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CAPÍTULO 2 O CONTEXTO EDUCACIONAL NA CONTEMPORANEIDADE: O

2.3 Multi e novos letramentos: por que não na escola?

2.3.1 O letramento no singular com um sentido já plural

Para Soares (1999), “letramento” é uma palavra que chegou ao vocabulário da Educação e das Ciências Linguísticas em meados de 1980. Embora o termo em inglês literacy estivesse dicionarizado como alfabetização, a autora esclarece as distinções entre alfabetização e letramento ao afirmar que um indivíduo pode não saber ler e escrever, sendo considerado analfabeto, mas se envolver em práticas sociais de leitura e de escrita, ou seja, ser letrado para agir em determinadas situações sócio comunicativas. Sendo assim, pode-se afirmar que letrado é o indivíduo que participa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz uso formal da língua. Desse modo, as discussões sobre letramento surgem, de acordo com Magda Soares, diante da necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais complexas que as práticas do ler e do escrever que são resultantes da aprendizagem do sistema de escrita.

Kleiman (1995), que também muito contribuiu para os avanços dos estudos relacionados ao letramento no Brasil, evidencia o distanciamento das práticas de letramento que ocorrem dentro e fora da escola, instituição considerada por ela como a mais importante das agências de letramento.

Essas discussões tiveram como base o movimento dos Novos Estudos do Letramento (The New Literacy Studies – NLS), que se consolidou na década de 80. Conforme Terra (2013), essa nova perspectiva de estudos referidos ao letramento traz princípios e pressupostos teóricos importantes, dos quais se destacam, por exemplo, dois pares de conceitos- chave: o binômio modelo autônomo e modelo ideológico de letramento; e dois componentes básicos do letramento, quais sejam os eventos e as práticas de letramento.

Em relação aos modelos autônomo e ideológico de letramento, enquanto no primeiro o foco está no indivíduo, desconsiderando-se a natureza social do letramento e o caráter plural de suas práticas, no segundo, há o reconhecimento de que as práticas sociais variam de um contexto para outro e se transformam ao longo da história. Segundo Terra (2013, p. 45) o modelo ideológico defende que:

(i) o letramento é uma prática social e não simplesmente uma habilidade técnica e neutra; (ii) os modos como os indivíduos abordam a escrita têm raízes em suas próprias concepções de aprendizagem, identidade e existência pessoal; (iii) todas as práticas de letramento(s) são aspectos não apenas da cultura mas também das estruturas de poder numa sociedade.

A respeito dos dois componentes básicos do letramento, práticas e eventos, segundo Street (2014),

O conceito de “práticas de letramento” se coloca num nível mais alto de abstração e se refere igualmente ao comportamento e às conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos usos da leitura e/ou da escrita. As práticas de letramento incorporam não só “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos populares desses eventos e as preocupações ideológicas que os sustentam. (STREET, 2014, p. 18).

Diante dessa definição, dois conceitos estreitamente relacionados podem ser considerados. Assim, os eventos de letramento, que acontecem em diferentes espaços sociais, com funções e de formas diversas, são, na verdade, episódios observáveis que resultam de práticas de letramento e que são moldados por essas práticas, como afirmam Barton, Hamilton e Ivanic (2000). Desse modo, ao ler uma notícia, ao escrever uma mensagem e enviar um e- mail, ao postar e comentar em sites de redes sociais, ao anotar tarefas em uma agenda, ou seja, ao constituir e participar de eventos de letramento, o fazemos a partir de nossas vivências, de nossas práticas de letramento, que envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais, e, por isso, são consideradas mais abstratas.

Considerando esses dois conceitos, segundo Bragança e Baltar (2016), para a esfera escolar, as implicações mais gerais sugerem que a ação docente deve desvelar quais são os

valores associados às práticas de letramento dos estudantes, para, assim, intervir, de modo eficaz, nos eventos de letramento, nos usos reais da língua(gem). Podemos relacionar essa ação docente discutida a partir dos NLS ao que propõe a Pedagogia dos Multiletramentos quando esta apresenta como um de seus componentes a Prática Situada33, sinalizando a importância da imersão nas vivências dos estudantes, como será discutido na seção seguinte.

Tendo em vista a pesquisa que compartilho por meio desta dissertação, é possível estabelecer ainda outras relações com os conceitos mencionados dentro do arcabouço teórico dos NLS. Como já explicitado, o curso de extensão que se configurou como campo de geração de dados para esta pesquisa tem sua temática centrada nos multiletramentos e novos letramentos. Assim, o que se buscou no decorrer do curso foi oportunizar vivências teórico- práticas que contribuíssem para a formação continuada dos professores-cursistas no que tange à apropriação crítica e consciente de novas tecnologias em suas práticas escolares. Diante disso, pode-se dizer que o que se preconizou, então, foi o modelo ideológico de letramento, uma vez que, em nossas discussões, as práticas de letramentos eram sempre concebidas como sociais e como aspectos da cultura e das estruturas de poder de nossa sociedade.

Não se pode negar a complexidade disso. A compreensão de que nossas práticas não são neutras ainda não sucede em inúmeros contextos, inclusive na escola. Desse modo, faz sentido pensar na importância de sujeitos com uma nova mentalidade, mais atentos ao fato de que nossas práticas, por serem socialmente situadas, são ideológicas, de que as novas tecnologias das quais nos apropriamos a todo momento na contemporaneidade são ideológicas. Em suma, é importante que fique claro que, nos NLS, a perspectiva de práticas de letramento vai além da aquisição de habilidades para o uso da língua(gem). O letramento passa a ser concebido como prática social, o que faz com que se reconheça a existência de múltiplos letramentos, haja vista que variam de acordo com o espaço e o tempo em que se situam. Entre esses múltiplos letramentos, estão aqueles ligados, em alguma medida, às novas tecnologias que redefinem muitas de nossas práticas cotidianas. Posto isso, novos estudos vão sendo empreendidos com vistas a compreender o momento que se vivencia para ser e agir de modo consciente. A seguir, serão apresentados dois desses estudos, os concernentes aos multiletramentos e aos novos letramentos, perspectivas que são fundantes para esta pesquisa.