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O longo século 19

No documento Carlos Guerra Schrago (páginas 29-34)

Durante o século 19, a biologia passou por diversas transformações que afetaram diretamente as teorias existentes sobre a evolução biológica. Ao fim do século, além da seleção natural, os fundamentos da hereditariedade estavam sendo compreendidos, a

noção de que os seres vivos são compostos por células e que estas seriam a unidade básica da vida, a teoria celular de Schleiden e Schwamm, já havia sido proposta. Além disso, a fisiologia animal ganhara um aspecto moderno com os estudos de Claude Bernard, a embriologia fez grandes avanços com Roux a escola mecanicista, e a bioquímica tornou-se uma ciência independente, principalmente após a síntese das primeiras moléculas orgânicas, iniciada com a ureia, por Wöhler. De fato, o próprio nascimento da biologia como ciência ocorreu no século 19 e processo de profissionalização da ciência foi consolidado, associado à formação de novas universidades e centros de pesquisa, principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos. O termo “cientista” foi cunhado em 1833 por William Whewell. Entretanto, no início do século, trabalhos que ainda possuíam associação com o conceito romântico de história natural eram comuns, no ano de 1900, a figura do biólogo profissional estava dissociada das aspirações líricas da ciência de Humboldt.

Embora a investigação em biologia experimental tenha sido fortemente incentivada nas universidades e institutos de pesquisa, os naturalistas que ainda cultivavam o espírito exploratório dos viajantes do início do século, ganharam respaldo institucional nos museus de história natural na segunda metade do século 19. As coleções de história natural necessitavam de museus especializados. O Museu de História Natural de Londres, concebido por Richard Owen, foi criado a partir da coleção de história natural do Museu Britânico em 1881. O Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, foi criado em 1869. No Brasil, o final do século 19 assiste a criação do Museu Nacional, o Museu Paulista, concebido por Hermann von Ihering, e o Museu Paraense, concebido por Emilio Goeldi.

Podemos dizer que Charles Darwin é um cientista inserido nesta transição da ciência feita por naturalistas para uma ciência profissional e institucionalizada. Nascido em 1809, o ano da publicação da Filosofia Zoológica de Lamarck, Darwin não recebeu uma educação formal de biologia e seus estudos de história natural ocorreram de forma paralela à sua formação, inicialmente como médico, e posteriormente como bacharel em artes por Cambridge, com objetivo de se dedicar a uma carreira clerical. Esta formação ocorreu no primeiro quarto do século 19, quando o conceito de transmutação das espécies já era plenamente conhecido pelos naturalistas, embora não fosse amplamente aceito. Neste início de século, as teorias evolutivas eram principalmente estudadas por

cientistas franceses, notavelmente Lamarck e Geoffroy St. Hilaire, ambos do Museu de História Natural de Paris. Na Alemanha, o conceito de evolução ficou associado aos estudos de anatomia comparada e embriologia, realizados com objetivo primário de identificar a unidade da forma dos organismos.

Na França, a discussão sobre a evolução das espécies era ativa entre os pesquisadores do Museu de Paris após a publicação do livro de Lamarck. Entretanto, suas ideias não foram bem recebidas, principalmente por Cuvier. Goffroy St. Hilare seria um dos poucos pesquisadores a considerar seriamente a hipótese da transmutação e unidade da forma e seus debates com Cuvier ficaram famosos. Na Inglaterra, Richard Owen seria o principal pesquisador a desenvolver o conceito de unidade da forma. Ele cunhou o termo homologia e sua pesquisa sobre o arquétipo dos vertebrados foi amplamente referenciada ao longo do século 19. Curiosamente, o lamarckismo chegou às Ilhas Britânicas como uma teoria associado a pensadores radicais, de forma que foi defendida principalmente pelos jovens médicos que tinham o intuito de destituir o establishment britânico. Robert Grant, mentor de Darwin em Edimburgo, foi um dos principais nomes. O evolucionismo estava em voga, a ponto de em 1844, um livro publicado de forma anônima, o Vestígios da História Natural da Criação, de Robert Chambers, tenha se tornado um sucesso vendas. Chambers era um editor escocês entusiasta da nova visão do mundo promulgada na Europa Continental, Vestígios continha um sumario de algumas das teorias sobre a origem do universo, da Terra e dos seres vivos, incluindo o homem.

Desta forma, portanto, quando a teoria de Darwin foi desenvolvida, sem dúvida alguma o transmutacionismo era conhecido por todos os pesquisadores e possivelmente cada um deles possuía sua própria teoria pessoal sobre a origem da diversidade biológica. Era necessário que alguém propusesse um corpo teórico consistente, que explicasse todas as observações isoladamente coletadas nos campos da biogeografia, morfologia, hereditariedade, variação, taxonomia e comportamento. Após sua viagem de quase cinco anos a bordo do HMS Beagle, Darwin retornara à Inglaterra convencido de que a criação especial das espécies, conforme a narrativa abraâmica, não encontrava respaldo nas evidências coletadas em campo. Suas observações científicas ao longo do planeta, principalmente na América do Sul, evidenciaram que a distribuição das espécies no espaço e no tempo não são aleatórias. Existe uma ordem na diversidade biológica e, por

trás desta ordem, estava guardado o “mistério dos mistérios”, as causas da evolução biológica. Ao contrário do que é comumente pensado, Darwin não teve a ideia do funcionamento da seleção natural ao longo de sua viagem no Beagle. Suas anotações mostram sim que ele estava convencido da evolução das espécies. Além disso, Darwin ficou bastante impressionado com a abordagem analítica usada por Charles Lyell em seu Princípios de Geologia. Lyell deu continuidade à lógica de pesquisa iniciada por James Hutton, o uniformitarismo, e sistematicamente descreveu exemplos de sua aplicação. Darwin desejava usar o mesmo princípio em biologia.

Após seu retorno à Inglaterra, em 1836, Charles Darwin finalizou e publicou diversos estudos sobre a história natural das regiões onde o HMS Beagle havia passado. Enquanto isso, ele se dedicou ao problema da origem das espécies de maneira reservada. Apenas poucos amigos sabiam deste seu empenho. Nos anos de 1840, Darwin já possuía um esboço da teoria da seleção natural. Entretanto, foi extremamente comedido em divulgar seus resultados, pois queria ter o número máximo de evidências para embasar suas afirmações. Segundo seu diário, o conceito de seleção natural surgiu após a leitura de An Essay on the Principle of Population de Thomas Malthus. Coincidentemente, este mesmo livro inspiraria o naturalista Alfred Russell Wallace, então em trabalho nas ilhas da Malásia, a propor uma ideia similar a seleção natural darwiniana. Em 1858, Darwin recebeu a correspondência de Wallace que continha um manuscrito com uma exposição do mecanismo da seleção natural que ele próprio havia independentemente descoberto há mais de uma década, embora tenha revelado a poucos amigos. Os manuscritos de Darwin e Wallace foram lidos conjuntamente em julho de 1858 para a Sociedade Lineana. Em 24 novembro de 1859, o Origem das Espécies

chegava às livrarias inglesas.

Historiadores concordam que o Origem das Espécies continha, no mínimo, seis grandes contribuições fundamentais para a biologia evolutiva. Inicialmente, o livro foi crucial para que a evolução das espécies se tornasse um assunto válido de ser discutido pela comunidade científica. Em segundo, Darwin destituía a noção da transformação linear dos seres vivos, mostrando que o processo evolutivo é um processo de ramificação. Em terceiro, a espécie não deveria ser compreendida de forma tipológica e sim como uma entidade populacional onde a variabilidade é uma propriedade central para a evolução. Quarto, a diferenciação entre as espécies ocorreria principalmente pela ação da seleção

natural, que consiste no principal mecanismo evolutivo. Quinto, as adaptações são explicadas pela ação da seleção natural e não por desígnio divino. Por último, o processo de diferenciação das espécies é um processo gradual e não ocorre em saltos. Esta característica evidenciava o componente uniformitarista da teoria darwinista. Desta forma, o processo de seleção artificial poderia ser usado como exemplo para o entendimento da seleção natural.

A recepção do darwinismo aconteceu de forma diferenciada nos diversos países e motivou o desenvolvimento de tradições de pesquisa diversificadas. Na Inglaterra, linhas de pesquisa associadas ao estudo da variação intraespecífica foram capitaneadas por Francis Galton e W.F.R. Weldon, enquanto na Alemanha, estudos de morfologia evolutiva e embriologia foram liderados por Ernst Haeckel. Ao final do século 19, a biologia experimental apresentou uma grande expansão, biólogos como August Weissmann e William Bateson se interessaram pelo entendimento da origem e leis da variação intraespecífica. Embora a evolução das espécies de forma ramificada tenha sido incorporada em todas as linhas de pesquisa, alguns componentes da teoria de Darwin não foram prontamente assimilados pela comunidade científica. Em especial, a premência da seleção natural como força de diferenciação das espécies e a evolução gradual foram apenas inteiramente incorporadas à teoria evolutiva nos anos 40 do século 20. No período entre o final do século 19 e início do século 20, alternativas a esses componentes do darwinismo foram propostas. Historiadores denominam este período de eclipse do darwinismo, i.e., seleção natural. A hipótese da herança dos caracteres adquiridos ainda persistia em biologia e diversos pesquisadores adotaram explicações lamarckistas em seus estudos. Outra alternativa à seleção natural foi o

mutacionismo. Biólogos que estudavam a variação intraespecífica como Bateson e Thomas Morgan achavam que as principais características responsáveis pela origem de novas espécies eram características discretas, que não podem ser compreendidas na lógica da evolução gradual. Portanto, além de reduzir a importância da atuação da seleção natural, o mutacionismo é uma teoria saltacionista. Paleontólogos como Henry F. Osborn também adotaram explicações fora do domínio do darwinismo ao afirmarem que diversas linhagens representadas no registro fóssil haviam sofrido uma forma de evolução direcional denominada de ortogênese. Em síntese, o processo evolutivo direcional da ortogênese também era uma forma de lamarckismo, consistindo do

As críticas a alguns dos componentes da teoria de Darwin eram certamente oriundas da falta de entendimento sobre as leis da hereditariedade. Somente no início do século 20, as leis de Mendel seriam redescobertas por Hugo de Vries e outros pesquisadores. O século 19 presenciou o desenvolvimento da figura do biólogo profissional, trabalhando nas universidades, estações de pesquisa e museus. A pesquisa experimental, em embriologia, genética e fisiologia foi conduzida principalmente nas universidades, enquanto que museus foram responsáveis por expedições exploratórias. Diversos museus foram fundados neste período. O Museu de História Natural de Londres, concebido por Richard Owen; o Museu de Zoologia Comparada de Harvard, liderado por Louis Agassiz e, no Brasil, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro; o Museu Paulista, fundado por Hermann von Ihering, e o Museu Emilio Goeldi, Pará. A institucionalização da biologia talvez seja em grande parte responsável pelo surgimento da ciência da genética ao final do século 19.

No documento Carlos Guerra Schrago (páginas 29-34)

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