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O Método Genealógico e a Construção da Teoria do Direito a Partir da Busca de

A genealogia é tomada por Foucault como um método histórico que procura a história que não se escreveu. Ela não está preocupada em alcançar linhas evolutivas perfeitas, mas em buscar, nos fatos mais “irrelevantes”, as verdadeiras causas desencadeadoras do processo. Busca construir história a partir de fatos tidos como não- históricos, como o amor, a consciência, os instintos. Procura os fatos que não aconteceram, as “verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. (2002, p. 16).

Para Foucault, fazer uma pesquisa histórica não é procurar origens, é sempre investigar quais eram as forças que agiam em vários momentos, “se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter o pudor de ir procura-las lá onde elas estão (...)”(2002, p. 19).

O genealogista autêntico sabe que, na origem das coisas, não é a harmonia e a grandiosidade dos fatos e de seus incentivadores que serão encontradas, mas sim o acaso, o conflito, o disparate. Aquele que procura na origem das coisas o acontecimento perfeito, o fato acabado, precisa, para comprovar suas teorias, negar, ignorar todos os passos em falso, os disfarces, os jogos, que aconteceram no início.

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na

metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há algo inteiramente diferente: não o seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que

sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente desrazoável – do acaso (2002, p. 18).

Toda busca pela “origem” das coisas procurará descobrir a essência destas coisas, o que elas são em si mesmas, procurará desenhar esse começo com as cores mais perfeitas, e da maneira mais solene possível. Pode-se perceber que todo início, ao ser relembrado, conta com um certo glamour que só a ele é possível, uma vez que o acontecimento que deu origem a um fato deve sempre ser mágico, perfeito, memorável, inesquecível. Também, o lugar ocupado pela origem dos acontecimentos sempre é verdadeiro, posto que não há testemunhas, é o discurso que convencerá àqueles que sobrevierem da maneira como a origem se deu (2002, p. 17-19).

A busca da origem no Direito poderia bem ser relacionada com as teorias que o ligam somente às normas emanadas do Estado. Essas teorias visam encontrar o “ser do Direito”, quando o colocam única e exclusivamente como fruto da legislação estatal. Não há direito válido, nem legítimo a não ser o direito emanado do Estado.

Para essa interpretação do Direito, o que torna um fato comum da vida comunidatária em um “ ato jurídico”, um ato relevante para o Direito, é a transformação, a subsunção destes às normas jurídicas emanadas pelo Estado. O que transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é sua faticidade, mas a significação que lhe é dada pelo Direito (KELSEN, 2000). Para que esta corrente filosófica, para que uma prescrição jurídica seja válida, ela deve ser legislada ou prescrita por autoridade competente. A competência para legislar pode ser originária, como ocorre quando da Assembléia Constituinte, ou derivada, quando sua inserção no sistema jurídico decorre das normas legisladas e estabelecidas na Constituição. Ademais, a confecção das normas, além de seguir as regras de competência estabelecidas na Constituição, devem cumprir os princípios nela estabelecidos, uma vez que são eles que dão coerência a todo sistema normativo (GUSMÃO, 2001, p.1-46).

Vê-se que. dessa forma de enxergar o Direito, este tem uma origem certa e inalcançável. O poder constituinte (conceito também abstrato, situado em algum local a- histórico), pertencente a todos os cidadãos e é exercido por eles, através de seus representantes, para o estabelecimento das regras que devem ser cumpridas a fim de que os valores mais caros a esta sociedade política sejam protegidos. Depois, todas as demais normas deste Estado buscam sua origem neste documento, que estabelece anteriormente que órgãos poderão legislar ou quais conteúdos estas normas legisladas podem ter. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é, ela própria, produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma. Percebe-se que a “lógica” deste sistema, sua coerência e completude são garantidos por estes princípios.

Todavia, a busca pela origem do Direito levou à ignorância de todos os fatos que, embora não “qualificados” ou “identificados” pelo Direito como jurídicos, transformam o Direito. Nesta pirâmide, onde se localizam as pressões sociais, as transformações políticas e de costumes? A busca de uma origem perfeita não pode considerar tantos fatos “inconstantes”, isto certamente macularia a perfeição da pintura. Como agregar as mudanças sociais e como elas refletem no Direito sem destruir toda esta história belíssima do Direito como uma ciência equiparável às ciências naturais pelo seu grau de certeza. Todavia, o Direito, tratando diretamente de condutas humanas, não poderia negligenciar desta forma as importantes transformações que ocorrem nas sociedades humanas. Como explicar, por esta teoria, o pronunciamento do desembargador do Tribunal Regional da 4ª Região, que disse, sobre o reconhecimento dos contratos de gaveta como instrumento de transferência de imóveis financiados: “não é viável que o Poder Judiciário ignore uma prática utilizada em larga escala e aceita pela sociedade em geral, haja vista que, diariamente, centenas de pessoas celebram os chamados contratos de gaveta”(ALBANO, 2004, p. 7-A)?

Para entender esse tipo de fenômeno, que ocorre com o Direito, é preciso entendê-lo de maneira lata, conforme Roberto Lyra Filho explicita Direito como lei e como transformação social. Ou como Miguel Reale: Direito como fato, valor e norma, a estrutura tridimensional do Direito.(REALE, 2000, p. 64-68). Direito como sistema positivo, mas não reduzido às normas estatais, e Direito que procura um ideal de justiça baseado nas próprias transformações sociais (LYRA, 1999). Assim esta concepção aproxima-se do pluralismo (LYRA, 1999).

Entendendo, então, o método genealógico como busca de proveniência e não de origens imaculadas, inserindo, na realidade da sociedade, o aparecimento de valores, normas ou qualquer transformação social; e o Pluralismo Jurídico como a procura e reconhecimento de um Direito, produzido pelos sujeitos dotados de historicidade, pessoas que lutam todos os dias a batalha da sobrevivência, e as quais o Direito, segundo sua construção lógico-abstrata, não atinge. Certamente, há que relacionar o método genealógico e a busca da legitimidade do Direito não estatal baseada em uma argumentação da possibilidade de vetores fora do Estado capazes de produzir suas normas reguladoras, criando-se, inclusive, uma identidade de objetivos, o reconhecimento de processos contra-hegemônicos, imperfeitos.44

Um Direito criado fora do âmbito estatal não possui os mesmos critérios para a sua construção ou para ser legítimo e obedecido pelo Direito estatal. Na falta de requisitos formais, tais como, ser legislado pela autoridade competente (segundo normas anteriores, que se baseavam em normas anteriores, até chegar à norma fundamental), possuir o quorum exigido para a votação, ter seu conteúdo em acordo com o disposto constitucionalmente, são normas que deverão ter seus padrões escolhidos segundo as comunidades que regulam.

44 Na bandeira do Movimento dos Sem-Terra encontramos a inscrição: “A Luta faz a Lei”. Uma expressão, na

concepção popular do que toma-se por Pluralismo Jurídico. Não obstante não possa-se esquecer que o movimento Sem-Terra não se enquadra como um novo movimento social, mas como um movimento social.

Quando o Pluralismo Jurídico busca as fontes de produção normativa, não são mais as técnicas legislativas clássicas, ou modernas, que vigem. Segundo WOLKMER, o conteúdo e forma do Direito é ditado “mediante a informalidade e ações concretas de atores coletivos, consensualizados pela identidade e autonomia de interesses do todo comunitário, num locus político, independentemente dos rituais formais de institucionalização” (WOLKMER , 1997, p. 107)

Segundo o mesmo autor:

Quer-se com isso evidenciar que, num espaço público descentralizado, marcado pela pluralidade de interesses e pela efetivação real das necessidades humanas, a juridicidade emerge das diversas formas do agir comunitário, mediante processos sociais auto-reguláveis advindos de grupos voluntários, comunidades locais, associações profissionais, corpos intermediários, organizações sociais, etc (1997, p. 107-108).

Vê-se a partir desse relato a concretização da hipótese de que o Pluralismo Jurídico é um olhar genealógico lançado sobre o Direito. Ele não vai partir de concepções ideais de justiça, nem de abstrações lógico-metafísicas para encontrar a “origem do Direito”. O estudioso do Direito, com uma formação pluralista, baseará seu conteúdo, inclusive axiológico, na realidade social e nas possibilidades que as lutas sócias contemporâneas abrem para o Direito.

São essas lutas contemporâneas ao surgimento de direitos o reflexo dos vetores que estas mesmas lutas colocaram em movimento. Nem sempre são as intenções daqueles que possuem maior influência econômica que são contempladas, por isso estes vetores de poder circulam pelo dançar das intenções, por mais diversas que sejam. Assim, a partir do momento em que é encontrado o vetor mais fortemente empenhado, é possível assistir o surgimento de um novo direito. Mesmo quando este direito não é reconhecido pelo Estado através de sua legislação. Enquanto for respeitado e fizer-se respeitar, esses direitos terão validade, mesmo à margem do ordenamento jurídico estatal.