De Sergipe até a Bahia, o U-507 fez uso de todo o seu arsenal bélico. Torpedos, canhões, tiros e granadas incendiárias, evidenciando assim, a sua versatilidade para impor o maior ataque naval da costa do Brasil no tempo da Segunda Guerra Mundial. Para uma realidade distante do epicentro europeu, o referido submersível empreendeu um feito notável ao desenvolver operações navais sequenciadas em áreas sul-atlânticas pouco guarnecidas pelos Estados Unidos e pelas Forças Armadas do Brasil. Contudo, as baixas da Marinha Mercante demonstraram toda a fragilidade militar do país. Além disso, a mobilização282 para resgatar os náufragos foi executada à base do improviso pelos litorâneos.
Para compreender a guerra dos U-boats na costa do Brasil, o historiador precisa interpretar as circunstâncias de cada naufrágio. O ato de torpedear nunca será um evento igual, em outras palavras, a história não se repetiu. Cada acontecimento militar se revestiu de dimensões implícitas, envolveu diferentes tipos de barcos, apresentou circunstâncias aquáticas singulares e contou com experiências individualizadas e coletivas.
Após o estudo do barco (rota, carga, tripulantes e passageiros), o historiador também precisa ampliar sua escala de visão para o todo, ou seja, para o conjunto de navios atacados pelo U-507, relacionando-os às referências da geografia costeira e tradições litorâneas. Somente assim, ficará esclarecida uma logística militar ambiciosa da Kriegsmarine, que procurou estrangular as linhas navais entre os portos brasileiros.
Os êxitos se acumularam numa sequência triunfal para o U-507. Entre os aspectos que facilitaram a atuação dos submarinistas alemães na costa do Brasil, destacaram-se: 1 – A corrente marítima do Brasil, que facilitou a movimentação do U-507 no sentido norte-sul; 2 – Os faróis dispersos pelo litoral sergipano e baiano indicavam as coordenadas geográficas e ajudaram no posicionamento de ataque; 3 – O espaço costeiro entre Aracaju e Salvador era pouco habitado e com várias praias desertas; 4 – O Porto de Salvador atraiu a atenção da Kriegsmarine, pois o litoral baiano registrou vários torpedeamentos navais em suas adjacências; 5 – A água doce do Rio São Francisco poderia suprir as necessidades dos submarinos alemães, tanto para o consumo de sua tripulação quanto para a manutenção da maquinaria; 6 – A vulnerabilidade militar desta região costeira, somente um submarino foi capaz de espalhar o caos para todo o país.
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A mobilização de forças civis e militares foi geral em Sergipe. Os náufragos foram levados à cidade de Aracaju. Da capital sergipana partiam regularmente alguns automóveis à beira-mar, na vazante da maré, para recolher os salvados e corpos. Do campo do Aeroclube de Sergipe, por sua vez, saíram aviões civis para vasculhar a região praiana. Tanto a FAB quanto a Marinha do Brasil destinaram aviões e navios de guerra para a Costa de Sergipe.
O Quadro 1, a seguir, indica o navio atacado, o dia da tragédia, o horário e a referência costeira. Tudo isso ajudar a traçar rota do U-507, obter novas informações militares e comparar com os depoimentos dos náufragos e populações litorâneas.
QUADRO 1 – O U-507 e as referências costeiras do Brasil em 1942 NAVIOS TORPEDEADOS DIA e HORÁRIO REFERÊNCIA COSTEIRA DO NAUFRÁGIO ESTADO Baependi 15/08, às 19:00 Farol de Estância, próximo à foz do Rio Real. Sergipe Araraquara 15/08, às 21:00 Farol da Cotinguiba, na cidade de Aracaju. Sergipe Aníbal Benévolo 16/08, às 04:05 Farol de Estância, próximo à foz do Rio Real. Sergipe
Itagiba 17/08, às 10:55 Farol de Morro de São Paulo Bahia
Arará 17/08, às 11: 40 Farol de Morro de São Paulo. Bahia
Jacira 19/08, às 02:00 Praia de Itacaré Bahia
Hammaren 22/08, às 04:45 Farol de Santo Antônio, cidade de Salvador. Bahia
Fonte: Elaborada a partir das informações do IPM por Luiz Antônio Pinto Cruz, 2016
Aquele trágico mês de agosto de 1942 deixou várias lições. Cada naufrágio tem sua importância e história singular. Os dados simplificados deste quadro revelam que a costa baiana registrou o maior número de torpedeamentos. Outro aspecto, o U-507 escolheu áreas costeiras próximas aos faróis, o que facilitaria as suas ações militares. A luz do farol, como já foi dito, ajudou a silhuetar o alvo em movimento. Ora agia na superfície sob o manto da noite, ora submerso durante o dia como fez ao largo de Morro de São Paulo. Ali os dois navios torpedeados geraram um dos espetáculos mais dramáticos da história contemporânea da Bahia.
A movimentação dos náufragos na costa gerou impactos sociais ao espalhar histórias dramáticas entre as populações litorâneas. O tempo dos sobreviventes geralmente ficava bloqueado no momento do trauma, Imre Kertész esclarece que como não havia meios de esquecer, eles viviam mesmo para lembrar aquilo que não passava e sempre incomodava. Conforme as suas palavras, ―como um disco arranhado, é aí que fica bloqueado o pensamento, proibindo a ocorrência de reflexões, sentimos afetos, impedindo as ligações entre o antes e o depois, entre os seres mortos e aqueles que sobreviveram‖283.
Os ataques do U-507 aos navios de cabotagem chamaram a atenção das autoridades brasileiras para a vulnerabilidade da cidade do Rio de Janeiro, em relação a um possível bombardeio do inimigo vindo do mar. O assunto foi estudado pelos militares, chegando mesmo o Conselho de Segurança Nacional a concluir pela conveniência de remover
283
KERTÉSZ, Imre apud DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.120.
provisoriamente a sede do governo federal para a cidade de Belo Horizonte. Contudo, o Ministro da Marinha, consultado, opinou negativamente quanto a essa medida.
Enquanto a logística militar avaliava possibilidades, como os acontecimentos militares envolveram os civis? Como as histórias naufragadas marcaram a opinião pública? Talvez uma resposta a estas questões possa ser buscada na cultura visual, especialmente, no tocante à análise das fotografias de época. Uma delas capturou o momento dramático que impactou a sociedade sergipana.
Figura 15 – Náufrago José Castelo Branco Verçosa em praia de Sergipe. 1942
Fonte: AGRESSÃO, 1943, p. 49.284
O náufrago do navio Araraquara sentado numa duna, provavelmente na praia do Mosqueiro, na época pertencente ao município de São Cristóvão/SE. Final de agosto de 1942.
Em mar ou terra, o sofrimento não escolheu lugar. No canto esquerdo da foto, policiais sergipanos examinam despojos à beira-mar, já do outro canto, no direito, percebe-se um homem sentado na duna, isolado e cercado pela vegetação de restinga. Era o 1o Tenente José Castelo Branco Verçosa, náufrago do Araraquara, usando calça comprida e camisa manga longa xadrez obtidas em Aracaju. Ele está desolado, pois se deparou com os cadáveres da sua esposa e filho na praia. Após dias de buscas no litoral de Sergipe, a verdade veio à tona.
Com uma mão segura o chapéu e com a outra ampara a cabeça com o ar de desespero. Há um vazio no meio da imagem que parece gritar. Ao mesmo tempo em que o drama liga os
284 AGRESSÃO: documentário dos fatos que levaram o Brasil à Guerra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 49.
extremos da fotografia. Mar e praia, morte e vida, guerra e sociedade, resto e aura. Publicada pela Agência Nacional, em 1943, a fotografia circulou os quatro cantos do Brasil e impactou a opinião pública. “O abatimento em que se encontra é grande. Não fala a ninguém, não se maldiz. É um misto de tristeza e revolta, que o acabrunha‖.285
O drama dos náufragos acabrunhou aos sergipanos e baianos em relação ao mar. O exame do quadro permite dialogar tanto com a geografia costeira do Brasil quanto com os dados coletados em documentos militares. Tudo com o intuito de expor o crescente envolvimento dos litorâneos com os acontecimentos-monstros da Guerra do Atlântico.
Quadro 2 – A mobilidade dos náufragos na costa do Brasil
NAVIO TORPEDEADO PELO U-507 DESTINO DOS NAVIOS NÚMERO DE SOBREVIVENTES MOBILIDADE DOS NÁUFRAGOS ÁREA COSTEIRA DO BRASIL
Baependi Recife/PE 36 Indiaroba, Santa Luzia do
Itanhy, Jandaíra, Estância, Itaporanga, São Cristóvão,
Aracaju e Recife/PE.
Sergipe-Bahia
Araraquara Maceió/AL 12 Itaporanga, São Cristóvão e
Aracaju.
Sergipe Aníbal Benévolo Aracaju/SE 4 Indiaroba, Santa Luzia do
Itanhy, Jandaíra, Estância, Itaporanga, São Cristóvão,
Aracaju.
Sergipe-Bahia
Itagiba Salvador/BA 145 Morro de São Paulo, Valença
e Salvador.
Bahia
Arará Santos/SP 15 Morro de São Paulo, Valença
e Salvador.
Bahia
Jacira Salvador/BA 6 Itacaré, Marahú, Valença,
Nazaré, São Roque e Salvador
Bahia
Hammaren Salvador/BA 25 Salvador Bahia
Fonte: Elaborada a partir das informações do IPM por Luiz Antônio Pinto Cruz, 2016
Uma das razões que explica esse quadro é perceber como se deu a ampliação do clima de guerra, do mar para a vida social. A experiência traumática dos náufragos atacou o imaginário das populações litorâneas, que criaram uma multiplicidade de novos dramas em terra. Com um olhar mais dirigido para o povo da praia, o historiador Alain Corbin assinala que ―a vastidão desses encontros possibilita a multiplicidade de dramas, justapostos em uma falaciosa instantaneidade. Ela permite juntar a luta e o lamento.‖286
A emergência da
285 AGRESSÃO: documentário dos fatos que levaram o Brasil à Guerra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 49.
286
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário social. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 252.
atmosfera aurática da guerra naval requer por parte dos historiadores brasileiros o uso de procedimentos metodológicos que permita compreender também os aspectos subjetivos dentro das tradições nordestinas.
Sete navios mercantes foram atacados traiçoeiramente, tendo as praias do nordeste como pano de fundo. As vidas sacrificadas, os sobreviventes traumatizados e os salvados de guerra expuseram cada torpedeamento naval. De acordo a posição do governo brasileiro, ―a agressão da Alemanha e Itália à soberania nacional veio, assim, estender a guerra, inesperadamente, à América do Sul‖. Por isso ―o Brasil houve de reconhecer a situação de beligerância criada pelos dois países agressores, cujos súditos, no momento, gozavam de segurança e benevolência das autoridades nacionais‖ E conclui: ―entramos na guerra provocados, em defesa da nossa soberania e da nossa dignidade afrontosamente ofendidas‖.287
Tal realidade impactou a sociedade brasileira, gerou imensas manifestações sociais e pressionou o Presidente Getúlio Vargas a reconhecer atos de beligerância nas águas territoriais do país. Por conseguinte, obrigou-o a declarar guerra à Alemanha e à Itália.
A tabela a seguir indica o navio, a localização do sinistro, o dia do ataque e o número de náufragos desaparecidos e sobreviventes. Eles eram oriundos de diferentes estados da federação. Talvez isso ajude a entender por que o afundamento de navios gerou uma comoção nacional. Os dados do quadro permitem comparar, de forma quantitativa, os acontecimentos militares ao largo de Sergipe e da Bahia, onde as façanhas de habilidades mortíferas do U-507 foram postas a prova na costa do Brasil.
Tabela 1 - Ações beligerantes do U-507 na costa do Brasil. 1942
NAVIOS LOCAL DATA DO
ATAQUE
No DE TRIP.
No DE PASS.
SALVOS DESAPARECIDOS TOTAL DE
DESAPARECIDOS
TRIP. PASS. TRIP PASS.
Baependi Sergipe 15/08/1942 73 233 18 18 55 215 270 Araraquara Sergipe 15/08/1942 74 68 8 3 66 65 131 Aníbal Benévolo Sergipe 16/08/1942 71 83 4 67 83 150 Itagiba Bahia 17/08/1942 60 121 50 95 10 26 36 Arara Bahia 17/08/1942 35 15 20 20 Jacira Bahia 19/08/1942 5 1 5 1 Hammaren Bahia 22/08/1942 31 - 26 - 5 - 5 TOTAL GERAL 349 506 126 117 223 389 612
Fonte: SERAFIM; BITTENCOURT, 2006, p. 151.288
287 AGRESSÃO: documentário dos fatos que levaram o Brasil à Guerra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1943, p. 64.
288 SERAFIM, Carlos Frederico Simões; BITTENCOURT, Armando de Senna. A Marinha na República. A
A ação do U-507 representou a maior ameaça externa no Atlântico brasileiro no tempo da Segunda Guerra Mundial. Das 855 pessoas, entre tripulantes e passageiros, que seguiam a bordo dos navios atacados pelo U-507, somente 243 sobreviveram e 612 desapareceram em águas abertas. Entre os náufragos desaparecidos, alguns enlouqueceram quando estavam à deriva na costa sergipana e acabaram por tirar a própria vida. Um tripulante do Hammaren, o engenheiro chefe, não suportou os ferimentos indo a óbito no Hospital Português, dez dias depois da tragédia. O corpo de Karl Hellquist, também tripulante do navio sueco, de apenas 22 anos, apareceu na praia de Salvador. Ambos foram sepultados no cemitério da cidade.
O número de vítimas nos torpedeamentos navais pode ser maior do que fora anunciado tanto pelas autoridades varguistas quanto pela Marinha brasileira. Dentro dos portos nacionais, alguns passageiros conseguiam subir a bordo do navio a vapor: 1 – de forma clandestina; 2 – por camaradagem com algum tripulante; 3 – por indicação de autoridades políticas; enfim, 4 – por falta de rigor no acesso ao navio. O desleixo era geral, comprometia o planejamento das atividades navais e obrigava a marinhagem a lidar com os problemas diversos, de maneira improvisada.
Quem eram os passageiros clandestinos que se transformaram em náufragos anônimos? Joel Silveira teceu importantes considerações sobre esta problemática, ―os mortos anônimos (os que nunca foram identificados, gente pobre que viajava na terceira classe dos navios afundados) que lá ficaram ou foram enterrados na deserta praia sergipana.‖289
Sobre os passageiros e o os tripulantes do Aníbal Benévolo, que seguiam viagem de Salvador à Aracaju, o arguto jornalista concluiu, ―tudo acabou na madrugada do dia 16 de agosto de 1942, quando sobre todos eles se abateu o duplo silêncio da morte e do anonimato‖.290
Mais invisível que o submarino alemão, portanto, foram os brasileiros que tiveram suas almas engolidas pelo mar da guerra, sem ninguém por perto para se importar.
Nesta época, uma das críticas endereçadas ao presidente Getúlio Vargas após a passagem beligerante dos submarinos alemães e italianos pela costa do Brasil, além da péssima eficácia do socorro aos náufragos, foi a de ele não ter comparecido aos locais da catástrofe em Sergipe e na Bahia.
Entre erros e acertos no comando do seu submarino, a missão de Harro Schacht na campanha do Brasil foi qualificada como excepcional e digna de reconhecimento por seus superiores da Kriegsmarine. O ataque bem-sucedido do U-507 abriu caminho para que outros U-boats viessem caçar nos trópicos da América do Sul. Tanto em Sergipe quanto na Bahia os
289 SILVEIRA, Joel. A feijoada que derrubou o governo. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p. 74 290
embates navais persistiram em 1943 e 1944, revelando a intensidade da batalha naval. Graças à experiência dos estadunidenses em sua campanha antissubmarino no Atlântico Norte, os militares brasileiros aprenderam com os ―bons vizinhos‖ a desenvolver ações defensivas e contraofensivas.
Observe no mapa a seguir a localização das embarcações torpedeadas pelo U-507 no Atlântico brasileiro naquele mês de agosto de 1942. Depois perceba o Porto de Salvador ao centro do arco de agressões. Interessante acrescentar ainda que os navios afundados ou zarparam ou destinavam-se para lá. Quando se avalia o sinistro individualmente e depois em seu conjunto, percebe-se nitidamente o desenvolvimento da ―Operação Baía‖, pela centralidade ao porto soteropolitano.