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PARTE I – DISSERTAÇÃO

2. CONCEPÇÕES DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA

2.2 O MODELO UNICAUSAL

Se toda forma de pensar se origina “nas experiências dos indivíduos com o mundo material objetivo, das relações práticas dos homens com as coisas e nas relações das pessoas entre si...(GARCIA, 1981)”, são as modificações estruturais da sociedade, que se dão historicamente, que determinam as transformações que ocorrem também na educação e nas práticas médicas.

O modelo biomédico que se consolida na formação médica a partir do Relatório Flexner, reproduzindo-se nas práticas profissionais, tem origem na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da teoria bacteriana. Nesta época, Ehrlich, Kock e Pasteur desenvolvem a “teoria do germe” como causa biológica das doenças. A idéia de que “vermes”, “animalúnculos” ou “sementes” pudessem ser a causa de doenças é muito antiga e remonta ao primeiro século A.C. Já em 1676 Leeuwenhoeck identificou a existência de microorganismos observados ao microscópio, que ele inventara (ROSEN, 1994).

A teoria do germe vem sacramentar uma visão de causação biológica da doença que já vinha sendo gestada há muito tempo. As observações empíricas permitiram levantar hipóteses sobre o contágio das doenças desde a antiguidade. Tornou-se evidente, através da observação rigorosa da evolução das doenças epidêmicas, que o homem doente podia transmitir a sua doença aos demais, através de contágio direto, por fômites ou outros veículos.

As observações empíricas e formulações conceituais para explicar o surgimento das doenças e das epidemias foram estruturando diferentes modelos explicativos que se agruparam em pelo menos duas grandes tendências: os contagionistas e os não contagionistas, também chamados de infeccionistas, ou miasmáticos. A primeira defendia a tese de que eram germes específicos que causavam as infecções e doenças epidêmicas. Os segundos acreditavam na geração espontânea e que o ar, elemento central na veiculação da doença, tornava-se nocivo por influência tanto do meio natural como meio social. Os pântanos, mangues e charcos eram considerados como produtores de miasmas paludosos, minúsculas partículas orgâncias que provocavam a insalubridade do ar. Tudo o que impedisse a livre circulação do ar também poderia contribuir para essa insalubridade. Nas influências do meio social, o homem, através de suas funções orgânicas (secreções, excreções, exalações, etc.) e

das transformações que introduz no ambiente, atua como o agente contaminador do ar. Estas duas influências alteravam a qualidade, a salubridade e a respirabilidade do ar, e a intervenção sobre elas poderia combater as doença e epidemias.

Estas duas tendências teóricas geraram o higienismo, cujo pensamento transformou- se, em alguns momentos históricos, no pensamento social hegemônico, legitimando modelos de intervenção social em diferentes áreas, desde as reformas sanitárias, a reforma urbana, as políticas demográficas, até o modelo higienista do corpo saudável (VERDI, 2002).

A teoria miasmática vai predominar do século XVI até o advento da bacteriologia, na segunda metade do século XIX. Nas primeiras décadas do século XIX predominavam as idéias não contagionistas da geração espontânea, que embasaram o movimento sanitário construído pelos revolucionários do final do século XVIII e primeira metade do século XIX na Europa que constituiu o movimento da medicina social.

Para BOYLE (apud BARATA, 1985): “As doenças originam-se, parcialmente, das partículas da atmosfera e parcialmente de diferentes fermentações e putrefações dos humores. As primeiras insinuam-se entre os sucos do corpo, desagregando-os, misturam-se ao sangue e finalmente contaminam todo o organismo”.

Já para SYDEHAM (apud BARATA, 1985): “A peste é um complexo sintomático que a Natureza usa para demonstrar a eliminação natural, pela qual um abscesso ou outra forma de erupção pode expelir do corpo aquelas partículas miasmáticas que nós adquirimos com o ar que respiramos”.

O mesmo SYDEHAM esclarece a origem dos miasmas ao enunciar sua concepção de constituição epidêmica: “Há diferentes constituições em diferentes épocas. Elas não se originam do calor, nem do frio, nem da umidade, nem da secura, elas dependem de certas misteriosas e inexplicáveis alterações nas entranhas da Terra. Pelos seus eflúvios, a atmosfera torna-se contaminada e os organismos dos Homens são predispostos e determinados”.

Os elementos (fogo, ar, água, terra), cedem lugar às partículas miasmáticas, inaladas nos ares contaminados pelos eflúvios oriundos das entranhas da terra e/ou de fermentações e

putrefações. É esta concepção causal de doença que as descobertas de Pasteur vêm derrubar. Não sem resistência.

Por outro lado, avançavam os conhecimentos de anatomia, que se avolumavam desde os século XVI e XVII, a teoria da célula, com Schleiden e Schwann, a fisiologia, com Claude Bernard, fizeram com que os médicos descobrissem os laboratórios e o microscópio como instrumentos fundamentais para o seu trabalho. Células, tecidos, órgãos, peças anatômicas, reações químicas passam a ter uma importância extraordinária para a medicina. A genética e a parasitologia desenvolvem-se muito. Surgem os raios-X. A infectologia, a vacinação, a assepsia e a cirurgia efetivam-se ou são impulsionadas a partir desses conhecimentos. Os modos de ver e entender as doenças são profundamente influenciados por estas descobertas e repercutem profundamente na prática e na educação médica.

O desenvolvimento dos campos de conhecimento da patologia, histologia, química, fisiologia e, em especial, da microbiologia que ocorrem nesta época vão provocar uma verdadeira revolução no conhecimento médico. As implicações que o avanço destes conhecimentos irão ter sobre as ciências médicas, e o uso que o complexo médico-industrial irá fazer deles, vão modificar profundamente as concepções de saúde e doença, as práticas médicas e a própria história da medicina. O entendimento da saúde-doença como determinada socialmente, construída durante a primeira metade do século XIX pela Medicina Social, perde força e é substituída por outra, de base biológica em que a bactéria é considerada como causa única da doença. A tal ponto que Behring, em 1893 (ROSEN, 1979), sentencia que, a partir da descoberta da bactéria, a medicina não precisa mais perder tempo com problemas sociais. Resta apenas descobrir qual bactéria é a responsável por cada doença. A doença tem uma única causa. As pesquisas são dirigidas para descobrir quais bactérias são responsáveis por cada doença, como elas entram e que efeitos provocam na “máquina humana” e como se pode eliminá-las. Está aberta a temporada de caça às bactérias. Cursos de bacteriologia, campanhas de exterminação de mosquitos transmissores de doenças, pesquisa de vetores são iniciativas típicas desta fase na Saúde Pública. Para DA ROS (2000):

A concepção de saúde é de que a doença é causada por um agente externo que entra em contato com o homem, naturalizando o processo.[...] É, portanto, um conceito que, além de ser unicausal, subsume o homem a um achado ocasional no processo biológico, conseqüente a um micróbio localizado dentro do vetor ( este sim o objeto de estudo, e não o homem).

Para BARATA (1985) “...a bacteriologia veio liberar a medicina dos complexos determinantes econômicos, sociais e políticos que a impediam de desenvolver-se cientificamente.” De qualquer forma, estava fundada a Medicina Científica.

O modelo biomédico preconizado pelo Relatório Flexner só vai começar a exercer influência na América Latina após a Segunda Guerra Mundial, com a política desenvolvimentista dos EUA para os países do terceiro mundo. Até então, as escolas médicas na América Latina, que totalizavam 40 à época da publicação do relatório, estavam em mãos de governos e instituições religiosas e seguiam modelos europeus, principalmente o francês e o alemão (CUTOLO, 2001). O modelo flexneriano se instala de forma definitiva na América Latina somente a partir da década de 1960, com a instalação de governos militares autoritários em praticamente todo o continente, patrocinados pelos EUA em sua luta anticomunista, dentro da política de expansão das escolas médicas que ocorre nesta época. No Brasil não foi diferente.

É interessante notar que desde o início da década de 1950, alguns pressupostos do Relatório Flexner eram questionados nos EUA, especialmente pela Medicina Preventiva. A própria John Hopkins University já “avançava” em alguns aspectos em relação às suas propostas originais. Estávamos atrasados pelo menos em 40 anos, como sempre (DA ROS, 2000).

Para a análise dos dados vou englobar o “modelo flexneriano” e o modelo unicausal como fazendo parte da concepção biologicista do processo saúde-doença.