• Nenhum resultado encontrado

Para discutirmos sobre o diário de campo como forma de registro e sua importância em nossa pesquisa, utilizaremos inicialmente escritos de Rita de Cássia Oliveira (2014). Para a autora, o diário de campo é um dispositivo de registro das “temporalidades cotidianas vivenciadas na pesquisa” (p. 69), potencializando a compreensão dos movimentos e das diversas culturas inscritas no território de estudo.

O lugar de pesquisa é rico em potencialidades, apesar de suas fragilidades. Os encontros com as atrizes sociais são mais que entrevistas e gravações, são vozes que ecoam, territórios, modos singulares de vida, é chão, é poeira, é vento e luta. Compreende-se então como são necessárias outras formas de registro de dados.

Faz-se importante refletir sobre os lugares onde nós mulheres rurais estamos localizadas, nossas dimensões e inter-relações. Como ressalta Oliveira (2014, p. 71), “construímos o diário de campo para ser o lugar de registro dos movimentos, das leituras, dos tempos, espaços e das observações que ocorrem/ocorreram”. O diário se faz importante por possibilitar melhor interpretação dos significados culturais a partir da descrição densa das expressões, espaços, tempos e saberes dos grupos sociais e dos territórios estudados. Esse registro é possível pelo olhar atento e a sensibilidade nas experiências e nos contextos, anotando quando estas emergem nas narrativas.

Ah, tanta coisa tem acontecido por aqui. Tantos afetos e emoções me acompanham nesse trajeto de psicóloga e de pesquisadora. Vão comigo para onde vou. Junto com a angústia, o medo. Cada pessoa que encontro deixa em mim boas marcas que se perderiam se eu não registrasse aqui (Diário de campo).

Escrever é aliviante. Eu trago comigo o compromisso e às vezes ele pesa. Às vezes parece que eu ando, ando e não vou a lugar algum. Quando escrevo, consigo ver melhor o que faço. Fica mais claro o meu deslocamento ético-político. Isso me fortalece (Diário de Campo). Eu deveria ter escrito sobre a tarde do dia 3. [...] Mas à noite não tive

disposição. É uma pena, pois sei que agora não vou conseguir expressar sobre tudo que vivi naquele momento (Diário de Campo).

Estas descrições que são articuladas a partir também das reflexões da pesquisadora trazem “particularidades que estavam para além de ‘simples’ anotações no diário de campo” (OLIVEIRA, 2014, p. 73). Refletem a oportunidade de observar e apreender os significados do processo de pesquisa para as mulheres rurais pesquisadas através de suas histórias de vida. No diário se registra “aquilo que ouvimos, vimos, sentimos e experienciamos no trabalho de campo” (OLIVEIRA, 2014, p. 75). Há aspectos que o gravador não consegue captar, mas que são importantes para a compreensão de suas narrativas, visto que apesar de contarmos muito com a nossa memória, ela não pode ser considerada um dispositivo totalmente seguro e capaz de guardar cheiros, sensações, gestos, comentários com tanta fidelidade. Oliveira (2014) confirma:

É na nota de campo, grafada no diário, que muitas questões se evidenciaram como, por exemplo, essa percepção de uma produção cultural da comunidade que se transformou diante de questões que marcam o tempo dos sujeitos, onde as vozes se completam – e se distanciam nas memórias do “mesmo” evento. Os detalhes contados eram acompanhados nos gestos das mãos, dos braços, dos olhos, tudo isto foi colocado como nota no diário. (p. 79)

Os espaços físicos observados e anotados nos diários são potentes nas compreensões sobre determinado grupo, a partir de detalhes de cores, estruturas, mobília, fotos que possibilitam entender significados e sentidos daquele lugar. O Diário de Campo é para a pesquisadora um espaço de “informação e de formação” (OLIVEIRA, 2014).

Outro autor que nos auxilia na discussão é Florence Weber (2009), etnógrafo que defende que o Diário de Campo, caracterizando-o como “ofício do etnógrafo” e um “conjunto disseminado de notas heterogêneas” (p. 157. Weber (2009) nos ajuda a entender como a

gravação não é capaz de registrar o espaço, as reações faciais, e as impressões que o local e o momento dispõem no encontro entre a pesquisadora e a interlocutora. A produção do Diário de Campo é ferramenta que auxilia a análise a partir do acúmulo de material sobre o encontro, rico em dados sobre práticas, discursos e posição das mulheres entrevistadas. No texto final da pesquisa, o diário é inserido para conversar com os apontes teóricos e as análises das entrevistas, apoiando as afirmações da pesquisadora sobre os processos acompanhados e compreendidos.

São as observações “publicadas em itálico ou em pequenos caracteres” (WEBER, p. 164) que, a partir de cada etapa de reflexão, representam para mim, enquanto pesquisadora, os laços entre quem eu era quando iniciei e o meu crescimento a partir do contato com o campo. É possível registrar o momento no qual refaço minha postura e meu olhar diante do território e das atrizes sociais com quem me encontro, pois me reconheço nas mulheres rurais, sendo também uma delas e me unindo em pares com elas.

Regina Benevides de Barros e Eduardo Passos (2015) contribuem ricamente com o compartilhar de suas experiências de diário a bordo, no qual dividem com o outro (e conosco) a experiência de Regina em uma pesquisa-intervenção na África e a compreensão e reflexão de Eduardo sobre os diários dela. Ambos nos ajudam a dar importância para esse registro que acompanha o trabalho de pesquisa, registro esse não apenas do que é pesquisado, mas do processo de pesquisar. Esses escritos, para Barros e Passos (2015), têm função de dispositivo não para finalizar as reflexões a respeito do campo, mas como disparador das “portas” de compreensão que a pesquisa possibilita.

Esse estilo de “texto diarístico”, segundo Barros e Passos (2015), aparece desde o século XIX como deslocamento dos/das pesquisadores/as, saindo da segurança dos laboratórios de pesquisa e se lançando aos territórios, utilizando os diários como recursos de trabalho importantes. O instrumento de registro revela as implicações da pesquisadora, o que é considerado “insuportável à instituição científica” (p. 175), pois mostram as vivências cotidianas do campo, além das fragilidades e potencialidades, “como realmente se faz a pesquisa [...] e isso não se deve dizer ou mostrar” (p. 175). Essa possibilidade de apontamento da pesquisa, levou Barros e Passos (2015) a se questionarem e a nos questionarem sobre a colonização da ciência e do conhecimento. Ela e ele escrevem a partir de um lugar localizado, implicado e refletem: “como é difícil vivermos na parcialidade quando somos menores! Como é difícil não totalizar quando experimentamos o mundo abaixo desta linha imaginária que separa os desiguais!” (p. 182).

Trata-se do registro do processo de pesquisar, pois mostra realmente como se faz a pesquisa, o que é importante por incluir a pesquisadora, que nesta pesquisa é tão mulher rural como as atrizes sociais. Sendo assim, é possível se analisar as “implicações que se cruzam” (BARROS e PASSOS, 2015, p. 172) entre nós. O diário então é a forma de registrar o quanto também estou na pesquisa e sou aquelas mulheres. Barros e Passos (2015) nos ajudam a refletir, formas de descolonizar a escrita, retirando a supremacia da escrita científica engessada e dando lugar à modificação na produção do saber, que agora é implicada e dialógica, “o texto diarista enuncia sua própria produção, liberando-se da pretensão do conhecimento definitivo sobre o objeto” (BARROS e PASSOS, 2015, p. 175) e, em vez de olhar para elas como objetos de pesquisa e fontes de dados, pesquisar e produzir com elas sobre nós.