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2.1.2. A relação cultura e subjetividade

2.1.2.1. O modelo bidirecional de cultura de Jaan Valsiner

Na atualidade, diversos autores têm ampliado a concepção de cultura proposta por Vygotsky, para explicar como ocorre o processo de constituição cultural da criança. Dentre eles, destaco a perspectiva co-construtivista, formulada por Jaan Valsiner (1997, 1998, 2000), por considerar que determinadas categorias desse modelo teórico possibilitam uma compreensão mais dinâmica e aberta das relações subjetivas, como as que se processam entre as crianças nas brincadeiras de faz-de-conta.

Preocupado com o resgate do sujeito imerso nas circunstâncias do contexto sócio-cultural, Valsiner (1997, 1998, 2000) criticou a idéia de enculturação como um processo unidirecional. Nessas abordagens, o sujeito em desenvolvimento se mostra como um receptor passivo das crenças, normas, valores e hábitos da cultura em que vive. “A função deste sujeito é, simplesmente, receber a

mensagem ou rejeitá-la, não sendo esperado que, em nenhum momento, seja capaz de reorganizar ou transformar a mensagem recebida” (Vasconcellos & Valsiner, 1995, p.20).

Diferentemente dessas abordagens, Valsiner (1997, 1998, 2000) propõe que o sujeito participante de um processo de transferência cultural é um participante ativo de seu desenvolvimento, o que o torna um modificador das mensagens culturais recebidas. Todo processo de transferência cultural envolve, incondicionalmente mudanças no sujeito (receptor), na mensagem (informação cultural) e no emissor (agente cultural). Toda mensagem carrega um pouco das características de quem a passou e será recebida também de acordo com as características do receptor. Nessa perspectiva, a cultura é um aspecto importante da constituição do sujeito e não apenas um elemento externo que exerce influência sobre ele.

Para demonstrar como ocorre esse processo de transmissão bidirecional da cultura, Valsiner (1997, 1998, 2000) elaborou os conceitos de cultura coletiva e cultura pessoal. A cultura coletiva refere-se ao conjunto de significados e normas historicamente construídos e coletivamente partilhados por determinado grupo cultural. A cultura pessoal é representada pelos significados pessoais, constituindo a versão particular e única que cada sujeito constrói e reconstrói continuamente em interação com a cultura coletiva. Esse processo de separação inclusiva ou “independência dependente” (Valsiner, 1997) permite compreender o desenvolvimento humano como um processo de co-construção. O sujeito em desenvolvimento é ao mesmo tempo construtor e construído. É como um sistema

aberto que requer sempre a construção de novidade, tanto no desenvolvimento do sujeito como na cultura.

Desse modo, o sujeito em desenvolvimento é um co-construtor de um sistema de significados culturais, desenvolvendo suas versões pessoais desse sistema, como resultado do processo da mediação das pessoas de seu contexto sócio-cultural, ainda quando estas não estão imediatamente presentes em interação. Os significados emergem como meios de comunicação e, simultaneamente, convergem em elementos de generalização para os outros e para o próprio sujeito, possibilitando-lhe escalar em direção a níveis crescentes de abstração (Valsiner, 1997, 2000).

Nessa perspectiva, portanto, o sujeito em desenvolvimento e o contexto sócio-cultural são partes de um todo, que mantém entre si uma dinâmica interativa de separação inclusiva. Assim, o contexto não é apenas o lugar ou situação onde a criança se desenvolve ou algo que o influencia de uma forma externa, mas um componente ativo do próprio processo de desenvolvimento (Valsiner, 1997, 1998, 2000).

Tanto a criança em desenvolvimento quanto o seu contexto estão organizados de uma forma dinâmica. Ambos constituem estruturas físicas, psicológicas e culturais, que interagem entre si durante todo o processo. As formas como esses diversos elementos se interligam e modificam-se, constantemente durante todo o processo de desenvolvimento, provendo sempre uma nova configuração de contexto com o qual a criança irá interagir. Essas transformações, algumas vezes, são causadas pelas ações da própria criança, outras vezes, por outros elementos do contexto que estão além do controle da

criança. A maioria das transformações, no entanto, é controlada simultaneamente pela criança e pelos contextos de desenvolvimento incluindo outras pessoas que podem reorganizar tais contextos.

A criança, por sua vez, também constitui uma estrutura sistêmica, na qual emoções, cognição e ação conectam-se entre si de modos qualitativamente complexos em cada fase do desenvolvimento (Wallon, 1995). A organização psicológica da criança em dado momento de seu desenvolvimento, compreendida como as formas da criança sentir, pensar e agir, é determinada pela relação entre esses três elementos, não podendo ser reduzido à soma de suas partes.

Qualquer redução de tal complexidade sistêmica para um conglomerado de ‘medidas quantitativas’ de cada um dos supostos componentes eliminaria a natureza sistêmica do funcionamento da pessoa (...). Nenhuma equação linear com os fatores de ação, emoção e cognição nitidamente nela exibidos torna possível explicar a organização estrutural de tudo o que existe devido a interação destes três elementos como suas partes (Valsiner, 1997, p. 172).

Segundo Valsiner (1997, 1998, 2000), a relação entre a criança e seu contexto sócio-cultural é transformada dinamicamente tanto no campo da microgênese quanto no da ontogênese a cada fase do desenvolvimento. Além disso, apesar de ambos participarem ativamente do processo de desenvolvimento, suas ações não são ilimitadas. Existe uma indeterminação restrita dessas ações, que é representada pela figura dos circunscritores físicos, emocionais e cognitivos, concebidos como estruturas co-construídas tanto pela criança quanto pelo

contexto. Tais estruturas são utilizadas, reconstruídas e abandonadas quando desnecessárias, formando um sistema que atua como um canalizador, impulsionando as ações da criança para algumas direções e as afastando de outras. Desse modo, de acordo com os pressupostos do co-construtivismo, as brincadeiras de faz-de-conta, por serem atividades culturais, também são bidirecionais. A criança traz para suas brincadeiras elementos materiais e simbólicos, frutos de suas experiências cotidianas em determinado contexto sócio- cultural e opera com os significados, reconstruindo-os de acordo com a sua cultura pessoal. Ao fazer isso, ela participa da construção coletiva de significados e amplia seu conhecimento do mundo e de si própria, atuando assim, como co- construtora de seu sistema de significados culturais (Valsiner, 2000).