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O LATIM APÓS O FIM DO IMPÉRIO AQUECIMENTO

Imagine que você está assistindo a uma palestra numa universidade e o palestrante usa expressões como Bellum omnĭum contrā omnēs (‘Uma guerra de todos contra todos’), Cogĭtō ergō sum (‘Penso, logo existo’), Hypothĕsēs non fingō (‘Não moldo hipóteses’) ou Nātūra non facit saltūs (‘A natureza não dá saltos’), com a propriedade de quem as conhece. Como você reagiria? Que juízo faria dessa pessoa? Por quê?

Pensou? Pois acabemos o nosso percurso pela história da língua latina.

Quando, ao longo do século VI, as escolas desapareceram porque os municípios não podiam pagar os mestres, foi a Igreja que guardou o estudo da língua latina. Fundaram-se escolas junto às igrejas e aos mosteiros, onde não se lia a Eneida, de Virgílio, mas a Bíblia. Com efeito, somente os clérigos tinham acesso às fontes do conhecimento escolar, embora esse conhecimento tenha decaído de tal maneira que a língua grega, tão prezada pelos romanos, foi esquecida. O latim continuou, pois, a ser a língua escrita e culta da cristandade ocidental. A literatura não cessou, tanto que ainda se contam grandes escritores, como:

Boécio (475-525), que firmou a vitória da fé cristã entre os romanos, tanto pela sua linhagem nobre como por se ter dedicado à filosofia grega clássica;

Venâncio Fortunato (c. 530-609), bispo de Poitiers, hagiógrafo em verso e prosa, mas sobretudo fecundo poeta de panegíricos e hinos, dos quais dois, o Pange lingua ‘Canta, língua’ e o Vexilla

rēgis ‘Os estandartes do rei’, estão incorporados na liturgia romana;

Gregório de Tours (c. 538-594), autor da Historĭa Francōrum ‘História dos francos’;

o papa Gregório Magno (c. 540-604), quem, ao mesmo tempo que foi escritor notável, repudiou a literatura não cristã;

Portanto, a história da língua latina não acabou com o Império romano no Ocidente. No que diz respeito ao seu uso, não houve nenhuma quebra. O que houve foi uma infiltração paulatina de elementos da língua falada — o chamado latim vulgar — na escrita, que, de resto, começara a aparecer nos autores romanos tardios.

Na verdade, formas do latim vulgar estão espalhadas por todo o corpus do latim, mas na literatura elas se amiudaram muito mais nas obras desses escritores tardios. Como o padrão do latim é a norma literária do século I a.C., esse latim impregnado da fala ordinária pareceu bárbaro aos pósteros, tanto que em 782, Carlos Magno, rei dos francos, convidou o monge Alcuíno de York a ensinar na escola da sua corte. O trabalho de Alcuíno foi decisivo na reaproximação do latim então escrito ao latim clássico, o que, na verdade,

fez parte de um quadro mais amplo de valorização da Antiguidade clássica e de expansão da escolarização, chamado Renascimento Carolíngio. Convém lembrar que Carlos Magno foi coroado imperador dos romanos (Imperātor Rōmānōrum) pelo papa Leão III no Natal do ano 800 em Roma, origem do Sacro Império Ro- mano-Germânico, que perdurou até 1806.

Contudo, a reforma encabeçada por Alcuíno produziu um efeito colateral con- trário ao que se almejava: o divórcio cabal entre a língua falada e a escrita. Quando se procurou restaurar esta à imagem do latim clássico, a distância agigantara-se após tantos séculos. As pessoas começaram, então, a julgar que a língua que falavam era outra dife- rente do latim, nome da língua que escreviam. Como essas pessoas ainda se identificavam como romanos, enquanto descendentes dos antigos romanos, começaram a chamar ro-

mance à língua falada. A palavra romance vem da forma adverbial do adjetivo rōmānĭcus

(sinônimo de rōmānus ‘romano’), ou seja, rōmānĭcē ‘à romana’. Esse romance não era senão o português, o espanhol, o francês, o italiano etc. quando ainda não tinham esses nomes específicos. Aliás, é por isso que são classificados como línguas românicas.

O testemunho mais antigo desse novo estado de coisas é o artigo 17 dos cânones do Concílio de Tours, no qual se ordenou que os pregadores traduzissem as suas homi- lias ‘para a língua romana rústica ou a tudesca’ (“in rūstĭcam Rōmānam linguam aut

Thiotiscam”), para que todos pudessem entender mais facilmente o que se dizia. Desde

então, pode-se dizer que o latim se tornou uma língua morta, ou, trocando em miúdos, uma língua que não é a vernácula de nenhum povo, uma língua de ninguém, mas que

todos continuaram a escrever. É claro que a expressão língua morta é uma metáfora, dado que as línguas nem nascem nem morrem como se fossem seres vivos: não houve uma noite em que as pessoas foram dormir falando latim e despertaram falando romance... Em outras palavras, a transformação do latim nas línguas românicas foi uma mudança ideológica, de percepção: as pessoas foram deixando de perceber o latim como a língua que falavam.

Durante o resto da Idade Média, o latim — ou melhor, o latim medieval, para diferençá-lo do latim como língua do povo romano — continuou a ser dominante nos âmbitos de uso mais formais. Após o Re- nascimento dos séculos XV e XVI, outra revalorização da Antiguidade clássica, dessa vez mais vasta e mais profunda que a carolíngia, o uso de línguas vernáculas crescera consideravelmente: tinham acumulado certo patrimônio literário, empregavam-se no governo e começavam a ser codificadas. Por conseguinte, o latim — ao qual agora convém chamar latim renascentista e, depois do Renascimento, neolatim (não confunda com as línguas neolatinas, outro nome para as línguas românicas) — tornou-se ainda mais artificial, restringindo-se à diplomacia, ciência, educação e religião.

Na diplomacia, ainda que bilíngue (francês-latim), o Tratado de Viena, assinado pela França e pelo Sacro Império Romano-Germânico entre 1735 e 1738, foi o primeiro redigido em língua vernácula. Mas, em data tão recente quanto 1844, o latim ainda era a língua oficial do reino da Hungria. Quanto à ciência, o último grande cientista que empregou o latim foi Carlos Lineu (1707-1778), que estabeleceu a nomenclatura científica dos seres vivos nessa língua. Antes dele, homens do talhe de Giambattista Vico, Gottfried Leibniz, Isaac Newton, Bento de Espinosa, René Descartes, Thomas Hobbes, Johannes Kepler, Galileu Galilei e Fran- cis Bacon compuseram ao menos parte da sua obra em latim. No tocante à educação, em Portugal e nas suas colônias ensinou-se em latim até 1759, quando o rei Dom José I, secretariado por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, expulsou os jesuítas e reformou o ensino, que passou a ser ministrado em português. Não obstante, os candidatos ao doutorado em Letras da Sorbona (Universidade de Paris) tinham de apresentar uma tese complementar em latim até 1903! E até hoje nas universidades inglesas de Cambridge e Oxford e nas norte-americanas de Harvard e Princeton há cerimônias em que se pronuncia um discurso em latim.

Figura 10 – O Impera- dor Carlos Magno, de Albrecht Dürer (1512).

O uso religioso do latim merece um esclarecimento à parte. O latim é a língua dos ritos ocidentais da Igreja Católica, mas foi trocada quase em toda a parte por línguas vernáculas quando se permitiu o emprego destas em 1963, no bojo do Concílio Vaticano II. Também foi, como ainda é, a língua oficial da Santa Sé, isto é, a sé da diocese de Roma, cujo bispo é o papa, que governa a Igreja Católica. Isso não quer dizer que se fale latim no Vaticano. Ainda que se diga amiúde Vaticano quando a referência é, na verdade, a Santa Sé, são entidades di- ferentes. O Estado da Cidade do Vaticano foi constituído para garantir a indepen- dência e soberania da Santa Sé. As leis do Vaticano são escritas em italiano e é essa a língua que emprega a sua administração. A bem da verdade, a Santa Sé é hoje mais plurilíngue com o predomínio do italiano do que bilíngue em latim e itali- ano. Portanto, apesar de haver uma Pontifícia Academia da Latinidade no Vati- cano, o latim eclesiástico é tão artificial quanto o neolatim científico-acadêmico, e o seu uso aí não passa de tradição litúrgica e obrigação protocolar.

Ao fim e ao cabo, essas relíquias contemporâneas são, precisamente por estarem tão longe do latim enquanto língua dos romanos, prova da transcendência ímpar dessa língua na história da civilização ocidental. Em outras palavras, a lín- gua latina possui um poder simbólico tão grande que, mesmo depois da sua vigên- cia histórica, se forjaram formas artificiais suas para fazer crer que se mantinha a língua de Roma.

APROFUNDANDO A REFLEXÃO

1. O lema de Andorra é Virtūs ūnīta fortĭor (‘A força unida é mais forte’), o do Canadá é Ā marī usque ad mare (‘De um mar até outro mar’), o da Espanha é Plūs ultrā (‘Mais além’), o dos Estados Unidos é Ē plūrĭbus ūnum (‘De vários, um’) e o da Suíça é V̄nus prō omnĭbus, omnēs prō ūnō (‘Um por todos, todos por um’). Por que será que esses países abriram mão das suas próprias línguas pelo uso do latim?

2. Como estudamos neste capítulo, uma das instituições mais apegadas ao uso do latim é a universidade. Você já percebeu que a maioria dos lemas das universidades brasileiras não está em português, mas em latim? Por exemplo, o da Universidade Federal do Ceará (UFC) é exatamente o mesmo de Andorra: Virtūs ūnīta fortĭor. Pesquise e cite um lema em latim de universidade brasileira. Uma dica: acesse o sítio da universidade na Internet e observe o bra-

são dela, pois o lema geralmente é gravado nele.

Figura 11 – Terceira carta encí- clica do papa Bento XVI (2009). Perceba que o título está em la- tim, mas o texto é difundido nas línguas mais faladas pela cris- tandade, como o próprio portu- guês.

Figura 12 – Brasão de Andorra.

Figura 13 – Brasão da UFC.