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CAPÍTULO 1. A MEMÓRIA ENTRA EM CENA

1.4 O 16MM E O FAZER CINEMA

Quando esta pesquisa teve início, sabíamos que seria preciso revirar os esconderijos da memória, investigá-los, fazer duelar lembranças e esquecimentos, para buscar a história sobre os filmes feitos em 16 milímetros em Santa Maria.

Ao realizar o Estado da Arte da pesquisa, compreendemos que a tarefa de estudar as contribuições desta bitola exige um cuidado semelhante ao que propõe Saramago (2006) sobre as memórias. É preciso manusear as informações como se fossem um fio muito delicado que está solto em meio a um grande emaranhado “na escuridão dos nós cegos”. Um fio que exige cuidado para não ser desfeito e que, quando se encontra a ponta, nela estão fundidas “as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro” (SARAMAGO, 2006, p.14).

Para encontrar a ponta desse fio, buscamos pesquisas sobre o cinema amador em 16 milímetros ou que, ao menos, fizessem menção a esse suporte. Não foram encontrados estudos específicos sobre a apropriação do 16mm pelo cinema no país, porém uma série de autores apresenta pistas sobre a sua importância. Essas pistas aparecem principalmente em meio a estudos sobre realizadores

pioneiros, como faz Caio Julio Cesaro em Preservação e restauração

cinematográficas no Brasil: a restauração do acervo de Hikoma Udhiara (2007). A

tese descreve o processo de restauração fotoquímica de parte do acervo cinematográfico do realizador amador Hikoma Udihara, que fez filmes domésticos no interior do Brasil entre 1930 e 1962.

Na pesquisa que realizamos na Filmografia Brasileira27, Udihara aparece como um dos realizadores com mais de 70 registros fílmicos. Ele fez parte de um momento no qual os realizadores usavam essas câmeras para registrar o cotidiano e crescimento de cidades brasileiras. No caso de Udihara, são filmagens de cerimônias, eventos relacionados à imigração, o desenvolvimento da cidade e atividades religiosas em Londrina, no Paraná.

Podemos afirmar que ele tem um papel para Londrina como Sioma Breitman teve para Santa Maria nos anos de 1930 e como José Feijó Caneda, um dos pioneiros do 16mm, teve nos anos de 1960. Mas existe uma diferença muito grande em relação à preservação do material dos três. Enquanto os filmes de Udihara e Breitman foram preservados e restaurados, as filmagens que Caneda realizou não contou com qualquer projeto de recuperação.

Em relação ao uso do 16mm no Rio Grande do Sul, um dos trabalhos importantes já realizados é a monografia de conclusão de Graduação de Gustavo Estrela da Cunha (2010). Em Captando imagens em movimento: escolha dos

equipamentos no audiovisual gaúcho, o autor analisa a escolha dos equipamentos

pelo audiovisual no Rio Grande do Sul e como ela altera a estética dos filmes.

Cunha realizou entrevistas com quatro diretores de fotografia de Porto Alegre. Ivo Czamanski, Francisco Ribeiro, Alberto La Salvia e Bruno Polidoro não usam mais o 16 milímetros, mas afirmam que essa bitola foi importante no Rio Grande do Sul. A informação, vinda de profissionais da área, sinalizou que estávamos no caminho certo no sentido de compreender o papel do 16mm para o cinema do Estado.

Isso se tornou ainda mais evidente com a leitura da tese O campo

cinematográfico no Rio Grande do Sul (2013) de Ricardo de Lorenzo. O autor afirma

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A Filmografia Brasileira é uma base de dados organizada pela Cinemateca Brasileira sobre a produção audiovisual no país. Ela começou a ser organizada em 1950 e passou a ser disponibilizada na internet em 2001. Atualmente a base de dados contém informações de cerca de 40 mil títulos de diferentes períodos do cinema nacional. Um detalhe importante é que fazer parte da lista não pressupõe que o filme tenha sido preservado ou faça parte do catálogo de filmes da Cinemateca.

que o 16mm abriu possibilidades para os cineastas, mas fala de um ponto de vista mais recente, principalmente a década de 1990. No entanto, no desenvolvimento de seu trabalho, Lorenzo traz algo que vai ao encontro do que pensamos sobre a influência do 16mm na formação dos realizadores. Ele conta que o pai do cineasta gaúcho Carlos Gerbase tinha uma câmera 16mm com a qual não fazia cinema, porém, realizava filmagens domésticas. No caso de Gerbase, esse tipo de filmadora não foi a sua porta de entrada para o cinema, mas representou um primeiro contato com as imagens em movimento, mostrando como a presença desse tipo de tecnologia tornava mais presente a possibilidade de registrar imagens (LORENZO, 2013, p.122).

Outro estudo que auxiliou no percurso da pesquisa foi o artigo Vídeo e

Cinema: rupturas, reações e hibridismo (2003), de Ivana Bentes. Ao refletir a

respeito da transição e do diálogo entre o cinema e o vídeo, a autora sinaliza sobre a importância do suporte 16mm, afirmando que esse tipo de câmera, com o surgimento do som direto, fez florescer o cinema de intervenção.

Um dos trabalhos que mais se aproxima da investigação do uso do 16mm pelo cinema é a tese O cinema direto e a estética da intimidade no documentário

dos anos 60 (2012) de Fernando Weller. O autor analisa as transformações

ocorridas no cinema documental brasileiro, em especial o cinema direto28, e mostra como a evolução do suporte 16mm, entre os anos de 1930 e 1960, contribuiu para isso. Como os filmes que estudamos nesta pesquisa estão compreendidos dentro do período analisado por Weller, e por usarem o mesmo tipo de suporte, seus dados nos auxiliam a compreender o contexto desse tipo de produção no país na época.

Finalmente, há duas pesquisas que vêm ao encontro do estudo em andamento, a dissertação Filmes domésticos: uma abordagem a partir do acervo da

Cinemateca Brasileira (2010) e a tese Cinema amador brasileiro: história, discursos

e práticas (1926-1959), ambos de Lila Foster.

A pesquisadora aborda a formação do cinema amador no Brasil a partir dos filmes domésticos. Foster explorou o acervo da Cinemateca e revelou que lá estão

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De acordo com Weller, ao mesmo tempo em que o cinema direto caracterizou por mostrar a realidade, o que o tornou conhecido como Cinema-Verdade, por outro lado, a seus cineastas interessou particularmente a vida privada e as relações e laços de intimidade que dela fazem parte (WELLER, 2014, p.75).

armazenados 662 filmes domésticos na bitola 16mm, o que representa 62,2% do acervo total de filmes domésticos, mostrando como esse tipo de filmadora estava presente nos lares dos brasileiros e como pode ter influenciado quem queria fazer filmes com intenções cinematográficas.

Não podemos deixar de citar, ainda, as contribuições do livro Quando Éramos

Jovens: história do Clube de Cinema de Porto Alegre (2000), de Fatimarlei

Lunardelli. Do clube fizeram parte a maioria dos cineastas que realizaram os filmes em 16mm em Porto Alegre nos anos de 1950 e 1960. Isso sem contar a preciosidade que é a entrevista trazida pela autora com Antonio Carlos Textor sobre o cinema na época e sobre o uso de projetores também para oportunizar a exibição de filmes em uma época em que a censura era um empecilho à cultura.

Apesar da importância que o suporte amador em 16 milímetros teve para o cinema brasileiro, existe um vazio historiográfico sobre o uso dessa bitola. Dessa forma, se fecha os olhos para o fato de que foram em circuitos alternativos, como festivais e cineclubes que em alguns períodos o cinema amador criou condições para driblar problemas como a censura, a falta de recursos e até mesmo a inexistência de salas em muitas cidades.

Esse silêncio sobre a existência dos filmes em 16 milímetros, como ocorre em Santa Maria, acabou por prejudicar a própria memória do cinema não só da cidade, mas no Estado e no país. Os dez entrevistados que ouvimos e a partir dos quais passamos a construir memórias e a refletir sobre a identidade do cinema em Santa Maria, nos ajudam a quebrar esse silêncio. Seus depoimentos são a matéria prima do fio que nos ajuda a costurar história, memória, identidade, comunicação e cultura.