomático, sem centro nem periferia, em que cada segmento pode ligar-se a outro, tornando possíveis todos os percursos. Sabemos que o labirinto é uma das muitas figuras do caos. É interessante observar que o caótico mundo de hoje retoma o gosto por esse tipo de representação em muitos autores. Em Tarifa de embarque Waly também aponta para essa questão:

Sou Sírio. O que é que te assombra, estrangeiro, se o mundo é a pátria em que todos vivemos, paridos pelo caos? A partir da observação de várias características da obra de Waly é possível percebê-lo como um poeta barroco/neobarroco; sobretudo, se considerarmos as afirmações de autores como Severo Sarduy e Omar Calabrese: “Por ‘barroco’ entenderemos (...) categorizações que excitam fortemente a ordenação do sistema e que o desestabilizam em algumas partes, que o submetem a turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à resolubilidade dos valores” (CALABRESE, 1988:39). O labirinto, figura típica barroca está presente na poética walyana. Discorrendo sobre sua obra, vemos como Waly “desestabiliza” um modo de ver e sentir o mundo, criando uma obra que, tomada no seu conjunto, propõe uma nova ordenação da sensibilidade, sem deixar de produzir (através dessa nova ordenação) um sentimento de caoticidade (entendendo caoticidade como imprevisibilidade ou ininteligibilidade da informação estética) no momento da fruição dessa obra.

O labirinto, novamente segundo Calabrese, "é apenas uma das formas do caos, entendido como complexidade, cuja ordem existe, mas é complicada ou oculta". Essa ordem "oculta" produz a perda do referencial. Ele afirma que as figuras do nó e do labirinto tiveram sua frequência máxima em momentos ditos “barrocos” da história. Calabrese atenta para o fato de que a representação figurativa do labirinto está ligada a uma complexidade inteligente, o que ele chama de "prazer da obnubilação", ou seja, o prazer de ver-se perdido e ser instigado a encontrar o centro do labirinto.

Todas as lendas, mitos, usos, jogos fundados na figura do labirinto se representam, de fato, com duas características intelectuais: o prazer da obnubilação perante a sua enextricabilidade (acompanhado do medo eventual), e o gosto de a vencer com as astúcias da razão (CALABRESE, 1987:145).

Seguindo Calabrese, poderíamos dizer que o labirinto walyano cria um "saber aberto", posto que em seus meandros e intersecções podemos sempre descobrir novas ramificações e caminhos para novos e surpreendentes significados, deixando o leitor "sempre sujeito ao risco da perda de orientação" causando em nosso espírito o prazer intelectual de descobrir uma ordem onde aparentemente não existe

nenhuma, só caos e mistério.

Essa conotação existencial do homem nos múltiplos labirintos da vida provoca a consciência das incertezas, reflete o sentimento de fugacidade, de brevidade das coisas, traço também marcante do barroco e presente na poesia walyana. O sentimento de efemeridade da vida é comum em todas as épocas. O medo, as incertezas, os questionamentos ontológicos acompanham o “homem humano”. A diferença é que o homem seiscentista era oprimido tanto pela igreja quanto pelo Estado. O importante para ambas as instituições era convencê-lo do poder e da soberania de Deus; enquanto o homem moderno, também inseguro, mas, sem a

opressão religiosa e estatal.

A presença iniludível da morte, também vista por Bandeira em seu poema “Consoada”, ou o destino trágico da vida evidenciado no “gauchismo drummondiano” e parodiado por Waly - “minha alegria permanece eternamente soterrada (...) ela é filha bastarda do desvio e da desgraça” - aponta como esses traços barrocos perduram na poética contemporânea. Essa angústia existencial, provocada pela certeza da morte e brevidade da vida, ou seja, o fato de não se saber “até onde essa estrada do tempo vai dar” como afirma Gilberto Gil, fez de Waly Salomão este errante em sua eterna busca - como alguém que se belisca pra ver se acordado sonha, compulsivo você ladainha o dito por Plutarco de que “nascer é penetrar em uma pátria estranha”. E como se não bastasse afirma:

O gozo de ser um Mortal. A porra da letra M talhada na palma da mão. O gozo de ser um Mortal, imaginariamente me destitui do caminho... (SALOMÂO, 2007:67)

O pessimismo, que pode ser considerado como conflito entre o eu e o mundo, caracterizado pela ideia de que a vida terrena é vista como triste, cheia de sofrimento, de que o homem já nasce condenado a morte, acaba por se manifestar no bojo do poema, apontando para uma escrita literária nova mas que retoma, no entanto, desinências barroquistas.

Nas algaravias de Waly um dos temas mais recorrentes e mais elaborados é o da viagem. O sangue sírio o leva, como mercador, a migrar diferentes épocas, por diferentes idades, pelas diferentes pessoas e mundos que o habita. A questão, no caso, decorre do tenso cotejo entre posições aparentemente antagônicas: de um lado, a vivência decepcionada e triste, estampada no poema “Jet-Lagged” que começa receoso, instável: “Viajar para que e para onde/se a gente se torna mais infeliz quando retorna? Infeliz e vazio, situações e lugares desaparecidos no ralo” e termina aventureiro: “Mas ficar, para que e para onde/se não há remédio, xarope ou elixir/se o pé não encontra chão onde pousar/.../ se viajar é a única forma de ser feliz

e pleno?”

Ainda de forma mais contundente, em “Anti-viagem” Waly define: “Toda viagem é inútil/medito à beira do poço vedado/para que abandonar seu albergue/largar sua carapuça de cágado/ e ser impelido corredeira rio abaixo?” Entre ir e ficar, Waly coerentemente opta pelo ir. Do outro lado, o eu lírico aposta na mudança que corrói o aconchego, a acomodação. “Mas algo flui, o irremediável/ queimando todas as pontes de regresso/todo passado está morto/só vive o que vem o que surge”. O sentido da viagem nos versos é a efetiva via de Waly, caminho talvez para lugar nenhum, ou para muitas algara (vias).

Ao penetrar nos textos walyanos o leitor sempre sentirá esse jogo de estar dentro e fora ao mesmo tempo. Um fora que não se basta e berra por um dentro. Há uma parte que busca o todo e um todo que não se basta na unidade. Há o vazio querendo o preenchimento e um preenchido que busca ser uno. Este movimento incessante de incompletude e busca é que faz com que a poesia de Waly assuma o sólido e o pulverizado, numa linguagem que se vale de artifícios concisos, densos, rigorosos, a que podemos nomear linguagem neobarroca.

No documento Waly Salomão: Algaravias do pós-tudo (páginas 78-82)