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O “MASSACRE DE MANGUINHOS”

No documento catarinamenezesschneider (páginas 84-89)

4. A DITADURA NO BRASIL

4.5. O “MASSACRE DE MANGUINHOS”

Não houve censura somente à mídia, aos jornalistas, aos políticos e partidários. Pesquisadores e cientistas da Fundação Oswaldo Cruz, um dos principais Institutos de saúde do país, também foram perseguidos. Assim, enquanto estimulava o desenvolvimento científico tecnológico, criando agências de fomento, multiplicando as pós-graduações e realizando uma ampla reforma universitária, os “anos de chumbo” também ficaram conhecidos pela repressão às universidades, perseguição a pesquisadores e desmontagem de laboratórios, além da cassação aos pesquisadores da época.

A pesquisa conquistava, assim, o seu núcleo inicial. Em 19 de março de 1908, o primeiro Regime do Instituto de Manguinhos, atribuía ao Instituto funções de uma verdadeira Universidade, na qual se entremeavam obrigações de pesquisa e de ensino, com deveres de preparo de soros e vacinas. “Foi o Instituto de Manguinhos, no dizer de Walter Oswaldo Cruz, uma máquina de fazer máquina no desenvolvimento da nossa incipiente Biologia Experimental” (LENT, 1978, p.14).

Maia (2011, apud Lima, 2014), destaca que, entre o fim do governo Costa e Silva e a entrada do governo Médici, de 1968 a 1974, houve três grandes iniciativas ao desenvolvimento científico do país: as reformas universitárias, a institucionalização da pós-graduação e a criação da carreira de dedicação exclusiva. Essas ações fixaram pesquisadores no país, ao mesmo tempo em que elevaram o financiamento nas áreas da

ciência e da tecnologia. No entanto, ao passo que esse estímulo crescia, a ausência da liberdade dos cientistas e o aumento das perseguições também eram maiores.

De acordo com Lent (1978), o movimento militar de 1964 encontrou a Fundação Oswaldo Cruz dirigido por Joaquim Travasso da Rosa, um cientista que havia feito sua carreira no Instituto Butatã, em São Paulo, e colaborava muito para a pesquisa no país. Mas no governo de Castelo Branco, Travasso foi substituído por Rocha Lagoa, um médico que, segundo Lent, “não possuía nenhuma credencial como pesquisador” (LENT, 1978, p. 19).

Ao assumir o cargo de diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Rocha Lagoa já encontrou iniciadas as duas inquirições que o golpe de 1964 havia instaurado. Neste momento, vários cientistas que exerciam funções de chefia foram afastados pelo Ministro da Saúde Raymundo de Britto.

Em fins de 1964, a Imprensa falava em terror cultural, também exercido no Instituto Oswaldo Cruz, onde vários cientistas eram pressionados, entre eles o Dr. Walter Oswaldo Cruz (e seus assistentes), que tivera o seu laboratório praticamente destruído e seus alunos dispersados (LENT, 1978, p. 24).

No dia exato do aniversário de seis anos do golpe militar, em 1º de abril de 1970, sob a vigência do Ato Institucional nº 5, um decreto calaria por muitos anos a Fundação Oswaldo Cruz. A cassação privou de direitos políticos seguidos de aposentadoria compulsória dos cientistas. Os dez cientistas afastados eram, segundo Raíza Lima, líderes de laboratórios e representavam uma parcela significativa para o corpo científico da instituição, já que a Fundação possuía apenas 70 pesquisadores na época. Dessa forma, a cassação privou a continuidade de pesquisas.

O massacre de Manguinhos, para mim, não se refere tanto ao que aconteceu com os dez cientistas cassados. Atingiu mais ao Instituto Oswaldo Cruz, atingiuprofundamente ao país. A destruição não se limitou ao afastamento daquelas pessoas; outras foram ali deslocadas e deixaram de contribuir para o desenvolvimento da ciência: Laerte Manhães de Andrade, mocrobiologista; Jorge Guimarães, patologista; Mario Vianna Dias e Charles Esberard, fisiologistas, foram transferidos por Lagoa para outros locais onde não puderam prosseguir seus trabalhos. E muitos se aposentaram, quando possível, enojados (LENT, 1978, p. 63).

Em entrevista com o pesquisador José Juberg8, entomologista da Fundação Oswaldo Cruz e orientando e amigo de Herman Lent, ele conta que entrou na Fiocruz em 1960 e viveu momentos difíceis ali dentro. Aparentemente, quando os militares tomaram o poder, o Instituto Oswaldo Cruz não sofreu nada, a não ser a expectativa do que poderia acontecer. Em 1970, o diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Costa Lagoa, assumiu o poder e a primeira coisa que ele fez ao assumir o cargo foi dizer que “o Instituto Oswaldo Cruz era um ninho de comunistas”, afirma ele.

Assim, indiciou 14 envolvidos apontados como comunistas. “Abriu-se um inquérito na Marinha que ia investigar o que esses comunistas faziam aqui dentro do Instituto Oswaldo Cruz, que podiam disseminar ideias de esquerda, tomar o poder e tinha uma luta muito grande dentro do Instituto, pois a situação era tão ruim- não tinha dinheiro, não tinha instalação, não tinha nada- e aí um ministro queria criar o Ministério da Ciência e Tecnologia. Assim, alguns pesquisadores quiseram sair do Ministério da Saúde que não dava nada para o Instituto e ir para o novo Ministério da Ciência e Tecnologia”, conta. Lagoa então pegou isso como desculpa e disse que esses cientistas eram comunistas e estavam querendo subverter a ordem dentro do Instituto. “Eu também fui indicado. Era garoto, tinha 20 e poucos anos, os outros todos eram senhores de idade”, relembra.

Ele fala que foi, então, junto com os outros indiciados, para o inquérito da Marinha. Chegaram lá às 8h da manhã no escritório do Ministério da Saúde e eram chamados um por um para uma entrevista. “Tinha gente que ficava lá dentro meia hora, uma hora, duas horas até. Todo mundo sentado esperando sem saber o que ia acontecer”, diz o pesquisador.

Juberg foi convocado para entrar na sala somente às 17h e a sua entrevista durou cinco minutos. Ao entrar, os militares ali presentes faziam três perguntas: você é comunista? Tem tendência de esquerda? Quem são os comunistas do Instituto? “A tudo eu ia respondendo ‘não, não, não’ e aí me mandaram embora. O que eles queriam saber, no fundo, é se aqui existia uma rede de comunistas”, relembra.

Dos 14 entrevistados, 10 foram cassados, dois aposentados e ele e mais um foram inocentados. “Chegou lá o resultado do meu inquérito dizendo que eu era um comunista recuperável”, recorda ele sorrindo da situação. O único que foi inocentado e permaneceu no Instituto foi o pesquisador José Jouberg. Ele relata que foi em 1970 que

começou a guerra dentro da Fiocruz. “Eles destruíram todo o laboratório que eu fiquei responsável para transformar em secretaria. O diretor Rocha Lagoa me retirou de lá e me jogou num hospital velho, com toda a coleção entomológica da Instituição Oswaldo Cruz”. A coleção tinha um milhão de exemplares e mais de seis mil gavetas com insetos.

Logo depois, o vice-presidente da Fiocruz chegou até ele e disse que ali não era lugar para amostras de insetos, que toda a coleção deveria ser doada para um museu, pois o Instituto só tinha interesse em insetos que servissem à medicina. “Eu briguei muito até que consegui que a coleção permanecesse aqui. Por isso, até hoje lembram de mim como ‘o cara que defendeu a coleção’. Mas para isso eu paguei um preço muito alto. Fui muito perseguido aqui dentro. Um dia o diretor chegou até mim para dizer que se eu publicasse algum trabalho com um dos cassados, ele iria me transferir para o Piauí”, diz ele.

Porém, ele afirma que não deixou de trabalhar com os pesquisadores cassados. Continuou com várias pesquisas em andamento e tinham o plano de esperar a ditadura acabar para, assim, poder liberar os trabalhos concluídos. “Juntamos vários trabalhos prontos na gaveta só aguardando o fim da ditadura para serem publicados".

Quando acabou a ditadura, Sérgio Arouca se candidatou a diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Juberg relembra que perguntou a Arouca se ele fosse eleito, o que faria com os cassados. Ele prometeu que os traria de volta. No dia seguinte da eleição, Juberg foi à sala do novo presidente e pediu que ele cumprisse com a sua palavra. E assim ele fez.

Arouca conseguiu trazer de volta todos os cassados, menos um: Herman Lent. Este disse que não retornava porque quando eles foram cassados, a lei dizia que não poderiam exercer nenhuma atividade de ensino, pesquisa e nem ficar perto de jovens. Porém, Herman foi lecionar na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, que o acolheu. “Ele era meu orientador. Então, já que decidiu não voltar, combinávamos de nos encontrar duas vezes por semana, bater papo sobre o andamento das pesquisas e construir novas ideias. Isso o distraía. Assim, trabalhamos juntos 40 anos. Eu e o Herman Lent”, afirma o pesquisador Juberg.

A entrevista neste momento foi interrompida, pois Juberg se emocionou ao lembrar do seu orientador e “dos anos difíceis para mim e para todos os pesquisadores. Éramos perseguidos só por fazer nosso trabalho. Foi difícil, muito difícil”, afirmou ele.

Ele relembrou que o Instituto Oswaldo Cruz era muito pobre nesta época. Depois de um tempo, passou de Instituto para Fundação, e juntou todos os órgãos do Ministério da Saúde do Rio de Janeiro num órgão só transformado na Fiocruz. “Eram instituições espalhadas e depois ficou tudo sobre responsabilidade da Fiocruz. Assim, deixou de ser responsabilidade do governo e passa a ser uma atividade particular”, diz Juberg. Depois a Fundação Oswaldo Cruz volta a ser de responsabilidade do Ministério da Saúde como é até hoje. “Quando entrei tinha 150 funcionários, entre técnicos e pesquisadores. Hoje tem 12 mil”, conta ele.

Portanto, Juberg acredita que muito do que construiu até hoje dentro da Fiocruz e do reconhecimento que faz parte da sua carreira, tem a ver com o que aconteceu na época do “Massacre”. “Eu lutei por aquilo que acreditava. Lutei pelo meu trabalho. Luto até hoje”, finalizou.

No documento catarinamenezesschneider (páginas 84-89)

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