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CAPÍTULO 1. A MEMÓRIA ENTRA EM CENA

1.3 SANTA MARIA: TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES

Até aqui, debatemos questões como memória, identidade e as possibilidades que a história oral nos trouxe para constituir o campo quando ele ainda não está formado, como é o caso do estudo dos filmes em 16mm realizados em Santa Maria nos anos de 1960. Como dissemos, essas memórias e essas identidades das quais falamos não são questões isoladas e são influenciadas também pelo contexto histórico, cultural, político e comunicacional que Santa Maria viveu naquele período.

A década de 1960 foi marcada mundialmente por intensas transformações em diferentes campos. Foram tempos de tensão, como a Guerra Fria e a construção do Muro de Berlim, em 1961, separando a Alemanha Oriental, socialista, da Ocidental, capitalista. Houve avanços tecnológicos, como o lançamento do primeiro chip de computador, pela IBM, em 1964. A política foi marcada por acontecimentos como o assassinato do presidente dos Estados Unidos J. F. Kennedy, em 1963. Na música, ocorreu a gravação do primeiro disco dos Beatles, em 1962. Na moda, foi lançada a minissaia, em 1965. E foi nesta época que o homem chegou à Lua, em 1969. Em síntese, o mundo estava em transformação e ebulição.

O período foi marcado por acontecimentos históricos importantes e pela efervescência de movimentos sociais em especial na América Latina, onde se instalaram ditaduras. Exemplo disso é o Brasil onde, por um lado, se pôde comemorar o bicampeonato mundial na Copa do Mundo de Futebol, em 1962, no Chile, e os avanços tecnológicos que possibilitaram, por exemplo, o avanço do documentário na televisão; por outro, o golpe militar de 1964 assinalou mais de duas décadas de ditadura.

No campo cinematográfico não foi diferente: Jean-Luc Godard lançou O

acossado, um dos mais famosos filmes da Nouvelle Vague em 1960, mesmo ano

em que estreou Psicose, de Alfred Hitchcock e A doce vida, de Federico Fellini. Ao mesmo tempo em que o cinema independente, principalmente a partir de John

Cassavetes, ganhou espaço nos Estados Unidos, surgiram diretores e produções de destaque em países como Itália, França e Inglaterra. Isso sem contar no Cinema Direto e sua quebra de padrões, que instituiu o que Weller (2012) denominou de “estética da intimidade”.

A partir do final dos anos de 1950, aos poucos o Brasil deixava de ser um país predominantemente rural, com a economia baseada nas exportações de café, para se tornar um centro urbano. O Plano de Metas, implementado no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), incentivou os setores industriais, modificando a estrutura produtiva nacional. Isso acabou se refletindo em Santa Maria pela existência da ferrovia, que começou a perder seu espaço no transporte de cargas.

A cidade passou por duas grandes mudanças nos anos de 1960: a crise da ferrovia e a construção da Universidade de Santa Maria, que depois se tornou Universidade Federal de Santa Maria.

Ao longo dos anos de 1960, o transporte de passageiros começou a ser desativado, permanecendo apenas o de cargas pesadas. A cidade se manteve como centro ferroviário por conta da passagem dos trens de carga, mas muitos setores ligados à ferrovia entraram em decadência. Em meio às greves dos ferroviários, o comércio também entrou em crise e nas prateleiras dos mercados começou a faltar carne, como contou o jornal A Razão:

As classes assalariadas, especialmente os trabalhadores da categoria do salário mínimo, estão conhecendo de perto como até então não haviam conhecido, a presença da mais desoladora falta do indispensável para a sua subsistência e dos seus. Estas afirmativas valem muito singularmente para Santa Maria, cidade que não conta com um serviço regular de abastecimento de gêneros alimentícios e onde a carestia desses artigos faz praça, muito pouco sobrando para os que vivem aperturas salariais quando o próprio abastado, com dinheiro no bolso, não encontra, a preços mais razoáveis, o do que necessita para viver (A RAZÃO, 26 mai.1960, p.10).

Em meio às situações econômica e social complicadas, a criação da Universidade de Santa Maria, que começou a se desenhar na metade dos anos de 1950, passou a ser vista como uma solução para o futuro da cidade e também para o desenvolvimento da economia regional. Para defender essa causa, foi criada a Aspes (Associação Santa-mariense de Pró Ensino Superior), que tinha como presidente o fundador da UFSM, José Mariano da Rocha Filho. A intenção era reunir cursos como os de Farmácia e Medicina que existiam como faculdades.

O plano deu certo e a UFSM foi criada em 14 de dezembro de 1960, pela Lei 3.834-C, aprovada na Câmara dos Deputados. Ela foi a primeira universidade pública federal do interior do Brasil. A universidade era tida como “o início de uma nova era” (A Razão, 14 dez.1960, p.1).

Além de ser um alívio para a falta de uma perspectiva para sanar os problemas econômicos, a UFSM começou a mudar as características da cidade. Atualmente, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santa Maria conta com uma população estimada em 276.108 habitantes, sendo que 95,1% desse total vive na área urbana do município. Em 1962, a cidade contava com 130 mil moradores. Deles, mais de 44% moravam em distritos (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997, p.263). Foi a partir de 1960 que a cidade começou a passar por uma aceleração da sua urbanização.

Em carta ao presidente João Goulart, em abril de 1963, o reitor da UFSM, Mariano da Rocha Filho, ajuda a compreender como era a cidade:

Santa Maria é um conglomerado essencialmente proletário (...) dá curso a todos os caminhos do quadrante estadual e fica ao pé de duas fronteiras internacionais (...) possui quatro estações de rádio, imprensa escrita diária e periódica e é o mais importante centro de radioamadorismo no Estado (...) tem intensa vida político-partidária (...) é sede de Congressos Classistas Regionais e Nacionais (...) é a cidade de mais intensa vida corporativa em todos os setores de atividades (...) possui os quatro maiores redutos humanos de militares, ferroviários, estudantes e comerciários do Estado (...) oferece a segurança do maior lastro de politização das massas [e] o panorama magnífico e inequívoco de comunidade isenta de impulsos bruscos na vida econômica e financeira. (ROCHA, 1963, fls. 01/02).

Entre os cursos que foram criados na UFSM está o de Agronomia, que começou a funcionar em 1962. No curso ficava o Instituto de Solos e Culturas da UFSM, onde trabalhou a agrônoma austríaca Ana Primavesi, que teve a ideia de realizar o documentário animado A vida do solo. A ideia da pesquisadora foi encontrar uma forma de explicar aos estudantes um conceito novo para a época, o de que existe vida no solo. Esta concepção fez Primavesi ser reconhecida mundialmente como a mãe da agroecologia.

No instituto acabaram se cruzando as histórias de cinco pessoas que se envolveram nos filmes que são objeto de estudo desta pesquisa. Ana Primavesi dirigiu e roteirizou o documentário; José Feijó Caneda, que já realizava trabalhos para a universidade filmando os procedimentos cirúrgicos que eram exibidos no circuito interno de televisão da instituição, foi o cinegrafista da produção. Para fazer

as animações, foram contratados os desenhistas Joel Ramagueira Saldanha e Orion da Silva Mello. E, finalmente, a colorista dos desenhos era Glycia Doeller, que era desenhista da universidade e anos mais tarde se transferiu para a Universidade Federal Fluminense, na mesma área. Caneda faleceu em 2004 e Glycia em 1997. Primavesi lembra o que motivou a realização do filme:

Naquela época era normal que a gente tentasse buscar alternativas para mostrar às pessoas o que queríamos dizer com determinados conceitos. Porque era tudo muito novo. As pessoas nem sempre entendiam o que queríamos dizer quando falávamos que havia vida no solo. (PRIMAVESI, entrevista concedida à autora).

Em função de ter sido um núcleo ferroviário e político, e, depois, pelo crescimento da UFSM, Santa Maria sempre teve uma cena cultural muito forte. A cidade tinha sido a segunda do Estado a receber energia elétrica, em 1897, e um ano depois já contava com salas tradicionais de cinema (BELTRÃO, 1952). Depois, realizadores como Sioma Breitman e José Feijó Caneda entre as décadas de 1930 e 1960, usaram as vitrines de seus estúdios fotográficos para fazerem projeções de pequenos filmes rodados na cidade, já em 16mm.

Grassi e Garofallo recordam que as ruas do centro da cidade ficavam cheias de pessoas interessadas em assistir às exibições realizadas na vitrine da Foto Íris, loja que pertencia a José Feijó Caneda:

Lembro de ter visto na vitrine dele, provavelmente num sábado à noite ou num domingo, porque naquela época as pessoas saíam para passear no Centro da Cidade, na Praça, no Calçadão, lembro de ter passado por ali e de estar passando o filme do Caneda, A ilha misteriosa na vitrine. (GRASSI, 2016, entrevista concedida à autora).

Nos anos de 1960, ir ao cinema e aos cineclubes era um hábito arraigado dos santa-marienses, como lembra Guiso Isaia:

A diversão na cidade era ir até a Viação Férrea ver os trens chegarem, e para fazer isso tinha de pagar para entrar lá, ou ia no cinema. Santa Maria, naquela época chegou a ter sessões matinais. Tinha sessões às dez horas da manhã, tinha sessões à tarde, tinha sessões à noite. Esse prédio aqui25, quando nós compramos, tinha mil e quatrocentas cadeiras. Além do

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A entrevista foi realizada no prédio onde funciona o setor administrativo da Eny Calçados, na Rua Doutor Bozano, 1.129. O prédio onde funcionou o Cine Teatro Imperial, um dos maiores que a cidade já teve, foi comprado pela família Isaia e transformado em uma filial da Eny Calçados e na sede da Fundação Eny.

Imperial ainda tinha o Independência, que era ali na praça e o Glória, na Ângelo Uglione, onde hoje funciona a igreja. Fora os cinemas tinha os cineclubes. Tinha o da Ação Católica e o que o Edmundo Cardoso fundou onde era a Biblioteca Pública, onde hoje é o Theatro Treze de Maio. Mas não passou disso, eram esses. Depois começou a decadência. (ISAIA, 2016, entrevista concedida à autora).

Porém, como uma cidade em desenvolvimento, ainda havia muitos problemas a serem solucionados. Um deles era o transporte público. Como conta José Pacheco de Abreu no Guia Geral do Município de Santa Maria de 1962: “se observa uma grave irregularidade no tráfego urbano, que é a falta dos transportes depois das 21 horas, o que obriga os moradores dos arrebaldes a se recolherem cedo, em prejuízo de suas diversões noturnas”. O cinema era na época um dos principais entretenimentos da cidade e, sem transporte, moradores dos bairros não conseguiam ir às últimas sessões.

Depois de chegar a contar com quatro grandes cinemas em funcionamento, dois deles, o Coliseu e o Odeon, fecharam. Outros dois cinemas, que chegavam também a receber apresentações de companhias de teatro, permaneceram de portas abertas, o Cinema Imperial e o Cinema Independência. Com menos espaços de exibição, nem sempre os filmes que entravam em cartaz contentavam o gosto dos espectadores e, com isso, algumas pessoas se organizaram em grupos que deram origem a cineclubes.

Na verdade, entre o final da década de 1940 e o início da de 1950, surgiram cineclubes em diversas cidades brasileiras, um exemplo disso é o Clube de Cinema de Porto Alegre, fundado em 1948. Em Santa Maria, o fenômeno se repetiu. De 1951 a 1962 funcionou na cidade o Clube de Cinema, fundado por Edmundo Cardoso e considerado o início do cineclubismo na cidade. Além dele, a Ação Católica organizava outros no Colégio Santa Maria e no Seminário São José (NUNES, 2011, p.68).

Até os anos de 1960 Santa Maria contava com salas de exibição comercial, mas haviam sido produzidos por equipes locais apenas cinejornais e filmes domésticos, como A pandorga, de Salvador Isaía26 , e do Cinejornal Aurora, de Sioma Breitman. Assim, os apaixonados por cinema se reuniam, assistiam a filmes, debatiam, mas não tinham produzido filmes.

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A pandorga foi filmado em 16mm em 1952 por Salvador Isaia. Traremos mais informação sobre o filme no segundo capítulo, quando abordarmos os diferentes usos da película 16 milímetros.

Foi então que, em 1962, a cidade serviu de cenário para um longa-metragem. Tratava-se de Os abas largas. O filme, rodado em 35 milímetros, teve cenas em cidades gaúchas como Camaquã, Porto Alegre, Tupanciretã e Santa Maria. O filme foi feito pela produtora carioca Lupa Filmes do diretor Sanin Cherques.

Ele conta a história do 1° Regimento de Polícia Rural Montada, grupamento que tinha sede em Santa Maria e era conhecido como Abas Largas, devido aos chapéus que faziam parte de seu uniforme. Segundo Skrebsky (2011, p.71), o filme estreou em nove de agosto de 1963 em Porto Alegre e quatro dias depois em Santa Maria. A cidade foi usada apenas como cenário da produção. Alguns atores locais, entre eles Edmundo Cardoso, atuaram no filme, a maioria fazendo figurações. O filme foi restaurado em 2013. Por mais que não tenha sido feito por uma equipe local, Os abas largas foi um filme que mexeu com a cidade:

Fizeram muita propaganda para buscar pessoas para trabalhar no filme, mas quem de fato atuou foram poucas pessoas daqui: o Edmundo Cardoso, o Porto e mais uma meia dúzia. Isso produziu muito ciúme, porque já tinha gente produzindo na cidade. (ISAIA, 2016, entrevista concedida à autora).

Entre os atores da cidade que participaram de Os abas largas estava Edmundo Cardoso, amigo de Caneda e que pode ter incentivado o sonho do realizador de fazer um filme: “O Caneda tinha uma relação de amor total com o cinema. Era o seu mundo. Ele passava envolvido com o assunto. Também era ligado ao Edmundo Cardoso; e ser ligado ao Edmundo era estar ligado ao teatro e ao cinema. (GAROFALLO, 2016, entrevista concedida à autora).

Não há comprovação de que a realização de Os abas largas tenha motivado outros realizadores a fazer seus filmes na cidade. Mas é possível que a vinda de uma equipe de fora tenha mostrado que havia em Santa Maria condições de fazer cinema ainda que, para isso, fossem usadas as câmeras das quais se dispunha: as amadoras 16mm.

O fato é que na cidade se discutia cinema, se assistia filmes e agora, naqueles primeiros anos de 1960, as pessoas presenciavam as gravações de um longa-metragem nas ruas centrais de Santa Maria. Não é difícil de entender como isso pode ter motivado realizadores que alimentavam o sonho de fazer filmes.

De acordo com Skrebsky (2016), a realização de Os abas Largas inseriu-se em um contesto no qual o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, “incentivou a realização de produções audiovisuais e impressas que

evidenciassem e valorizassem a cultura e particularidades do povo gaúcho para então difundi-las nacionalmente” (SKREBSKY, 2016, p. 39). Segundo a autora, o fato de os policiais do grupamento Abas Largas da Brigada Militar terem muito prestígio na época fez com que eles fossem escolhidos como os personagens ideais para um desses filmes.

Os abas largas também contou com um evento de lançamento na cidade e

com sessões no Cine Glória, um dos dois cinemas da cidade na época. Em Santa Maria, o lançamento ocorreu em 13 de agosto de 1963 e contou com autoridades civis e militares, “apresentação do elenco e participação do efetivo do Regimento de Polícia Rural Montada que atuou como figurante” (SKREBSKY, 2016, p. 168).

Assim, em uma Santa Maria onde se respirava cinema, e agora se via um filme de um diretor de fora da cidade se concretizar, desde a sua realização até a exibição, deu-se o encontro entre pessoas ansiosas por realizar e uma película que apresentava todas as características necessárias para isso: o suporte 16mm. O resultado desse encontro é o que vamos mostrar ao longo dos próximos capítulos.