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O mal e/ou sofrimento: Deus em (na) questão?

CAPÍTULO 3 – O SOFRIMENTO DE DEUS

1. O mal e/ou sofrimento: Deus em (na) questão?

Não nos teremos concentrado excessivamente nas questões anónimas acerca do fenómeno do mal e/ou do sofrimento?255 Não será urgente tornar a questão um problema específico dos crentes, confrontando-os diretamente com um nome próprio, com o Nome? No ato de questionar, além de uma questão em Deus ou um questionamento ao próprio Deus, não haverá uma presença de Deus? Não está Deus na questão do mal e/ou do sofrimento? Assim, urge que olhemos o problema do mal e/ou do sofrimento diante de Deus. O cristão deverá ser aquele que transporta todas estas acutilantes inquietações até Deus. Numa tendência que afirma a impossibilidade da presença de Deus no sofrimento, inclinemo-nos para a direção oposta: onde está o sofrimento, aí está Deus, sem que Ele lhe dê sentido ou o justifique.

253 Cf. Adolphe Gesché, El mal – El hombre (Salamanca: Sígueme, 1995), 51-52. 254 João Duque, “O mal – Deus em questão (?)”, Didaskalia, nº 29 (1999): 330.

255Numa linha de sustentabilidade do raciocínio acerca do estatuto filosófico da questão do mal e do sofrimento poderia citar-se Silvano Petrosino – Sergio Ubbiali, org., Il male. Un dialogo tra teologia e filosofia (Milão: Glossa, 2009).

74 Ora, a primeira, mas também a mais antiga e universal atitude de protestar contra o problema do mal e/ou do sofrimento baseia-se na culpabilização de Deus, responsabilizando- o. É a atitude contra Deum ou adversus Deum: Malum, ergo non est Deus. Nesta perspetiva, Deus é encarado como responsável direto ou indireto porque não podia ou queria impedir o sofrimento. Assim, não existe ou não pode existir, a menos que o consideremos malvado ou inútil256.

Numa linha contrária à anterior, mas tão clássica e tradicional como a primeira, que surge, não raras vezes, como discurso dos crentes provocado pelo contra Deum, consiste na defesa de Deus diante da incómoda existência do mal e/ou do sofrimento. É a atitude pro Deo, que procura inocentar Deus de toda a responsabilidade do mal/sofrimento. Ao considerar esta perspetiva, logo transparece intenção de esta querer inocentar Deus demasiado rápido. De facto, não é nosso objetivo negar o direito de patentear que Deus não está na origem do mal/sofrimento. Porém, será necessário fazê-lo tão rapidamente, dando a sensação de que não queremos de modo algum ver Deus na questão do mal/sofrimento?

Uma real conceção de Deus, de um Deus de salvação, preocupado com a questão do sofrimento, convida a não O eliminar célere e levianamente desta questão, como indicia a pretensão apologética de honrar Deus do pro Deo. Aliás, o Deus de Job, de Jacob e de Jesus nunca deu sinais de predileção por discursos tranquilizantes e melífluos. Como tal, esta atitude não associa a si o grito do ser humano, a quem Deus reconhece a possibilidade de, num primeiro momento, lhe protestar. Este grito, em forma de protesto, que o ser humano dirige a Deus talvez manifeste uma maior confiança do que a daquele que empreende silenciar apressadamente esse lamento.

O pro Deo, na sua radical atitude de querer inocentar Deus, de forma demasiado radical, não acabará por expulsá-lo do problema, precisamente quando seria fundamental que Ele aí estivesse? Se a primeira atitude excluía Deus por defeito (Não há Deus), esta fá-lo por

75 excesso (Ele está acima da questão)257. As duas atitudes anteriores eliminam Deus do problema do sofrimento. A forma de pôr a questão de Deus acaba, paradoxalmente, por exclui-Lo: interroga-se Deus, por vezes mesmo com violência, mas sempre à distância, sem nunca O implicar verdadeiramente na questão.

De facto, paradoxalmente, tal acontece porque se está mais interessado com Deus do que com o sofrimento. Assim, faz-se o exercício de acusar ou defender Deus, mas, enquanto o fazemos, desprezamos a questão do sofrimento, que era precisamente o que estava em reflexão. Esta acutilante questão esquecida conduz-nos a um eterno paradoxo: o ser humano afastou, efetivamente, Deus, mas ficou em suspenso.

Na verdade, de modo algum, se pode pensar em comprometer Deus, no sentido de justificar com o fenómeno do mal/sofrimento. Porém, crer em Deus é acreditar na sua presença, no próprio questionar desta tremenda interrogação, afirmando que Ele não tem que ser excluído. É sobretudo acreditar na manifestação de Deus na questão: passar a questão por Deus, colocá-la em Deus, in Deo.

Deus-em-si não está inserido na questão do mal/sofrimento porque Ele não é a sua causa, mas este Deus-em-si, fazendo Deus-para-nós, fez do mal/sofrimento a sua causa: Ele tomou sobre si esta lancinante questão e, a partir de então, podemos vê-la recolocada n’Ele. Aliás, os temas do Cordeiro de Deus e da Descida aos Infernos, limitando-nos somente a estes, recordam-nos que Deus não procurou ser poupado a tais provações258.

Assim sendo, o ser humano reconhece o seu direito de colocar as inconvenientes questões acerca do fenómeno do mal e/ou do sofrimento em Deus. Todavia, como poderá fazê-lo? O teólogo A. Gesché, que fomos seguindo atentamente, afirma que a resposta a esta inquietação é-nos manifestada por três testemunhas privilegiadas, Jacob, Job e Jesus, que colocaram a questão em Deus: questio ad Deum. As três referidas testemunhas dirigiram-se a

257 Cf. Gesché, El mal – El hombre, 23-26. 258 Cf. Gesché, El mal – El hombre, 26-29.

76 Deus: não somente para interrogar ou para Lhe rezar, mas também para exprimir a sua repulsa ou aceitação, sempre num contínuo diálogo com Deus. Esta é uma atitude que jamais se detém no fenómeno mal/sofrimento, mas, inversamente, faz dele uma pergunta a Deus, mutando o paradigma do “ele” (presente na atitude contra Deum e na pro Deo) para o “tu”, ou seja, da discussão do monólogo interior (eu discuto sobre Deus) à discussão de diálogo (eu falo a Deus do mal) 259.

Neste sentido, a teologia, após adotar a lógica da fé (in Deo descobre o ad Deum como a possibilidade e o direito do crente interpelar Deus. Esta atitude faz-nos descobrir que a questão é de Deus, não somente uma desconcertante questão do ser humano. O fenómeno do mal e/ou do sofrimento surpreendeu toda a criação, por isso, não pode suscitar qualquer compromisso, senão ser prontamente combatido. Ora, neste processo, o ser humano descobre que o combate que trava, visto ser o mesmo de Deus, trava-o com Deus, cum Deo. Aliás, recordando as três testemunhas acima mencionadas, poderemos constatar a atitude cum Deo.

Após escutar o impressionante procedimento de Job, Deus afirmará que ele, ao contrário dos seus amigos, colocou bem a questão. Logo depois de reconhecer e admitir a defesa de Jacob, Deus chamá-lo-á por um novo nome que assinalará e santificará o seu combate (Israel, porque lutaste com Deus – cf. Gn 32,29)260.

Portanto, o grito do ser humano não é somente legítimo como também coincide com o próprio clamor de Deus, mas também possibilita a Deus manifestar-se absolutamente como é: Aquele que se opõe ao mal/sofrimento. Assim sendo, o fenómeno do mal e/ou do sofrimento não poderá ser nunca mais uma objeção contra Deus, porque Ele mesmo se converteu em objeção contra esse acutilante fenómeno.

Neste sentido, recusando os falíveis discursos de justificação, a única resposta possível ao mal é decisivamente uma declarada oposição, na certeza de que este combate não é

259 Cf. Gesché, El mal – El hombre, 30-31. 260 Cf. Gesché, El mal – El hombre, 35-37.

77 somente meu, é também o de Deus261.

Assim, assistimos, neste processo de questionamento acerca da inconveniente questão do mal/sofrimento, a uma essencial mutação do próprio ato de questionar. De facto, a partir de uma atitude de questionar, contra Deum, que considerava Deus como responsável pelo mal/sofrimento, ou numa linha contrária, a atitude pro Deo, a defesa de Deus, abeiramo-nos de um questionar, in Deo, que procura colocar a questão ao próprio Deus, a qual se tornou, passando por uma questão ad Deum, o ser humano envolve-se num diálogo com Deus, numa questão que, cum Deo, é colocada ao próprio mal. O clamor do ser humano coincide com o de Deus, porque Ele mesmo se confronta com o fenómeno do mal/sofrimento. Assim, Deus, em Jesus Cristo, comove-se com o sofrimento, padecendo com as vítimas, sendo que Ele mesmo se faz vítima. Ora, assim sendo, o inadiável discurso teológico sobre o mal e o sofrimento pode assumir a abertura à afirmação sobre o sofrimento do próprio Deus, revelado e presente, como Deus crucificado, em Jesus Cristo.