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Tarifa se Embarque: um Itinerário Para Todo/Qualquer Lugar

No documento Waly Salomão: Algaravias do pós-tudo (páginas 119-123)

5.2 O MEL DO MELHOR: AS INTERTEXTUALIDADES POÉTICAS

5.2.2 Tarifa se Embarque: um Itinerário Para Todo/Qualquer Lugar

S

Sem alfa nem ômega

Sem casulo a que nostalgiar

Sem oficina de reparo e recauchutagem Sem borboleta que regrida à anterior

criSálida. Waly Salomão Waly era consciente da nota dissonante que introduziu na nossa literatura recente. Ele faz a transição entre a tradição e a dissonância, característica da modernidade, sem se confessar seguidor de quaisquer escolas. Um poeta do seu tempo, visual, visceral e questionador, capaz de se deslocar em permanência, nômade por distinção que ao mesmo tempo inebria e conquista. Transita de persona à personagem, reencontra os gestos anteriores e o comportamento futuro; torna-se esse passeante atento a tudo. Daí a sempre nova aquisição de uma nova Tarifa de embarque, o salvo conduto de que se utiliza para desembarcar em qualquer terra e de qualquer jeito, mesmo que seja fora da ordem.

Tarifa de Embarque, seu último livro publicado em vida, cujo primeiro poema “Cântico dos cânticos de Salomão” evoca o sábio Salomão, já proclamava: “Eu não nasci para ser clássico de nascença (…)/ Fiz tudo ao contrário/ sou todo ao convulsivo” e não é difícil encontrar nesse furor existencial traços de Mário de Andrade ou do Português Fernando Pessoa.TE ressalta a presença do tom aforístico no livro, representado por pequenos clarões intensos como “perder o trono/preservar o troar do trovão” (no poema Garrafa) e pelo poema que dá nome a obra.

Tarifa de embarque.

“Sou sírio. O que é que te assombra, estrangeiro, se o mundo é a pátria em que todos vivemos, paridos pelo caos?

Tarifa de Embarque, diz José Thomaz Brum (PUC: 2000), confirma de forma eloquente o que os ouvintes de suas letras já sabiam: Waly é um artesão da palavra.

As suas poesias, feitas de uma garimpagem vocabular preciosa, são atravessadas por aquele sopro musical e profético que habita certos epigramas antigos e certos transes modernos. Em nenhum momento o livro é desmentido do dito do upanixade: “a essência da linguagem é o hino”. Entregue a uma inesgotável profusão de palavras sabiamente escolhidas, o seu poetar é também - e, sobretudo - marcado por uma malícia particular. Waly brinca seriamente com o wit, com a vivacidade própria aos grandes satirísticos, característica do barroco, encruzilhada de signos e temporalidades.

Entre os poemas de TE destacam-se o já citado “Cântico dos cânticos de Salomão”, impulsionado por uma oralidade inspirada que atravessa os países em busca, talvez, de um lar, de uma morada mais alargada que nossas origens sempre limitadoras. Esse espaço de cruzamentos desconhecem fronteiras, o seu lugar é em lugar nenhum e seu limite é o mundo. Vejamos como o poeta aponta para essa reflexão no poema “Estética da Recepção”:

Turris ebúrnea

Que o poeta brutalista é o espeto do cão.

Seu lar esburacado na lapa abrupta. Acolá ele vira onça E cutuca o mundo com vara curta.

O mundo de dura crosta é de natural mudo, e o poeta é o anjo da guarda

do santo do pau oco.

...

O mundo de surdas víboras sem papas nas línguas cindidas, Serpes, serpentes

Já que o poeta mimético se lambuza de mel silvestre, carrega antenas de gafanhoto mas não posa de profeta: “Ò voz clamando no deserto”.

O poema alterna crítica e preciosismo linguístico através da expressão latina Turris eburnea. Dialoga com Ferreira Gullar para mostrar na sua desatada ironia que o poeta não é mais um fingidor, nem um burilador parnasiano, o poeta hoje precisa caminhar no chão duro do asfalto. Podemos perceber também, nas entrelinhas, que o poeta aponta para o discurso bíblico ao se referir ao profeta João Batista que viveu como uma voz clamando no deserto, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre.

“Já que o poeta mimético se lambuza de mel silvestre, carrega antenas de gafanhoto, mas não posa de profeta”.

É preciso cutucar o cão com vara curta e no mundo de dura crosta em que viveu Waly, enfrentando as agruras, inclusive, do cárcere, ele bem soube convergir lirismo, sofrimento e sabedoria, pois é necessário “suportar a vaziez como um faquir que come sua própria fome”. Mascarado avanço é a “música de câmera” do livro, em que uma ternura sussurrada produz um poema espantosamente calmo, deixando na surdina as fúrias e assombros do poeta.

Segundo Manuel da Costa Pinto em especial para a Folha Caderno Mais (2.7.2000), em Tarifa de Embarque o escritor baiano mistura uma oralidade demoníaca com doses incandescentes de iluminações oraculares, fazendo de suas reminiscências e de suas obsessões pessoais o suporte sensível de uma mirada do mundo dotada de um admirável poder de meditação filosófica. Infelizmente quanto maior o voo maior é a queda, diz o poeta: o turbilhão poético com que WS procura erigir “uma fonte e origem e lugar ao sol/na moldura acanhada do mundo” pode bem ser uma traição a esse projeto libertário de instaurar “um porto onde a gaia ciência jogue suas âncoras”.

Os poemas contidos em TE nos permite fazer uma análise literária apontando o cruzamento da sensibilidade barroca desse “embaralhador de registro de vozes” com sua releitura dionisíaca do modernismo, que transformou obras como Algaravias e Lábia na fina flor da poética tropicalista. O projeto poético do baiano de Jequié se respaldava e se escudava na importância da palavra e suas formas de uso, como elemento catalisador das forças anímicas do universo de função construtora, regeneradora e redentora do homem tanto para o bem quanto para o mal. Daí a ênfase dada a Lábia.

É o próprio Waly quem dá à direção, o mapa, a trilha que percorre o poema “Tarifa de Embarque”. Por trás de um poeta de formação clássica avant la lettre, um autor consciente de nossa tradição de rigor e antiretórica (cafungo minha dose diária de Murilo e Drummond) está um poeta de ritmo dissoluto: “Eu não nasci para ser clássico de nascença: /assestar o olímpico olhar sobre o mundo nítido, /filtrar os miasmas externos e os espasmos do ego, / sob a impossibilidade dos céus tranqüilos e claros... /fiz tudo só contrário”, diz Waly em “Elipses Sertanejas”. Esse elogio do êxtase tem um sentido claro: Waly procura se colocar ao lado de poetas e

pensadores que buscam fugir das identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de um perpétuo devir. Podemos perceber isso claramente, quando o poeta evoca Goethe no poema Devenir, Devir:

Término de leitura de um livro de poemas não pode ser o ponto final Também não pode ser A pacatez burguesa do Ponto seguimento. Meta desejável Alcançar o ponto de ebulição Morro e transformo-me Leitor eu te respondo a legenda de Goethe: Morre e devém. Morre e transforma-te.

Podemos observar o domínio da filosofia nas relações intertextuais da obra poética. A morte como transformação, por exemplo. Percebe-se, de modo inexplícito, a sombra de Nietzsche que se projeta no título e nos versos do poema “Nomadismos” (“Capacidade de aderência absoluta ao instantâneo/O gozo da fluidez do momento”). O Nomadismo de Waly, já evidenciado na canção “Alteza” reaparecerá mesmo naqueles poemas em que ele surge mais rente a sua errância, a sua geografia pessoal, (como no poema “Janela de Marinetti” no qual se percebe a presença viva da Bahia, especialmente da sua cidade Jequié) transformando sua dupla herança de filho de pai sírio e mãe sertaneja num desafio órfico a ordem do mundo.

Esse espírito viajante e inquieto, como afirma em “Vapor Barato”: barco sem porto, sem rumo, sem vela/cavalo sem sela, bicho solto, cão sem dono/menino bandido, às vezes me preservo noutras, suicido...; essas “simbioses sonambúlicas com os cenários cambiantes”, esses “cios com o caos e os cosmos invertidos”,

conforme Antonio Risério, revelam, enfim, uma confiança ilimitada na capacidade de regeneração do mundo pela poesia.

Os poemas de Lábia (1998) e Tarifa de embarque (2000) confirmam a viagem e a metamorfose como marcas salomônicas. A notação frenética, veloz, os versos alternadamente estilhaçados e cerrados, mas sempre tortuosos, agitados, sustentam uma poética definitivamente barroca em seus volteios, volutas e sensualidade. Uma poética (vio) lenta, que, antibandeirianamente, “faz versos como quem morde”. O sujeito poético entrega-se à ilogicidade e ao irracional tanto quanto ao mais preciso projeto. Perfeito e falho, forte e frágil, ele se define: “não sou uno, monolítico, inteiriço”. Íntimo dos parangolés de Hélio Oiticica, da alegria solar tropicalista, Waly supera a possível dor da fragmentação e qualquer nostalgia da unidade, entregando-se à potência sensorial da poesia: “Gozar, gozar e gozar/a exuberância órfica das coisas”. É o mel do melhor.

Ao final de Tarifa de Embarque, o leitor pode, legitimamente, se perguntar para onde embarca o poeta? “Eu respondo”, diz José Thomaz Brum (2000): para alguma praia onde seja permitido que o hip-hop conviva com a leitura de Cioran, onde o carnaval possa ser acrescido de meditações hispânicas (Unamuno) e cantares lusitanos (Camões). A personalidade misturada de Waly reflete-se na sua poesia: generosa, transbordante, contraditória, inclusiva.

No documento Waly Salomão: Algaravias do pós-tudo (páginas 119-123)