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O MODO ARGUMENTATIVO DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO

2. ARGUMENTAÇÃO: DA RETÓRICA AO DISCURSO

2.3. O MODO ARGUMENTATIVO DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO

Para Charaudeau (2008), é por meio e através da linguagem que o homem se constrói, a partir da imagem que tem de si e de seu interlocutor. O autor de “Linguagem e Discurso: modos de organização” afirma que a linguagem é o maior poder do homem, e o permite, dentre suas inúmeras finalidades, convencer e seduzir o outro. Mas o semiolinguista alerta que a linguagem não é uma “coisa” pronta para ser usada pelo homem, mas “uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social e cuja encenação resulta de vários componentes, cada um exigindo um ‘savoir-faire’ [...]”. (Ibid. p. 7).

Observamos, então, que a linguagem é produto e processo, e que sua característica principal é da ordem do ideológico, do semiótico, e que processos como convencer e persuadir, por exemplo, não são tarefas simples: é preciso que o locutor saiba do que está falando para que seu discurso tenha credibilidade e que saiba envolver o interlocutor por meio de uma razão demonstrativa (relações de causalidade) ou de uma razão persuasiva (provas por argumentos que justifiquem determinada posição) (CHARAUDEAU, 2008); processos argumentativos entendidos, respectivamente, como convencimento e persuasão para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014).

Tais processos não são, pura e simplesmente, da ordem da materialidade linguística, ainda que não existam sem ela, mas são processos/atividades que envolvem fatores extralinguísticos e, principal e essencialmente, relações dialógicas e ideológicas: “o aspecto argumentativo de um discurso encontra-se frequentemente, no que está implícito” (CHARAUDEAU, 2008, p. 204, grifo do autor).

A finalidade do modo de organização do discurso argumentativo é argumentar. Mas a argumentação não se resume ao estabelecimento de sequências tipológicas e coesas, já que caminha, principalmente, para o estabelecimento de relações de sentido em que um locutor tenha a pretensão de justificar seu ponto de vista e convencer seu interlocutor, por meio de sequências argumentativas produtoras desse sentido. Por exemplo, “o discurso político se caracteriza por um jogo polêmico, que utiliza constantemente contratos e estratégias para convencer ou seduzir o outro” (CHARAUDEAU, 2008, p. 58). Mas não é apenas o discurso político que utiliza estratégias discursivas na produção de sentido de um texto: para qualquer

[...] locutor, falar é, pois, uma questão de estratégia, como se ele perguntasse: ‘Como é que vou/devo falar (escrever), levando em conta o que percebo do interlocutor, o que imagino que ele percebe e espera de mim, do saber que eu e ele temos em comum, e dos papéis que eu e ele devemos desempenhar’. (Ibid. p. 75).

Uma vez mais, o diálogo entre uma teoria do discurso (a Semiolinguística de Charaudeau) e a Retórica é construído. A Retórica cria polêmicas, como defende Vidon (2003), sobre o inesperado; e as circunstâncias de produção do discurso são impreteríveis na construção dos enunciados, inclusive os argumentativos.

Argumentar, como processo comunicativo/discursivo, é proceder a uma encenação com finalidade de seduzir, persuadir e convencer seu interlocutor; para Charaudeau (2008), o convencimento é também um processo argumentativo, que se dá por uma razão demonstrativa de uma ideia, uma proposição. E em seu trabalho minucioso sobre o ato de linguagem e os modos de organização do discurso, o semiolinguista aprofunda a definição sobre o argumentar e a argumentação. Para ele,

Argumentar é, portanto, uma atividade discursiva que, do ponto de vista do sujeito argumentante, participa de uma [...] busca de intencionalidade que tende a um ideal de verdade quanto à explicação de um fenômeno do universo. [... [e]] uma busca de influência que tende a um ideal de persuasão, o qual consiste em compartilhar com o outro (interlocutor ou destinatário) um certo universo de discurso até o ponto em que este último seja levado a ter as mesmas propostas [...]. (CHARAUDEAU, 2008, p. 206).

E a argumentação, que é o todo construído com a contribuição do modo de organização do discurso argumentativo, é

[...] o resultado textual de uma combinação entre diferentes componentes que dependem de uma situação que tem finalidade persuasiva [e] define-se, portanto, numa relação triangular entre um sujeito/orador, uma proposta sobre o mundo e um sujeito-alvo (Ibid. p. 207).

- uma proposta sobre o mundo que provoque um questionamento, em alguém, quanto à sua legitimidade (um questionamento quanto à legitimidade da proposta).

- um sujeito que se engaje em relação a esse questionamento (convicção) e desenvolva um raciocínio para tentar estabelecer uma verdade (quer seja própria ou universal, quer se trate de uma simples aceitabilidade ou de uma legitimidade) quanto a essa proposta.

- um outro sujeito que, relacionado com a mesma proposta, questionamento e verdade, constitua-se no alvo da argumentação. Trata-se da pessoa a que se dirige o sujeito que argumenta, na esperança de conduzi-la a compartilhar da mesma verdade (persuasão), sabendo que ela pode aceitar (ficar a favor) ou refutar (ficar contra) a argumentação. (CHARAUDEAU, 2008, p. 205, grifo do autor).

Tomando como exemplo os gêneros do jornalismo escrito, o sujeito-alvo é o leitor do jornal, que, consciente ou não do papel do autor/locutor de determinado gênero, envolve-se no processo argumentativo.

O modo de organização do discurso argumentativo tem como função base expor e provar as causalidades numa dada racionalidade, no intuito de influenciar seu interlocutor, seja por meio da persuasão, seja por meio do convencimento. A argumentação acontece quando um sujeito se engaja em uma proposta, raciocina sobre ela e tem a pretensão de levar seu interlocutor a um pensamento análogo ao seu.

O teor argumentativo de um discurso pode não ser percebido a priori na fala ou na escrita de um locutor. Sempre é necessário fazer e criar relações com outros textos que, muitas vezes, funcionam como vozes dentro de um determinado discurso (do texto em questão). Quando a argumentação não é mostrada mais tacitamente, o interlocutor pode se envolver facilmente no discurso do locutor e aceitar seu ponto de vista e suas visões de mundo.

O discurso publicitário, por exemplo, usa os modos de organização do discurso descritivo e narrativo para culminar em uma argumentação (CHARAUDEAU, 2008);

e isso acontece, na maioria das vezes, pela sedução25. Não obstante, a lógica que o

locutor cria para o interlocutor pode ter, também, um resultado bastante satisfatório. Desse modo, percebe-se que, no processo de construção de uma argumentação, o locutor, consciente ou inconscientemente, estabelece relações entre diferentes

25 Percebemos, a todo momento, que muitos pressupostos teóricos de Charaudeau se confundem ou

dialogam com os estudos da [Nova] Retórica. Além do exposto, tal relação nos leva a concordar com as palavras de Fiorin (2014) sobre o fato de as teorias do discurso ‘herdarem’ a Retórica.

asserções, “através de procedimentos que constituem o que chamamos de organização da lógica argumentativa” (Ibid. p. 207).

Na elaboração de um argumento, outro fator que não deve ser ignorado é a condição de verdade, o agir de forma ética (CHARAUDEAU, 2008; PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2014). Isto é, a provável honestidade é condição importante para a credibilidade de um argumento. Isso implica dizer que

Pelo fato de que nenhum sujeito é ingênuo, essa busca do verdadeiro torna-se a busca do mais verdadeiro, ou seja, do verossímil, (o verdadeiro não sendo graduável), de um verossímil que depende das representações socio-culturais compartilhadas pelos membros de um determinado grupo, em nome da experiência ou do conhecimento. (CHARAUDEAU, 2008, p. 206).

A relação de verdade e honestidade de um argumento, relatada nas citações acima e vista no início da seção 2 de nosso estudo, está envolvida no fato de que uma argumentação estabelece uma relação de causalidade (CHARAUDEAU, 2008). Se um fato é exposto (uma asserção), alguém pode contestá-lo, defendê-lo ou explicá- lo (um ponto de vista sobre esse fato - Proposição), por meio de um “quadro de raciocínios persuasivos” (persuasão), isso sempre no uso de uma possível verdade, que influenciará na tomada, ou não, de posição do sujeito/orador (CHARAUDEAU, 2008). Contudo, não se pode pensar que uma asserção ou um encadeamento de asserções são processos argumentativos: eles combinam-se, constituindo a proposta, que é parte do processo argumentativo, e, somada à proposição e à

persuasão, formam o dispositivo26 argumentativo (CHARAUDEAU, 2008). Deste

modo, “Isso nos leva a definir o dispositivo argumentativo como sendo composto de três quadros: PROPOSTA, PROPOSIÇÃO, PERSUASÃO, que são suscetíveis de se superpor na configuração discursiva de uma argumentação” (Ibid. p. 221).

Argumentar não é estabelecer uma sequência de argumentos. Argumentar é construir enunciados sobre asserções do mundo, com a intenção de demonstrar algo e persuadir com esse discurso. Quando uma argumentação não consegue persuadir ou envolver o interlocutor de alguma maneira, pode ter sua importância

26 Charaudeau usa o termo dispositivo, mas preferiremos usar, principalmente na seção de análise, o

desprezada, isto é, “uma argumentação pode ser anulada em seu próprio fundamento ou, em todo caso, anulada em sua validade. A argumentação desaparece sob a contestação se não logra superá-la” (CHARAUDEAU, 2008, p. 201). E para superar uma contestação, a elaboração de uma argumentação não deve ser feita de maneira irresponsável e inconsciente. O locutor, ao defender seu ponto de vista, deve ter certeza de suas falas, pois ela pode ser facilmente refutada ou ignorada, a depender, muitas vezes, da abordagem que o locutor faz ao seu interlocutor.

Outra condição de argumentação – para o contato entre o locutor/orador e interlocutor/auditório (o contato dos espíritos) – é quando estes fazem parte de um mesmo meio, quando convivem, quando mantêm relações sociais.

Fica claro com o exposto que a argumentação tem uma estreita relação com a busca e defesa de respostas, o que é próprio de qualquer enunciado, como citado anteriormente. E é no momento de manifestar e defender discursivamente seu ponto de vista, que o locutor, ao construir uma argumentação, que está no âmbito da organização do discurso (CHARAUDEAU, 2008), faz uso das categorias de língua. Além disso, a defesa de um ponto de vista deve ser adequada ao interlocutor; o que reforça a qualidade essencial de um texto/discurso em ser dialógico.

Charaudeau (2008) trabalha com algumas categorias de argumentação sobre as quais podemos refletir: os modos de encadeamento (a conjunção, a disjunção, a restrição, a oposição, a causa, a consequência e a finalidade) das articulações lógicas, que são colocados, muitas vezes, na ordem da demonstração (convencimento) e/ou observados na materialidade verbal, mas se constroem, de fato, como recursos argumentativos, estando no âmbito discursivo; e as modalidades (ou condições de realização), que criam vínculo entre as asserções, do eixo do possível (o que poderia ser), do necessário (o que deve/precisa ser) e do provável (o que pode/poderá ser). Esses dois processos também são necessários para a construção da lógica argumentativa porque

[...] a relação argumentativa se define no seu fundamento como uma relação de causalidade [e] a passagem de uma [asserção para a] outra se fará segundo uma inferência que estabelece, entre premissa e conclusão, um vínculo modal [...] (CHARAUDEAU, 2008, p. 210 e 212).

Não escapa à lógica argumentativa, como se observou mais acima, o escopo do valor de verdade, tomado como critério de argumentação por Charaudeau (2008) e Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014). Para o primeiro, este escopo é “o conjunto da relação argumentativa que está sob o escopo do valor de verdade: ‘para todos os casos’ (generalização), ‘para um caso específico (particularização), ‘para um caso suposto’ (hipótese).” (CHARAUDEAU, 2008, p. 210 e 212). Já para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), precisamos destacar, não são apenas os argumentos lógicos que são argumentativos, mas, principalmente, os circunstanciais, criados a partir de uma construção, pelo orador, de um auditório. O escopo do valor de verdade abrange a proposta como um todo; isto é, é a fundamentação da argumentação. Mas o sujeito/orador também compõe o processo argumentativo, ele faz parte da enunciação.

Argumentar é, portanto, uma atividade discursiva que participa, segundo Charaudeau (2008), de uma busca de racionalidade, que tende a um ideal de verdade, a busca do “mais verdadeiro”; e uma busca de influência, que tende a um ideal de persuasão. De modo geral, vemos uma grande proximidade entre a Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca e os pressupostos de Charaudeau (2008). Vale destacar que ambos trabalham com outras categorias além das mencionadas nesta pesquisa. Os pontos que foram discutidos, de ambas correntes, a nosso ver, caminham em direção aos estudos bakhtinianos do discurso; aqueles que, por sua vez, não foram trabalhados podem não tê-lo sido por não apresentarem a mesma ou similar relação. Veremos, então, a seguir como as três correntes de estudos da linguagem observam os sujeitos discursivos.