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CAPÍTULO 2 – DEUS QUE VEM AO HOMEM

2. Uma leitura teológica de Jo 11, 33-37

No evangelho de João, o relato da ressurreição de Lázaro é pleno de sentido e um dos mais desenvolvidos, sendo um daqueles em cuja explicação o evangelista mais se deteve. O termo “ressurreição” impõe uma reflexão acerca da terminologia que melhor se adequa ao sentido desta perícope. É lícito procurar uma nomenclatura precisa e fidedigna relativamente à realidade. Assim, quem segue o termo “reanimação” e não “ressurreição” terá que acautelar algumas ambiguidades.

A narração acerca de Lázaro não se refere a uma ressurreição gloriosa, tal como a de Jesus. Lázaro não acede à vida definitiva, mas empreende de novo o seu trajeto normal que, como tal, concluirá com uma morte definitiva. Contudo, o termo “reanimação” também provoca dificuldades, uma vez que se reveste de uma ressonância médica complexa e impossível de eliminar. Mais ainda: será o termo reanimação certo quanto à intenção do evangelista e até do próprio Jesus? No que concerne a Lázaro, é Jesus quem diz que ele está morto (cf. Jo 11,14). No tocante ao evangelista, ele afirma que Jesus encontrou Lázaro morto há quatro dias (cf. Jo 11,17). Também Marta, a irmã de Lázaro, aclara que ele já cheira mal, porque já morreu há precisamente quatro dias (cf. Jo 11,39).

Portanto, todos afirmam saber que Lázaro está morto, sendo que alguns estão convictos de que é impossível que ele volte à vida161. Assim sendo, é viável o uso do termo ressurreição, que será usado ao longo deste trabalho, «porque os milagres de ressurreição pretendem explicar o poder único de Jesus: o Filho de Deus ressuscita os mortos, o mesmo que Deus Pai»162. Não é somente compaixão, mas Deus, em Jesus Cristo, salva Lázaro.

161 Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 275-276. 162 Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 275-276.

46 O relato da ressurreição inicia com a constatação de que Lázaro está doente. Desta forma, tal como outros sinais joaninos, parte de experiências quotidianas. Na narração, há uma família que Jesus ama e que desperta a sua atenção: um irmão com duas irmãs, sem mais parentes: pais, esposa, filhos. Estas personagens estão exclusivamente por si mesmas ali163. O nome daquele que está doente é sintomático: Lázaro, uma forma abreviada de Eleazar, que significa “Deus ajuda”164.

O nome da localidade desperta também interesse: estamos em Betânia, que etimologicamente significa “casa de aflição”165. O relato, em João, não está ancorado numa ficção, como uma parábola, mas num gesto efetivo de Jesus. O evangelista destaca a absoluta iniciativa de Jesus, a sua palavra que supera o intransponível, a glória que n’Ele se manifesta. O milagre não é somente uma consequência do poder de Deus comunicado em Jesus, é também a palavra que se faz carne e atua166.

Nesta perícope todos acreditam que Lázaro está morto. Assim, a morte afigura-se como uma angústia e um absurdo, sendo que nos interpela a pensar: como é que Deus-que- não-é-senão-amor consente que a sua criatura vivencie um desastre desses? Aliás, é Marta que adverte Jesus, dizendo-lhe que se estivesse junto do seu irmão, ele não teria morrido (cf. Jo 11,21). Ora, Deus quer que o ser humano seja alguém para Ele e perante Ele. Portanto, quer o ser humano como pessoa e sujeito, sendo, por isso, imprescindível que para tal o Homem necessite de ser diferente d’Ele.

Ao ler a perícope em estudo, poderíamos perguntar: não poderia Ele fazer do ser humano um ser infinito, que não sofresse a terrível experiência da morte? A resposta a tão acutilante pergunta afigura na afirmação de que o poder de Deus é o poder do amor, como escreve François Varillon167. Ora, o amor quer que o outro seja verdadeiramente outro e não

163 Tilborg, Comentario al evangelio de Juan, 217-218. 164 Brown, Giovanni. Commento al Vangelo Spirituale, 547. 165 Cf. Konings, Evangelho segundo João. Amor e fidelidade, 223. 166 Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 284.

47 uma emanação de Deus. Portanto, é a seriedade do amor criador de Deus que exige que Ele crie um outro diferente de Si. Assim sendo, porque é amor, Deus não cria o ser humano infinito. Neste sentido, ao criar, Deus aventurou-se, no sentido em que Ele não recua diante do drama que vai derivar da criação de seres livres e finitos. Assim, é drama para o ser humano, mas também para Deus e, por isso, Varillon, como adiante na reflexão apresentaremos, afirma o sofrimento de Deus168.

Na análise precedente de algumas particularidades da perícope, salientámos a acutilância do verbo que expressava que Jesus amava Lázaro. Ora, amava-o vivo, e quando ele morre, a sua morte leva-O a derramar lágrimas. É ainda interessante notar que Betânia é uma localidade próxima de Jerusalém. Assim, também a anotação geográfica do evangelista (cf. Jo 11,18) coloca-nos na atmosfera da semana da Paixão, visto que Jerusalém está perto169. Portanto, a partida de Jesus ao encontro da família de Betânia está relacionada com o tema da morte, mas não somente com a do seu amigo Lázaro.

A alusão dos discípulos indica o intento de apedrejarem Jesus. Assim, ali onde morreu o seu amigo, também Jesus pode perder a sua vida e os discípulos colocam-se em perigo170. Aliás, a introdução da secção da sessão do Sinédrio (cf. Jo 11,45-54) está relacionada com o milagre de Lázaro, surgindo uma irónica relação: o dom da vida que Jesus oferece será a causa da sua morte171.

Assim sendo, os milagres são gestos de amor porque é Deus quem nos visita nas nossas debilidades. Portanto, Deus, em Cristo, tem compaixão, chora pelo amigo que amava, pois «Deus é amor, e esse amor encarna em Cristo, coração humano, linguagem humana para aproximar-se do ser humano, da sua miséria e tornar presente a intensidade do amor divino»172. Deste modo, no gesto de Jesus, após permanecer dois dias em Betânia, de se pôr a

168 Cf. Varillon, Joie de croire. Joie de vivre, 181-183.

169 Cf. Konings, Evangelho segundo João. Amor e fidelidade, 223. 170 Beutler, Comentario al evangelio de Juan, 284.

171 Cf. Brown, Giovanni. Commento al Vangelo Spirituale, 575. 172 Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 317.

48 caminho, deixando ressoar indícios da sua própria ressurreição, ao terceiro dia, perpassa um sinal interpelante e interpessoal, portador de um desígnio divino que é dirigido ao ser humano, como uma palavra concreta e urgente de Deus para patentear o carácter atual e efetivo da salvação173.

No relato analisado, Cristo faz-se presente para anunciar Deus e o Homem, não para se anunciar primeiramente a si mesmo. Não se apresenta como fonte ou objeto da sua mensagem: «O que o meu Pai me deu vale mais que tudo e ninguém o pode arrancar da mão do Pai» (Jo 10,29). Aliás, numa densa e relevante passagem, «Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou o que sou e que nada faço por mim mesmo, mas falo destas coisas tal como o Pai me ensinou» (Jo 8,28), Jesus afirma de uma forma contundente que Ele é o Filho de Deus, mas é-o em referência ao Pai, recusando uma centralização absoluta.

Cristo está no centro, porque é Ele quem anuncia Deus. Todavia, Ele não é o centro, porque quem salva é o Pai (cf. Jo 17,3)174. O milagre somente revela a sua verdadeira natureza, quando é encarado do ponto de vista de Deus, mas não menos do que do ponto de vista do ser humano175. Ora, neste sentido, salientemos que «a humanidade de Deus não constitui mera aparência ad extra. Ela faz parte da vida intrínseca do mesmo Deus»176.

Posto isto, revela-se como essencial a perspetiva sistemático-fundamental do teólogo belga Adolphe Gesché, que alarga o conceito de cristologia, entrelaçando antropologia e teologia. Assim, se é notório que não se pode conceber a teologia cristã sem cristologia, isto é, sem o discurso sobre o Cristo, é então indispensável, antes de mais, «tomar consciência que ele esteve entre nós, não primeiramente para falar dele mesmo, mas acima de tudo para nos falar de Deus e nos falar do Homem»177.

173 Cf. Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 314.

174 Cf. Adolphe Gesché, Le Christ (Paris: Les Éditions du Cerf, 2001), 24. 175 Cf. Latourelle, Milagros de Jesus e teologia del Milagro, 313.

176 João Duque, O excesso do dom (Lisboa: Alcalá, 2004), 120. 177 Gesché, Le Christ, 21.

49 Deste modo, mais do que um discurso centrado em Cristo, urge uma reflexão acerca do discurso de Cristo sobre Deus e sobre o ser humano (cf. Jo 18,37). Em Cristo, encontra-se Deus e o ser humano reunidos. E, neste sentido, Gesché interpela-nos: «contemplar a Cristo, isto é, acolher o relato/narrativa de uma relação entre Deus e o homem, não será uma maneira de contemplar o Homem?»178.

Portanto, a figura de Cristo é teológica e antropológica, revelando a doutrina direta da imanência de Deus no ser humano e do ser humano em Deus. Na verdade, «o que procuramos é uma transcendência na imanência e não tanto uma transcendência incandescente, nem uma imanência sufocante. Um Deus que vem a ser o Invisível recomendando o visível, que transforma o indizível em manifestação aberta179.

A revelação presente na perícope analisada patenteia um Deus capaz do Homem (Deus capax hominis), pois Deus, em Cristo, não reside numa transcendência. Como tal, este pressuposto abandona o fosso metafísico entre Deus e o ser humano, sem desconsiderar a diferença que os une. Todavia, este intento (Deus capax hominis) impele-nos a dizer, mas sem limitar, a relação patente entre Deus, o Totalmente-Outro, e Cristo, a identificação de Deus com o Homem, relacionando-a também com outros seres humanos, cada um de nós. Portanto, a pretensa impossibilidade de um Deus-Homem articula-se com a não menor impossibilidade de um Homem-Deus. Assim, a fé em Deus revelado por e em Jesus Cristo conduz-nos a uma reflexão acerca dos atributos de Deus. Centrar-me-ei na transcendência e na imanência.

178 Gesché, Le Christ, 13. 179 Gesché, Le Christ, 15.

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