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Um dos legados mais perenes da civilização romana é o direito. O direito romano teve origem nos costumes (morēs) nos tempos mais antigos da Cidade e o primeiro código de leis foram as chamadas Leis das Doze Tábuas (Duodĕcim Ta-

bulārum Lēgēs), que remontam aos anos de 451 e 450 a.C. Os romanos não produ-

ziram uma obra com a mesma oficialidade até meados do século V d.C., quando Teodósio II, imperador no Oriente, promulgou um código em que se coligiam cons- tituições imperiais desde o governo de Constantino. O Código Teodosiano, como é chamado, entrou em vigor em 438 no Oriente e no ano seguinte no Ocidente.

Já após a queda do Império no Ocidente, Alarico II, rei dos visigodos, fez compilar o direito romano a partir do Código Teodosiano e outras fontes, compila- ção conhecida como Breviário de Alarico, promulgada em 506. Algo semelhante foi empreendido durante o reinado de Justiniano (527-565), imperador bizantino. Algo semelhante mas, na verdade, muito maior.

Voltando à península Ibérica, o rei Recesvinto revogou o Breviário de Alarico trocando-o por um código mais abrangente, o qual foi promulgado em 654 e transmitido sob diversos títulos. A forma castelhana de um desses títulos — Fuero Juzgo, de Forum Iūdĭcum — nomeou a tradução que o rei Fernando III de Castela mandou lavrar em 1241. O seu sucessor, Afonso X o Sábio, promoveu, entre 1256 e 1265, a com- posição de duas grandes obras jurídicas: o Fuero Real e as Siete Partidas, estas com grande influência do direito romano justinianeu. Ambas eram usadas como direito subsidiário em Portugal, embora, à medida que a

Figura 21 – Corpus Iūris Cīuīlis (1512).

universidade portuguesa foi consolidando-se, foi-se preferindo o estudo direto do corpus justinianeu ou por meio de glosas e comentários. A própria difusão do direito romano justinianeu dera-se a partir da Universi- dade de Bolonha, na Itália, no século XII.

Com efeito, em Portugal, além do Código Visigótico, eram fontes do direito as leis gerais que os reis promulgavam e o costume. Tal variedade demandou, então, a compilação de um código próprio, o qual foi acabado em 1446, no reinado de Dom Afonso V, daí chamado Ordenações Afonsinas, as quais foram revistas e refundidas du- rante o reinado de Dom Manuel I. A versão publicada em 1521 é conhecida, justamente, como Ordenações Manuelinas. Enfim, levou-se a cabo outra reforma no reinado de Fi- lipe I (II de Castela), a qual saiu em 1603, quando já reinava Filipe II (III de Castela), daí chamadas Ordenações Filipinas. O direito romano justinianeu permaneceu como fonte subsidiária desde as Ordenações Afonsinas.

No Brasil, as Ordenações Filipinas vigoraram até 1916, quando se promulgou o nosso primeiro Código Civil, que continuou fiel à tradição jurídica portuguesa, em- bora tenha recebido influências dos códigos civis francês de 1804 e alemão de 1896, alicerçados, à sua vez, em grande medida sobre o direito romano justinianeu.

Em outras palavras, seja através da lenta evolução do direito romano vulgar misturado aos direitos germânico e canônico até as Ordenações Filipinas, seja através do uso subsidiário do direito romano justinia- neu, também através das influências dos códigos civis francês e alemão sobre o nosso de 1916, o direito brasileiro é fundamentalmente romano!

O texto citado são dois parágrafos do título II do livro XLVII do Digesto, que é a segunda parte do

Corpus Iūris Cīuīlis ‘Corpo de Direito Civil’, como é conhecida a grande obra jurídica de Justiniano desde o

século XVI. A primeira parte é o Cōdex Iūstīniānus ‘Código Justiniano’, composto de doze livros nos quais se compilaram constituições imperiais desde o governo de Adriano. O Digesto ou Pandectas compõe-se de cinquenta livros, nos quais se coligiram opiniões de jurisconsultos desde os tempos da República. Seguem-se- lhe as Īnstitūtiōnēs ‘Instituições’, quatro livros que conformam um manual para a aprendizagem do direito. GRAMÁTICA

Leiamos o texto original:

Īdem scrībit, sī, cum mihi decem dēbērentur, seruus pignōrī datus subtractus sit, sī actiōne furtī cōnsecūtus fuĕrō decem, non competĕre mihi furtī actiōnem, sī itĕrum subripiātur, quia dēsĭit mea interesse, cum semel sim cōnsecūtus. Hoc ita, sī sine culpā meā subripiātur: nam sī culpā meā, quia intĕrest eō quod tenĕor pignerāticĭā actiōne, agĕre potĕrō. Quod sī culpa abest, sine dubĭō domĭnō com- petĕre actĭō uidētur, quae crēditōrī non compĕtit. Quam sententĭam Pompōnĭus quoque lībrō decĭmō ad Sabīnum probat.

Īdem dīcunt, et sī duo seruī subreptī sint simul, competĕre utrīusque nōmĭne furtī actiōnem crēditōrī, sed non in tōtum, sed prō quā parte, in singŭlōs dīuīsō eō quod eī dēbētur, eius intĕrest: sēparātim autem duōbus subreptīs, sī ūnīus nōmĭne sōlĭdum cōnsecūtus sit, alterīus nihil cōnsequētur.

Observe as sentenças seguintes:

1.b. Cum semel cōnsecūtus sim, interesse mea dēsĭit.

2.b. Pompōnĭus quam sententĭam ad Sabīnum decĭmō lībrō quoque probat.

3.b. Sī duo seruī simul subreptī sint, īdem furtī actiōnem crēditōrī utrīusque nōmĭne competĕre dīcunt, sed non in tōtum, sed prō quā parte eius intĕrest, eō quod eī in singŭlōs dēbētur dīuīsō.

4.b. Duōbus autem sēparātim subreptīs, sī sōlĭdum ūnīus nōmĭne cōnsecūtus sit, nihil alterīus cōnsequētur.

Figura 22 – Ordenações Filipinas.

Em português:

1.a. Por já ter conseguido uma vez, o meu interesse cessou.

2.a. Pompônio aprova também essa sentença no livro décimo a Sabino.

3.a. Se dois servos forem roubados ao mesmo tempo, a ação de furto compete ao credor a nome de um e do outro, mas não no todo, e sim pela parte que é do seu interesse, dividido em cada um o que lhe é devido.

4.a. Mas roubados separadamente os dois, se conseguir a totalidade a nome de um, não con- seguirá nada do outro.

Perceba que em latim não há somente palavras que quantificam com precisão outras, como duo em 3.b, e que assinalam o lugar de algo numa série, como decĭmō em 2.b, palavras que temos igualmente em português, as quais têm os nomes técnicos de numerais cardinais e numerais ordinais e respondem respectiva- mente às perguntas Quot? ‘Quantos?’ e Quotus? ‘Qual?’. Mas há também palavras que assinalam como algo se agrupa com outras coisas, como singŭlōs, em 3.b, e quantas vezes acontece um processo, como semel, em 1.b, as quais têm os nomes técnicos de numerais distributivos e numerais adverbiais e respondem respectiva- mente às perguntas Quotēnī? ‘Quantos para cada?’ e Quotĭēs? ou Quotĭēns? ‘Quantas vezes?’.

Eis o rol dos numerais em latim:

numerais algarismo

arábico algarismo romano cardinais ordinais distributivos adverbiais

1 I ūnus prīmus singŭlī semel

2 II duo secundus bīnī bis

3 III trēs tertĭus ternī ter

4 IIII ou IV quattŭor quārtus quaternī quater

5 V quīnque quīntus quīnī quīnquĭēs

6 VI sex sextus sēnī sexĭēs

7 VII septem septĭmus septēnī septĭēs

8 VIII octō octāuus octōnī octĭēs

9 VIIII ou IX nouem nōnus nouēnī nouĭēs

10 X decem decĭmus dēnī decĭēs

11 XI ūndĕcim ūndecĭmus ūndēnī ūndecĭēs

12 XII duodĕcim duodecĭmus duodēnī duodecĭēs

13 XIII tredĕcim tertius decĭmus ternī dēnī terdecĭēs 14 XIIII ou XIV quattuordĕcim quārtus decĭmus quaternī dēnī quaterdecĭēs 15 XV quīndĕcim quīntus decĭmus quīnī dēnī quīndecĭēs 16 XVI sēdĕcim sextus decĭmus sēnī dēnī sexĭēsdecĭēs 17 XVII septendĕcim septĭmus decĭmus septēnī dēnī septĭēsdecĭēs 18 XVIII duodēuīgintī duodēuīcēsĭmus duodēuīcēnī duodēuīcĭēs 19 XVIIII ou XIX undēuīgintī undēuīcēsĭmus undēuīcēnī undēuīcĭēs

20 XX uīgintī uīcēsĭmus uīcēnī uīcĭēs

30 XXX trīgintā trīcēsĭmus trīcēnī trīcĭēs

40 XXXX ou XL quadrāgintā quadrāgēsĭmus quadrāgēnī quadrāgĭēs 50 L quīnquāgintā quīnquāgēsĭmus quīnquāgēnī quīnquāgĭēs

60 LX sexāgintā sexāgēsĭmus sexāgēnī sexāgĭēs

70 LXX septuāgintā septuāgēsĭmus septuāgēnī septuāgĭēs

80 LXXX octōgintā octōgēsĭmus octōgēnī octōgĭēs

90 LXXXX ou XC nōnāgintā nōnāgēsĭmus nōnāgēnī nōnāgĭēs

100 C centum centēsĭmus centēnī centĭēs

200 CC ducentī ducentēsĭmus ducēnī ducentĭēs

300 CCC trecentī trecentēsĭmus trīcēnī trecentĭēs 400 CCCC ou CD quadringentī quadringentēsĭmus quadringēnī quadringentĭēs

500 D quīngentī quīngentēsĭmus quīngēnī quīngentĭēs

600 DC sescentī sescentēsĭmus sexcēnī sexcentĭēs

700 DCC septingentī septingentēsĭmus septingēnī septingentĭēs 800 DCCC octingentī octingentēsĭmus octingēnī octingentĭēs 900 DCCCC ou CM nōngentī nōngentēsĭmus nōngēnī nōngentĭēs

1.000 M mīlle mīllēsĭmus singŭla mīlĭa mīllĭēs

2.000 MM duo mīlĭa bis mīllēsĭmus bīna mīlĭa bis mīllĭēs

Veja que o sistema numérico romano é decimal. Os nomes dos números de 1 a 10 são os primitivos e os dos demais são derivados, com uma particularidade em relação ao português: a antepenúltima e a penúl- tima unidades são expressas por diminuição, por exemplo duodēuīgintī ‘dezoito’, ūndēuīgintī ‘dezenove’; du-

odētrīgintā ‘vinte e oito’, ūndētrīgintā ‘vinte e nove’.

É possível identificar alguns morfemas nos derivados dos números: Nos cardinais,

a dezena é expressa por -gint- (uīgintī, trīgintā, quadrāgintā...)

e a centena, por -cent- (ducentī, trecentī, sescentī), ou -gent- após consoante nasal (qua-

dringentī, quīngentī, septingentī...);

os ordinais,

por -t- (quārtus, quīntus, sextus),

-o- (septĭmus, octāuus, nōnus, decĭmus)

ou -ēsĭm- (uicēsĭmus, trīcēsĭmus, quadrāgēsĭmus...); os distributivos, por -(ē)n- (bīnī, trīnī, uīcēnī, trīcēnī...); os adverbiais por -ĭēs (quīnquĭēs, sexĭēs, septĭēs...).

Enfim, observe na sentença 4.b que os números duōbus e ūnīus têm terminações características da declinação. Efetivamente, duōbus está no ablativo (desinência -bus da 3.ª, 4.ª e 5.ª declinações) e ūnīus, no genitivo (desinência -īus dos demonstrativos e indefinidos). Dos cardinais até ducentī, apenas ūnus, duo e trēs declinam-se:

declinação do numeral ūnus

gênero nominativo acusativo dativo ablativo genitivo caso masculino ūnus ūnum

ūnī ūnō ūnīus

neutro ūnum

feminino ūna ūnam ūnā

declinação do numeral duo

gênero nominativo acusativo dativo ablativo genitivo caso

masculino duo duōs duōbus duōrum

neutro duo

feminino duae duās duābus duārum

declinação do numeral trēs

gênero nominativo acusativo dativo ablativo genitivo caso masculino trēs

tribus trium feminino

neutro tria

Perceba que ūnus se declina como um indefinido no singular, duo meio como um nome da 2.ª decli- nação meio como um da 3.ª e trēs como um da 3.ª.

Os numerais cardinais de ducentī a nōngentī, bem como os distributivos, declinam-se como adjetivos triformes no plural. Os ordinais também se declinam como adjetivos triformes, mas apresentam as formas tanto do singular como do plural.

Enfim, quanto à função sintática, os numerais cardinais, ordinais e distributivos desempenham as funções do nome, como se fossem pronomes demonstrativos ou indefinidos. Os adverbiais, como o nome sugere, funcionam como adjunto adverbial, embora haja dois sufixos que formam nomes correspondentes a eles: -pl-, declinado como um adjetivo triforme, e -plĭc-, declinado como um adjetivo uniforme, por exemplo

simplus, duplus, triplus etc., que significam ‘que tem uma vez a medida de’, ‘que tem duas vezes a medida de’,

‘que tem três vezes a medida de’, e simplex, duplex, triplex etc., que significam ‘que tem uma parte’, ‘que tem duas partes’, ‘que tem três partes’.

APROFUNDANDO A REFLEXÃO

Como os romanos ordenavam o tempo? Pesquise sobre como expressaram as horas do dia, os dias da semana, os dias do mês e os meses do ano ao longo da sua história.