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O Poder sem o “Rei” e a Pulverização da Juridicidade no Pluralismo Jurídico

Quando se chega ao ponto de discussão sobre a pulverização da juridicidade no pluralismo jurídico, uma questão que deve ser abordada mais profundamente é a que trata das fontes de produção de direito. Já se explicitou que não são as usuais ou clássicas, que pautam seus princípios na formalidade. As fontes do Pluralismo Jurídico não seguem as mesmas regras do Direito legislado pelo Estado. Como então reconhecê-las?

Segundo Wolkmer, os novos movimentos sociais são os atores privilegiados para a criação do Direito em um espaço pluralista, “é sobre esses ‘novos movimentos sociais’ (doravante designados como movimentos sociais) que se reconhecerá a capacidade de se tornarem novos sujeitos históricos legitimados para a produção legal não-estatal”(1997, p.109).

Conforme se viu no ponto 3.3.1 da presente dissertação, os novos movimentos sociais são constituídos por atores que não participam necessariamente da militância inspirada em correntes marxistas, filiadas a sindicatos ou partidos políticos. Com a transformação da sociedade capitalista, com o neoliberalismo e a globalização, a divisão de classes não é mais tão nítida, uma vez que operários possuem ações de fábricas e sindicatos unem-se a bancos, sindicalistas negociam até mesmo a diminuição dos direitos trabalhistas, políticos são eleitos com um determinado plano de governo e, ao tomarem posse, suas ações não correspondem ao prometido, nem mesmo lembram-se quem foi que os colocou ali. Por estas e outras razões, os movimentos sociais tradicionais encontram-se desacreditados, e a

sociedade civil tem se organizado de outras formas, com graus de institucionalização variados, mas, em sua maioria, menores que a dos partidos e sindicatos.

A luta desses movimentos também difere bastante. Não são restritas a territórios ou classes econômicas. Existem as lutas por um ambiente mais saudável, as lutas ecológicas, lutas por terra, pelos direitos das mulheres, em defesa dos animais e do não-uso de casacos de peles naturais. São as chamadas causas transversais, que atravessam fronteiras e unem militantes de todas as idades e classes sociais. Esses novos movimentos sociais começam a ganhar forma e a desenvolver-se, como se viu, a partir do momento em que são neutralizados os meios tradicionais de participação, seja pelo sindicatos tornarem-se “pelegos” ou pelos partidos de esquerdas tornarem-se clandestinos, no final dos anos 60.

Esses movimentos vão buscar inserir, no diálogo corrente, problemas que não são levantados sem pressão social. Esses movimentos são a manifestação de “nãos” afirmativos que procuram, através da movimentação e reorganização dos vetores na sociedade, transformar valores periféricos discriminados em valores aceitos e respeitados. Buscam realizar as necessidades humanas fundamentais, que, como cantavam os Titãs, não é só comida, é comida, diversão e arte, é saída para qualquer parte, é fazer amor, prazer para aliviar a dor. O ser humano não é uma máquina onde se coloca o combustível e ela funciona. Não, o ser humano necessita de sonhos, objetivos, espaço e esperança para sobreviver. É sobre essas necessidades que os novos movimentos sociais versam também.

Ao discorrer sobre o surgimento dos novos movimentos sociais no Brasil, Wolkmer assevera que:

Sobretudo, as condições criadas pelo nosso modelo de desenvolvimento capitalista e as crises que sacudiram nossas instituições político-jurídicas, favoreceram, no final da década de 70, o aparecimento, no Brasil, de movimentos coletivos, quer seja como possibilidade de novas formas de organização, de resistência e contestação ao autoritarismo do regime burocrático-militar, quer seja como segmentos conscientes e setorizados de reivindicações

imediatas junto ao Estado, ou ainda como ‘reflexo da precariedade ou falta de condições dos canais de representação” (1997, p. 113).

As necessidades humanas são as grandes responsáveis pelo desenvolvimento da história, são elas que impõem o ritmo das transformações sociais e o seu reflexo é fundamental para entender os valores consagrados em determinados períodos. O intento primordial dos novos movimentos sociais é justamente a satisfação destas necessidades humanas fundamentais (1997, p. 116).

Wolkmer também defende, como uma das características dos movimentos sociais a autonomia, que, segundo Eder Sader , pode ser entendida como a capacidade de reelaborar as determinações externas em função de si mesmo, do que se entende por vontade, desejo. Mais uma característica destes novos atores criadores do Direito que se enquadra no conceito genealógico , e também no poder sem o Rei. Este tipo de valoração do mundo a partir de si mesmo é um conceito caro a Nietzsche e a Foucault. Somente espíritos livres são capazes de criar a noção de bem e mal a partir de si próprios (1997, p. 119).

Também, no que diz respeito às formas de relacionamento, desenvolvidas por estes novos movimentos sociais e o Estado, pode-se encontrar características que deixariam Foucault satisfeito. Estas novas formas de questionamento partem de baixo para cima. A sociedade civil organizada em associações, grêmios, ONGs lutam não pela derrocada do poder, mas por alterações no exercício deste que a satisfaçam. Buscam não mais O PODER, por terem descoberto que o poder em essência não existe e, por isso, não pode localizar-se no Estado. Buscam através de pequenas mudanças, mudanças setoriais, galgadas a partir de pressões e negociações, alterar para melhor seu modo de vida. Sabe-se que a transformação, assim como Focault descreve em Vigiar e Punir, não pode ser total, que mesmo que a classe não dominante no momento tornasse proprietária dos meios de produção de nada adiantaria. Muitos preconceitos e opressões ainda existiriam. O resultado ótimo é

alcançado através da queda de braço entre as entidades, o poder circula por elas, e não é possuído por nenhuma delas. 45

Os novos movimentos sociais abrem e disponibilizam caminhos de diálogo entre o Estado e pessoas que jamais estariam aptas a intervir de forma efetiva nas ações estatais, através dos meios tradicionais, como os instrumentos da democracia representativa. Demonstram, através do sucesso de suas demandas, o envelhecimento das concepções liberais de poder e democracia, que separam Estado e Sociedade Civil, e cujos mecanismos de participação previstos são meramente formais.

A grande diferença, entre estes novos movimentos sociais e as reivindicações deles advindas com relação aos seus predecessores, é que estes procuram forjar valores a partir de sua própria concepção de mundo. Para que esta forma de ação se aperfeiçoe ainda mais é necessário que mais pessoas juntem-se, mais ‘além-do-homem’ sejam descobertos, que a ‘fidelidade à Terra’ e a busca por realização de desejos ocorram ainda nesta vida e que sejam sempre priorizados em detrimento de discursos revanchistas e acomodados. Quanto mais estas posturas forem incentivadas, mais formas revolucionárias de dizer não pela apropriação do presente serão descobertas. Criam valores a partir de si próprios e não através da negação dos valores do outro.

Há que se lutar contra uma lei que busca nivelar a todos, e, nestes espaços políticos criados pelos novos movimentos sociais, isto é feito. A grande luta a ser travada

45 “ (...) os novos sujeitos coletivos aqui tratados não são quaisquer movimentos sociais momentâneos e pouco

estruturados, de reivindicação ou de protesto, mas aquelas estruturas sociais mais permanente e estáveis que corporificam uma nova forma de fazer política. Trata-se de ‘novos movimentos sociais’ que reúnem um conjunto de características comuns, unidos por uma lógica organizacional ‘democrático-coletivista’, composta pela identidade de ‘objetivos’, ‘valores’, ‘formas de ação’ e ‘atores sociais’. Critérios que permitem qualifica- los como novos para distingui-los das antigas práticas reivindicatórias imediatistas de ação coletiva. O ‘novo’ refere-se à ação consciente e espontânea posta em movimento, representada por grupos associativos e comunitários, como os movimentos dos ‘sem terra’ (rural e urbano), dos negros, das mulheres, dos direitos humanos, dos ecólogos, dos pacifistas e dos religiosos (Comunidades Eclesiais de Base). O ‘novo’ está no fato de se tratar de manifestações com capacidade de surgir fora da cena política institucional, fundadas em razões que não só transcendem os estreitos interesses de produção e consumo, mas, sobretudo, com põem uma nova identidade coletiva, capaz de romper com a lógica do paradigma social dominante e se libertar das formas opressoras de manipulação e cooptação, criando alternativas implementadoras de práticas democráticas participativas.”( WOLKMER, 1997, p. 124).

contra a opressão de padrões impossíveis de serem seguidos leva a reivindicações que buscam romper com toda forma de imposição de valores e atitudes.

A inserção desses valores contra hegemônicos na esfera estatal obedece à dinâmica habermasiana, ‘o mundo da vida’ pressionando o Estado a fim de que este proteja seus valores. Mas deve-se entender também que estes movimentos não dependem do reconhecimento estatal. Os valores por eles expostos podem já ser realizados em suas comunidades, e a busca pelo reconhecimento do Estado deixa de ser o mais essencial.

Os centros geradores de Direito não se reduzem, de forma alguma, às instituições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, pois o Direito por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais, emerge de vários e diversos centros de produção normativa, tanto na esfera supra-estatal (organizações internacionais) como no nível infra-estatal (grupos associativos, organizações comunitárias, corpos intermediários e movimentos sociais) (WOLKMER, 1999, p. 338-339).

A fonte de legitimidade dessas reivindicações, levantadas pelos novos movimentos sociais, pode ser encontrada nas próprias lutas sociais cotidianas, e seus defensores, imbuídos do desejo de implementação de seus valores, a fim de que eles também figurem como valores com existência e que, por isso, devem ser respeitados, conquistado o direito de serem diferentes, ou de terem suas necessidades atendidas.